A serviço de quem está o obscurantismo e a censura?

O ano de 2017 foi de grandes polêmicas nacionais. Da conjuntura política – com os ataques e as reformas do desgoverno de Temer -, até o primeiro close em uma bunda com celulite na história do audiovisual brasileiro no clipe da Anitta. Esses, como diversos outros debates, ocorreram nos mais diversos setores da sociedade, e apresentam a internet cada vez mais como espaço de acesso e inclusão nessas polêmicas, ao mesmo tempo em que as redes sociais dão voz para que cada usuário possa elaborar e manifestar suas ideias e opiniões.

Por Lara Lima e Alexandre Velden, do Rio de Janeiro

Como todo avanço não tem apenas um lado na moeda, como revela o estudo realizado pela FGV “Robôs, redes sociais e política no Brasil”, robôs e perfis falsos em redes sociais são utilizados para aumentar o alcance e a relevância do conteúdo produzido por grupos políticos, como é o caso do Movimento Brasil Livre (MBL). Estes perfis falsos criam interação e engajamento, fazendo com que conteúdos apareçam com maior relevância nas ferramentas de buscas e nas redes sociais, dando a esses grupos o poder de pautar os debates do momento na sociedade e na imprensa nacionalmente.

Nesse segundo semestre de 2017 vimos uma enxurrada de notícias sobre ações de boicote e censura a exposições, performances e eventos culturais e acadêmicos que tinham como tema a identidade de gênero e a sexualidade. Ataques como as acusações de pedofilia em torno do artista Wagner Schwartz por sua performance “La Bête” no Museu de Arte Moderna de SP; os ataques físicos a filosofa Judith Butler no aeroporto de Congonhas, após sua vinda para o Brasil; o cancelamento da abertura da exposição Curto Circuito e da peça Bicha Oca, no qual algumas obras sumiram da exposição que ocorre no “Mês da diversidade” no Rio de Janeiro. Talvez o mais emblemático ataque seja o fechamento da exposição “Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira” no Santander Cultural, em Porto Alegre. Após ataques liderados por grupos de pessoas ligadas ao MBL, o centro cultural ligado ao Banco Santander, decidiu fechar a exposição lançando uma nota em sua rede social onde pede desculpas às pessoas que se sentiram ofendidas pelas obras de arte expostas. Esses casos ganharam grande repercussão na internet e nos meios de comunicação, levantando a debates, cobrando posições de artistas e instituições de cultura e gerando querelas judiciais sobre restrições etárias e o “poder de censura” a exposições. A ofensiva conservadora ao “Queermuseu” está longe de ser apenas um debate sobre o “conteúdo” de suas obras, como se demonstrou na perseguição a seu curador. Gaudêncio Fidélis foi intimado a prestar esclarecimentos para a “CPI dos Maus Tratos”, que investiga maus tratos a crianças e adolescente, com um mandado de condução coercitiva aprovado pelo Ministro do STF Alexandre de Moraes. Com apoio da classe artística e setores da esquerda, Gaudêncio conseguiu garantir seu direito de não ser escoltado para a reunião, tendo o pedido de condução coercitiva cancelado após apelo de seu advogado.

O ataque dos arautos dos “bons costumes” reverberou e influenciou instituições privadas a não se “comprometerem” com o debate sobre a identidade de gênero, como o diretor do Instituto Santander Cultural que alegou não ter qualquer gerência ou comprometimento sobre o “Queermuseu” em seu depoimento para a CPI. Gaudêncio, por sua vez, deu uma aula sobre políticas culturais, curadoria museal e bom senso: “Essa é uma exposição que tem um potencial artístico tão extraordinário, que levanta um volume de obras, que é de extrema relevância para o patrimônio e para a arte brasileira, que quando junta em confluência com essas questões, que dizem respeito aos próprios aspectos que a exposição retrata, quando isso tudo é colocado dentro de uma plataforma de diálogo e de debate, que essa exposição essencialmente tinha como objetivo, e quando então finalmente nós temos essa tragédia do fechamento dessa exposição, o que passa a ser fundamental para a sociedade brasileira, é não mais o mérito da exposição sob o ponto de vista artístico, mas essas questões relativas a censura, a liberdade de expressão, e ela se transforma em um debate muito acalorado, mas que já vem também alimentado por um conjunto de iniciativas, na minha perspectiva de teor muito obscurantista, que atacaram a exposição e que alimentaram uma rede muito extensa de difamação sobre as obras dessa exposição e sobre a maneira que a exposição foi organizada.”

