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Mercantilização do futebol ou “teoria da conspiração”?

Marco Antonio Monteiro Coutinho, de Niterói (RJ)
Torcedores do Flamengo na arquibancada do Maracanã. Coleção MIS

Torcedores do Flamengo na arquibancada do Maracanã. Coleção MIS

Para os defensores do capitalismo em sua versão neoliberal 2.0, com certeza o título não passa de mais uma “teoria da conspiração”. Algumas pessoas não percebem, e realmente não é simples de se perceber, as razões de os estádios no Brasil, depois de sediarem a Copa do Mundo de 2014, estarem sempre sem a capacidade total ocupada. Essa realidade é uma exigência do futebol “negócio”; ou seja, o futebol, a mais tradicional e que já foi a principal diversão e alegria do brasileiro, entrou definitivamente na “Era do Capital”. Não é um jogo de amadores.

Para compreender esse fenômeno, é pré-requisito discutir algumas questões. É preciso entender que o objetivo do capitalista é produção, reprodução e acumulação de capital. Isso não é apenas especulação, é um fato comprovado através de estudos e de amplo conhecimento. O restante não passa de meio para se conseguir isso. Produzir mercadorias é apenas o meio mais eficiente que se descobriu, até agora, para alcançar esse objetivo. Acumular grandes quantias de capital concentrado nas mãos de uma minoria da classe econômica e política dominante.

Já faz parte da história, a época que se achava que para os socialistas, o capitalista é apenas um cara mau que explora os outros para ganhar muito dinheiro. Isso também, em muitas ocasiões, é verdade, mas não se trata apenas disso. Já argumentei em outros textos, que, se aumento salarial ou distribuição maior dos lucros tivesse capacidade de aumentar os lucros de seus negócios, os capitalistas não hesitariam em fazer. Mas a dinâmica do sistema capitalista e a lógica para se obter lucro não funciona dessa maneira.

Para conseguir produzir mercadorias e gerar mais-valor para obter lucros e acumular capital, ele precisa explorar a nossa força de trabalho. É assim que funciona no sistema capitalista. É um sistema baseado irremediavelmente na exploração da força de trabalho assalariado. Muitas vezes em condições sub-humanas.

Mas isso também não é relevante para o capitalista; se fosse possível, ele substituiria todos nós por simpáticos e obedientes robôs, que nunca fariam greves por aumentos salariais, nunca faltariam ao trabalho e jamais ficariam “grávidos” para gerar novos trabalhadores para perpetuar nossa espécie e garantir a continuidade da exploração e da miséria. Para usar um jargão do futebol, criado por Parreira ao afirmar que o “GOL” era apenas um detalhe; para os obstinados capitalistas, a miséria também é apenas um detalhe, uma falha do sistema. O importante mesmo é acumular Capital. Não estou sendo cruel, essa é a lógica da acumulação capitalista, que infelizmente muitos defendem e muitos outros não enxergam. Talvez, por falta de esclarecimento ou consciência de classe.

O grande problema do empresário capitalista é que robô não consome produtos e serviços. E isto é um grande problema para esses senhores. Na verdade, é um problema fatal. É como um pênalti aos 48 minutos do segundo tempo. Sem troca e circulação de mercadorias não existe sistema capitalista. É o “game over” do “Modo de Produção Capitalista”. Para David Harvey, pensador marxista, geógrafo e professor de antropologia, “O Capital não é uma coisa, mas um processo que só existe em movimento. Quando a circulação cessa, o valor desaparece e o sistema começa a desmoronar”.

Para vender as mercadorias produzidas pelos próprios trabalhadores, os capitalistas se veem obrigados a pagar um salário que permita ao trabalhador, além de sobreviver, ter condição para, principalmente, consumir as próprias mercadorias por eles produzidas, e garantir a acumulação de capital, que é o grande fetiche do capitalista. Alguns, até acreditam que quando morrer continuará a movimentar suas milionárias contas correntes lá de cima, ou quem sabe, lá de baixo.

Por isso, chamavam os trabalhadores de “proletariados”! Era preciso aumentar a prole para garantir a oferta e disponibilidade de mão de obra e não pressionar o seu valor para cima, pois as indústrias eram todas movidas por força de trabalho humana, eram todas intensivas em mão de obra.

