Duras longas décadas. Encurralados, esmagados pela fome, silenciados pelo medo de um regime repressivo e totalitário. Sofreram, resistiram, fugiram em busca de uma vida melhor em liberdade. Outros foram presos, deportados, torturados e mortos às mãos da ditadura. Foi dura e crua a realidade do povo que sobreviveu a meio século de vigência Salazarista. Se na história da humanidade 48 anos é um brevíssimo espaço de tempo, à escala da esperança média etária de cada um de nós é de metade de uma vida.
A Guerra Colonial em que o país estava envolvido, de onde os jovens regressavam mortos ou mutilados, criou um enorme descontentamento. A Guerra que os povos africanos travaram com o Estado Novo, na luta pela sua independência, foi a causa principal da Revolução que iria eclodir na metrópole.O descontentamento, nas Forças Armadas, levou a que um sector da oficialidade média do exército (MFA) se insurgisse contra o Regime. A escassa base social de apoio ao Regime por esta altura, devido à fome e pobreza espalhadas por todo território nacional, não permitiu que o Regime se mantivesse.
A memória colectiva sobre o 25 de Abril continua presente, felizmente ainda por cá andam muitas daquelas mulheres e homens que viram o longo pesadelo acabar. A longa espera terminava, o golpe dos capitães foi a faísca que detonou o paiol. Os capitães esperavam da população apoio, mas não imaginariam que o povo quisesse ser o protagonista da mudança. O sonho de um país livre, solidário, igualitário ganhava contornos reais.
A população agigantou-se, encheu-se de uma alegria contagiante. A pobreza, a miséria, o isolamento pareciam finalmente chegar ao fim. A classe trabalhadora, martirizada pelo trabalho duro em troca de salários parcos, lançou-se à conquista.
A Revolução começava. O que meses antes parecia uma utopia, agora estava ali “como bola colorida entre as mãos de uma criança”. Assembleias, manifestações, greves, ocupações foram o quotidiano da Revolução.
Com a energia revitalizadora de quem saía de um longo cativeiro, com a ânsia de recuperar tempo roubado e ousar por uma vida nova. O povo explorado galvanizou-se e partiu para a luta. Mobilizou-se, protestou, discutiu e exigiu. Construíram-se comissões de trabalhadores, comissões de moradores, exigiram-se aumentos de salário e melhores condições de trabalho. Cria-se o salário mínimo, há aumento do salário médio (vivia-se, na época, a maior crise petrolífera desde a II Guerra Mundial).
“O que a revolução conquistou em dezoito meses, a reação consumiu dezoito anos para destruir e, ainda assim, não conseguiu anular todas as conquistas sociais alcançadas pelos trabalhadores. Depois de ter incendiado durante um ano e meio as esperanças de uma geração de operários e jovens, a revolução portuguesa colidiu em obstáculos intransponíveis. A revolução portuguesa, a tardia, a democrática, teve o seu momento à deriva, descobriu-se perdida e terminou derrotada. Mas foi, desde o início, filha da revolução colonial africana e merece ser chamada pelo seu nome mais temido: revolução social.“1
Grandes herdades e fábricas ocupadas pelos trabalhadores. De todo o povo que se rebelava, os operários industriais e os trabalhadores agrícolas do Ribatejo e Alentejo, surpresos com a sua própria força, avançavam destemidamente e atemorizavam a burguesia, quer a oposicionista ao antigo Regime quer a colaboracionista.
A Contra-Revolução
Tal como em todas as outras revoluções, houve de imediato a resposta do sector que se opunha à mudança. Foram inicialmente tentados dois golpes que fracassaram. Só em Novembro de 1975, através de um auto-golpe preparado pelo sector mais reaccionário das FA, se restabelece a cadeia de comando dentro do MFA e leva a cabo uma poderosa purga para varrer os elementos mais à esquerda. Esta posição de força da burguesia entrelaçou-se com a força da mentira e do medo usadas em larga escala. Os partidos PSD/CDS que davam abrigo aos aliados do Estado Novo, e por outro lado, o PS e o PCP, estavam juntos para assegurar uma “transição democrática”, ou seja, consolidar a mudança do Regime, mas manter inalterado o Sistema, o Regime e o Estado capitalistas. As fake-news, financiadas com dinheiros do imperialismo, espalharam-se pelos meios de comunicação. A direita, o PS e o imperialismo mundial, com temor da mobilização popular e da força organizativa do PCP (e da possibilidade das suas bases e apoiantes ultrapassarem as suas direcções), amedrontavam as populações com um hipotético golpe do PCP para transformar o país “numa ditadura comunista”.
A radicalidade da situação portuguesa, e o “girar à esquerda” da classe trabalhadora e dos sectores intermédios, leva a que os partidos de direita, para sobreviverem, proclamem, hipocritamente, os ideais da esquerda.