Se houve ataques de um lado, do outro diversos profissionais da cultura responderam organizando manifestos e manifestações a favor da liberdade de expressão, como a Ocupação em frente ao Museu de Arte do Rio, em um dia de manifestações culturais e debates contra a censura encabeçado pelo movimento 342 Artes e pelo coletivo Censura Nunca Mais. Manifestação similar ocorreu em São Paulo no MAM-SP – aos gritos de “Fora Dória” – em resposta aos ataques organizadas por uma página de FB apoiadora de Bolsonaro – que incluíram agressões físicas aos funcionários do museu -, após a performance de Wagner Schwartz.

Partindo da ideia de que esses ataques conservadores visam o “obscurantismo” – no sentido de alimentar a ignorância tanto sobre temas como a identidade de gênero, como sobre o próprio conteúdo artístico e emancipador das exposições -, é preciso ir para além da “face imediata” do fenômeno e compreender a quem e para que serve interromper – determinadas – exposições e debates. Quando vemos todas as movimentações nos bastidores da política, e confrontamos com esses novos dados sobre o uso das redes sociais para alavancar debates públicos, podemos perceber como esses debates são usados como ferramenta política.

“As direitas” procuram espaço

Sem dúvida, muita coisa mudou de 2013 para cá. Não apenas a esquerda e os habituais lutadores foram às ruas, mas uma parte significativa da população lotou centenas de avenidas pelo Brasil. Os meios de comunicação tiveram que lidar com a ebulição social e de repente “ir para a rua” voltou a ser – dependendo do caso, “sem vandalismo” – legitimo. Junto ao grande desgaste do governo petista, a direita se movimentou e criou novos grupos e figuras para disputar as pautas de mobilização. Surgiram grupos como o MBL, Vem pra rua, etc, organizações que mentirosamente apontavam seu compromisso com os “anseios populares”. O grupo “apartidário” MBL, por exemplo, formou suas figuras públicas e não tardou a eleição de 2014 e 2016 para apresentarem candidatos a partir de dezesseis partidos, tanto tradicionais – DEM, PMDB, PSDB, PPS – como fantasiados de NOVO.

Se já é difícil argumentar a suposta “independência” desses grupos devido a essa ligação partidária, um olhar sobre quem os financia deixa claro que trata-se de uma empreitada envolvendo organizações internacionais de longa data, que buscam crescer seus tentáculos sobre as diversas economias pelo mundo através das chamadas “Think Tank”, instituições que atuam difundindo conhecimento e ideias sobre assuntos estratégicos visando influenciar assuntos políticos e econômicos de diversos países. Como diversos estudos e reportagens vem demonstrando, instituições criadas no Brasil desde a década de 1980 – Instituto Liberal, Instituto Millenium, Instituto Mises Brasil, Estudantes pela Liberdade – possuiriam conecções financeiras e políticas com grandes corporações de fora como Atlas Network, Cato, Heritage Foundation, Students for Liberty. Dessa forma, fica claro o compromisso dessas organizações com as pautas de “privatização” e “desburocratização” dos negócios no Brasil, o que na verdade é transferencia de patrimônio público para a iniciativa privada, assim como manutenção dos lucros dos grandes, tirando direitos trabalhistas e previdenciários da maior parte da população.

Além disso, de 2013 para cá a “direita tradicional” foi desacreditava ao ter seus principais porta vozes envolvidos em delações e longínquos esquemas de corrupção, como o ex-possível presidenciável Aécio Neves (PSDB) envolvido no escandalo da JBS. Buscando se distanciar da “roubalheira de sempre” da política, setores como o MBL cada vez mais percebem na agenda conservadora uma forma de se afirmarem como bastiões da moral, incorruptíveis nos costumes e no campo econômico. Jair Bolsonaro é uma das figuras que busca espaço ai, se colocando acima dos partidos e dos “interesses econômicos”, apresentando uma agenda política restritamente moralista. Muito brada “contra a esquerda”, “contra a ideologia de gênero”, mas nada diz quando perguntado sobre seu programa para a economia ou saúde, temas sobre os quais demonstrou zero conhecimento ao ser questionado a poucas semanas. Sem dúvida, seu “desconhecimento” não será descompromisso com seus financiadores de campanha.