Depois do intervalo, para colocar algumas questões, vamos voltar para o segundo tempo, vamos voltar ao “negócio” da bola. Hoje em dia, o futebol foi mercantilizado, foi monetizado. Tudo gira em torno da produção de lucro. A capacidade dos estádios foi reduzida para permitir a comercialização de milhares de mercadorias durante os jogos. Com o estádio lotado, o “torcedor-consumidor” perde mobilidade, não transita pelo estádio, não consome, não gera lucro. A “perda” com a redução de ingressos e diminuição de torcedores nos estádios, é mais que compensada com os ganhos obtidos com a comercialização de milhares de mercadorias durante os jogos, milhares de mensalidades garantidas com a venda de títulos de sócio torcedor; que é na realidade quem tem, hoje, a prioridade e o privilégio de adquirir os ingressos; e com as milionárias verbas de transmissão garantidas pelas redes de televisão, que também faturarão mais com seus anunciantes; na medida que mais torcedores ficarão em frente à telinha, pois não conseguem mais torcer por seus times nas arquibancadas. Em todos os jogos podemos perceber milhares de lugares vazios no estádio, mas nas bilheterias não se têm mais ingressos disponíveis para venda. Na realidade, todas estão fechadas!

Esta obsessão de vender e comprar para consumir mercadorias não é uma característica apenas do século XXI; Marx já observava, no primeiro parágrafo do capítulo 1, do livro I de sua principal obra, O Capital, escrito em meados do século XIX, que o capitalismo, ou mais precisamente, o Modo de Produção Capitalista, é uma “enorme coleção de mercadorias”; e em diversos livros e artigos, Marx também destacou que a força de trabalho, de propriedade dos trabalhadores, é a mercadoria mais importante deste tipo de sociedade, pois é a que possui a capacidade de gerar, de agregar mais-valor às mercadorias produzidas e vendidas pelas empresas capitalistas. E por isso, não é justo que a riqueza produzida pelos trabalhadores, seja apropriada por uma minoria de 2% de grandes capitalistas existentes na população.

“A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma “enorme coleção de mercadorias”
(Karl Marx. O Capital, Livro I, Capítulo 1. A mercadoria).

A lógica, a regra do jogo, foi totalmente subvertida em função dessa mercantilização com objetivo de favorecer os donos do capital. O Maracanã lotado, antes das obras de adaptação para os grandes grupos econômicos que comandam o futebol, colocava 140 mil pessoas em um Fla x Flu decisivo. Hoje, com as adaptações mercantilistas, o Maraca não recebe mais de setenta mil torcedores. Mas, essa redução da capacidade, para os empresários do negócio-futebol, foi apenas o meio mais eficiente para aumentar seus lucros. As “Arenas” são na realidade, verdadeiras boutiques para uma parcela da população com maior poder aquisitivo. A “elitização” e o “embranquecimento” da arquibancada, e a ausência do povão nos estádios são consequências de uma política, equivocada, baseada na acumulação de capital.

No início do texto foi colocado a questão de o capitalista ser um cara mau. E mais uma vez insisto; isso não é relevante para seus objetivos de acumular capital. O capitalista não está nem um pouco preocupado se quem vai ao jogo é alguém da classe A, B, C ou D. Nem muito menos se o povão que era a alegria da geral e das arquibancadas vai ficar de fora; ou se uma parcela menor de apaixonados pelo futebol terão a oportunidade e a alegria de ver seu time do coração em campo. O que interessa é “alguém”, “qualquer um”, passar o cartão de crédito para comprar ingresso, comprar camisa de seu time, adquirir um título de sócio-torcedor, ou comprar mercadorias durante os jogos. O que interessa para o jogo do capital é se você tem bala na agulha de sua chuteira para consumir. Este é o único gol de placa que o capitalista quer ver e comemorar.

Aquele gol de Nunes, que deu o título de campeão brasileiro para o Flamengo em 1980, e que fez tremer o velho Maraca, com 150 mil torcedores, faz parte de um passado remoto que não veremos mais. Gols de placa, agora, não fazem mais tremer o Maraca rejuvenescido e maquiado pelas mãos do grande capital; afinal, são apenas 70 mil torcedores, quer dizer, 70 mil consumidores!

Ainda bem que nosso grande João Saldanha se despediu do futebol em plena Copa do Mundo de 1990; ele não teria suportado ver o Maracanã ser enterrado vivo! Realmente, misturar paixão pelo futebol com mercenários do futebol não pode dar bom resultado para nenhuma torcida.

Na era do jogo do capital selvagem, somente o capitalista comemora e grita gol. Acumular grandes quantias de capital, é para eles, um bom motivo para ver o Maracanã não tremer mais. Para o capitalista, lucro é sinônimo de gol, mas, nem por isso é apenas um detalhe. O derradeiro apito final para o capitalista é criar valor para o acionista e fazer aumentar o saldo daquela conta corrente “fetichizada” que ele imagina poder continuar movimentando mesmo depois de morto. O resto é “Teoria da conspiração”.

Foto: Torcedores do Flamengo nas arquibancadas do Maracanã. Arquivo Instituto Moreira Salles (IMS)

Acompanhe a cobertura da Copa do Mundo na Rússia no Lateral Esquerda, especial do Esquerda Online

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