Vale a pena recordar Freitas do Amaral e Sá Carneiro para vermos até onde a direita pode ir:
Recordemos a sábia quadra de Zeca Afonso, na sua música “viva o poder popular”:
“A palavra socialismo
como está hoje mudada
de colarinho à Texas
Sempre muito aperaltada”
Resistência feminina ao Estado Novo
O Regime oprimia a mulher a todos os níveis: desde o trabalho, à educação, passando pela família e questão sexual e amorosa. Ao contrário dos homens que podiam votar desde 1945, mesmo que analfabetos, elas só poderiam votar caso tivessem a escolaridade mínima obrigatória ou se fossem “chefes de família” (viúvas ou marido ausente) para além de terem que ser consideradas “idóneas”. A lei considerava um “crime de honra” a morte da mulher adúltera às mãos do seu marido, ou seja, ficava sujeito a uma multa e a um desterro da comarca durante 6 meses.
Até 1969, quando Marcelo Caetano sucedeu a Salazar, as mulheres só podiam viajar para o estrangeiro com o consentimento do marido. Até 1973 o adultério era crime. No caso da mulher a pena podia ir de 2 a 8 anos, no caso do homem estava previsto apenas uma multa, caso este levasse a amante para a “casa conjugal”. Um marido que prostituísse a mulher não era preso, sujeitava-se a uma multa, desterro e perda de direitos políticos durante 12 anos.
O conceito “chefe de família”, só desaparece em 1978. Até aí, os maridos detinham a autoridade sobre as mulheres e bens, cabendo-lhes a eles a administração dos mesmos. Tinham também direito de desautorizar que elas tivessem determinadas actividades profissionais.
As mulheres trabalhadoras, brutalmente oprimidas e exploradas no antigo Regime, libertaram-se das amarras e foram, em determinados momentos, actrizes principais, para surpresa de uns, vergonha de outros e ódio de alguns, da resistência ao Salazarismo. Destacavam-se nos protestos, surpreendiam nas exigências, apavoravam a moral vigente. Saíram das suas vidas privadas de sofrimento, subserviência e opressão, e foram à conquista. Fizeram greves violentíssimas, lutaram arduamente por trabalho digno e pelo direito ao pão. Eram Catarinas e Marias, por vezes, contando só com as suas forças, uma vez que os maridos (mesmo quando eram contra o Regime), não raras vezes, as desencorajavam de fazer oposição.
Na década de 1940 o Regime viu-se confrontado com greves fortíssimas que se alastraram por todo território nacional. Foram as operárias têxteis do distrito de Braga, que logo no inicio da década (1941), deram o mote para que seria de forte oposição operária ao Estado Novo.
No fim do ano de 1941, na serrana Covilhã, poderosas greves dos operários dos lanifícios paralisam a cidade. Numa das greves que se realizaram na cidade, uma numerosa marcha operária desfila e desafia as autoridades, nela se destacam as mulheres como principais incitadoras do protesto.
“Depois da paralisação, em 5 de novembro, de quase todas as fábricas, a repressão caiu sobre os operários, não conseguindo, porém, evitar que realizassem uma manifestação com milhares de pessoas, na qual se destacavam grandes grupos de mulheres”2
Na mesma obra, a historiadora Irene Pimentel relata a centralidade da mulher neste período de luta noutros pontos do país (Almada e Barreiro):
“(…)foram vistas mulheres, tradicionalmente arredadas do espaço público, a atirar pedras aos elétricos conduzidos por fura-greves. Com os filhos no regaço, muitas delas também participaram nas “marchas da fome”, bem como nas concentrações e assaltos às lojas. Com bens e géneros açambarcados.”
A história da resistência à oposição não se fez só no masculino, foram muitas aquelas que se libertaram das correntes da opressão e lutaram afincada e corajosamente pelos seus direitos. E se o 25 de Abril, do ponto de vista jurídico, transformou o direito das mulheres a verdade é que há ainda um longo caminho a percorrer.
Muito por conquistar
Quase meio século depois da Revolução de Abril as mulheres continuam a receber menos pelo mesmo trabalho, são a maioria dos pobres, a violência doméstica continua a marcar o nosso quotidiano e a benevolência com os agressores continua a ser a regra. A força, a audácia e a persistência de todas aquelas que lutaram contra o Regime fascista e que sonharam por melhores vidas quando fizeram Abril, iluminam o longo percurso que temos que fazer até à igualdade plena entre homens e mulheres.
Castro
Notas
1 Arcary, Valério militante do MAIS e historiador em https://pt.linkedin.com/pulse/revolução-portuguesa-197475-uma-solitária-valerio-arcary
2 Pimentel, Irene “História da oposição à ditadura (1926-1974)”Porto:Figueirinhas 2014, pág 212
Comentários