As ameaças do ministro da Educação, Mendonça Filho, ao professor que planejou uma disciplina sobre o golpe de 2016 tiveram efeito contrário. A disciplina na Universidade de Brasília (UnB) teve um grande número de interessados e foi defendida pela Reitoria e pelo DCE. Depois disso, várias universidades passaram a oferecer cursos semelhantes, como a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade de Campinas (Unicamp), a UFPR e outras universidades federais.
Carlos Zacarias de Sena Jr, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e colunista do Esquerda Online e do jornal A Tarde, também decidiu ministrar um curso com o mesmo tema e que conta com 23 professores da UFBA. Desde que anunciou a disciplina, tem sofrido ataques na internet e declarações de solidariedade. Nesta entrevista para o Esquerda Online, ele contou como surgiu a ideia, discutiu a validade científica da iniciativa, as diferentes narrativas sobre o golpe e criticou a tentação autoritária do MEC. “Na universidade, quando divergimos, escrevemos, polemizamos, mas não tentamos impedir o outro de falar”, afirmou.
Por Ademar Lourenço, de Brasília (DF)
Como surgiu a ideia de ministrar a disciplina?
Carlos Zacarias – Eu vinha acompanhando a repercussão da oferta da disciplina na UnB a partir da tentativa de intervenção do ministro da Educação, que soou muito mal na academia e nos setores democráticos. Outras pessoas também vinham no mesmo movimento. Pelas redes sociais se criou um imenso sentimento de indignação quanto à tentativa de atentar contra a autonomia universitária e a liberdade de cátedra. Vi que algumas pessoas começaram a se movimentar para criar disciplinas em outras universidades com o mesmo nome. Na minha programação de disciplinas para 2018.1 eu estava escalado para oferecer um Tópico Especial em História. Estava elaborando um programa sobre o golpe e a ditadura de 1964 a 1985 no Brasil. Então pensei que podia transformar minha disciplina numa disciplina igual ao dos professores da UnB. Quando propus isso no grupo de WhatsApp da minha linha de pesquisa na pós-graduação, vários docentes logo se prontificaram a vir compor a equipe comigo. Depois soube que já haviam outras pessoas pensando a mesma coisa na UFBA e terminamos por juntar mais de 20 professores nesse projeto.
Alguns criticam o curso porque ele não teria base científica. O que acha disso?
Carlos Zacarias – As bases científicas nas ciências sociais e humanas são distintas das de outras ciências, então pode haver interpretações distintas sobre muitas coisas, como podem haver paradigmas rivais coexistindo em conflito por muito tempo. É verdade que não há consenso sobre o golpe de 2016. Há pessoas que acham que não foi golpe e há diversas narrativas sobre o momento em que as coisas começam a acontecer até a aprovação do impeachment. Mas há divergências sobre muitas outras coisas que hoje nos parecem mais óbvias.
Parece improvável que poucos questionariam que houve um golpe em 1964. Mas há divergências quanto ao fato de que foi um golpe militar ou um golpe civil-militar. Entre os que acham que foi um golpe civil-militar, há os que pensam que se tratou que o componente civil foi um componente de classe e os que acham que o componente civil deve-se ao fato de que setores da sociedade civil apoiaram o golpe. Há divergências sobre a ditadura: ela foi militar ou foi civil-militar? E há também divergências quanto à duração da mesma. O fato de existir divergências não significa que se trata apenas de opinião, porque uma hipótese para se afirmar precisa de lastro, de evidências e de algo que a sustente.
Portanto não há sentido em dizer que não há base científica, porque as bases científicas vão sendo fortalecidas na medida em que boas hipóteses são articuladas dialogando com as evidências que vão se revelando. Sobre 2016 há cada vez mais evidências de que não houve crime de responsabilidade do governo de Dilma, de que houve uma articulação das classes dominantes através da FIESP, dos banqueiros e de outros setores, que aliados ao judiciário, à imprensa e ao parlamento, conspiraram para depor o governo. Por conta do que hoje já se sabe, as hipóteses em torno do golpe vão se fortalecendo e alcançando o consenso possível na academia.
Como o golpe de 2016 será abordado durante o curso?
Carlos Zacarias – Não há uma única forma de abordar o golpe. Há quem diga que o golpe começou em 2013, quando as direitas e as classes médias desceram às ruas incentivadas pela grande imprensa que fomentou o ódio aos mais pobres. Há quem diga que revoltas nas dimensões das ocorridas nas Jornadas de Junho comportam muito mais do que uma única posição e que o fato de os movimentos sociais estarem atrelados ao governo que começava a desmoronar, contribuiu imensamente para a desocupação das ruas pelas forças progressistas e a ocupação do espaço pelas direitas.
Prefiro essa última narrativa, que se articula com muitas outras questões que não posso desenvolver aqui. O fato é que há maneiras distintas de abordar o acontecimento que a equipe de 23 docentes não pretende resolver no curto espaço do desenvolvimento da disciplina. Todavia, se há muitas divergências e imensa pluralidade nas abordagens, o sentimento predominante é que houve golpe e que a pouca democracia corre riscos.
A perseguição do ministro da educação pode intimidar os professores a dar a disciplina?
Carlos Zacarias – A postura do MEC só confirma que é necessário discutir o futuro da democracia no país, porque se se tratasse de um governo eleito, isso dificilmente aconteceria. Na universidade, quando divergimos sobre os assuntos, escrevemos textos, polemizamos, mas não tentamos impedir o outro de falar. Há debates sobre muitas coisas e na maioria das vezes os debates são quentes, porque a universidade é algo vivo e pulsante. A atitude do ministro demonstra que ele não tem a mínima ideia do que se passa na Universidade e exatamente por isso gerou uma imensa repercussão negativa, representando um tiro no pé, pois fortaleceu o sentimento sobre o fato de que é necessário defender a universidade e é urgente defender a democracia.
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