Se há diferenças entre esses setores, é certo seus compromissos com seus próprios negócios, assim como com seus financiadores. Esses partidos e organizações estiveram em unidade mobilizando um golpe parlamentar ao longo de 2016, alguns negociando o “bote por cima”, outros dando sustentação na “opinião pública”, fermentando as manifestações “coxinhas”. Se o governo petista escolheu ao longo de seus 14 anos a conciliação com os partidos da “ordem” em nome da governabilidade e não deixou de atacar os direitos e conquistas quando foi necessário, é certo que também nunca foi aceito de bom grado pelas elites. Na primeira oportunidade derrubaram Dilma e avançaram ferozmente sobre os direitos dos trabalhadores, aumentando a precariedade do trabalho e da vida dos trabalhadores em nome da manutenção de seus lucros.

Com Temer, as diversas reformas como a trabalhista e da previdência, buscam jogar para baixo a conta do andar de cima, sem mexer com os privilégios, os especuladores rentistas, as grandes fortunas, e nos negócios dos diversos financiadores da corrupção.

Guinada conservadora da sociedade ou oportunismo da direita?

Sem dúvida, o conservadorismo existe em nossa sociedade de forma “difusa”, assim como o discurso de ódio contra as minorias. Ele também existe de maneira “organizada” em diversos partidos e grupos, e se expressa nesses ideologicamente e programaticamente. No entanto, é preciso atentar para seu uso “organizado” tão oportuno nesse momento de instabilidade, quando busca “obscurecer” o debate programático sobre as saídas políticas para o país, apontado como saída uma cartilha moral dos bons costumes. As características que perpassam nossa constituição histórica como a escravidão e o racismo, o autoritarismo das instituições, o Estado nas mão das elites, a nossa dependência econômica do imperialismo e um longo etc, são jogados para escanteio. Juntando alhos com bugalhos, os conservadores dão resposta “morais” aos problemas históricos, como se esses se resolvessem com a interdição de certos debates que – queiram ou não – avançam na sociedade.

É preciso lutar contra o “obscurantismo” e as “novas formas” de censura dos setores conservadores travestido em “boicote” e uma suposta ideia de que a maioria da população é conservadora, religiosa e não quer certos “exageros”. Essas ações de censura buscam estardalhaços políticos sobre qualquer atividade que se proponha a avançar nos debates sobre a dignidade, os direitos e a conquista de espaço das minorias. Mas também é preciso esclarecer quem são os agentes dessa cartilha ideológica conservadora e quem financia e se beneficia dessa retórica. O “obscurantismo” das artes é parte de um projeto mais amplo de poder e sociedade que procura “obscurecer” tanto determinados tipos de artes, como “invisibilizar” as minorias. Essa invisibilidade serve para a manutenção de um “status quo” conservador de forma dupla: ao não permitir a tomada de consciência do gênero como construção histórica e o direito ao corpo que cada um possui, também joga contra a identificação das demandas sociais e econômicas coletivas dessas minorias e joga contra o reconhecimento da “marginalidade” histórica a que as minorias foram submetidas. E é por isso que a censura conservadora aparece cada vez mais tanto em exposições de arte, como em debates e espaços que buscam projetos emancipadores, alternativos e desalienantes de sociedade.

Para não restar dúvidas sobre o que se trata, lembro de uma breve passagem que tivemos o desprazer de assistir pela televisão. Há algumas semanas, em um programa de auditório noturno, a apresentadora Luciana Gimenez perguntou a Alexandre Frota sua opinião sobre a performance de Wagner Schwartz no MAM, contra quem o ator havia aberto uma representação no Ministério Público e feito uma campanha de desmoralização. Após uma enxurrada de bobagens Frota diz: “(…) essa é a arte que é pregado, por essa gente, de esquerda,(…), eu preciso dizer, é uma gente sórdida, uma gente suja, que prega uma arte vagabunda (…).”

Como a vida já é cheia de desprazeres, nos recusamos a terminar com as palavras desse sórdido personagem. Nos parece anos luz mais interessante os apontamentos feitos por Gaudêncio Fidélis em seu depoimento a CPI dos maus tratos, no qual seu senso histórico aponta a importância da arte e o papel social desalienante que uma exposição pode cumprir, nos ligando ao passado, mas principalmente nos fazendo refletir sobre o presente e que futuro estamos construindo:

“Em diversas das exposições que eu realizei, houve algum tipo de polêmica. Porque eu acho que exposições não são um lugar de consenso. Elas são um lugar de debate, de dissenso e de construção do diálogo. Sobre a arte e sobre todas aquelas questões que dizem respeito a sociedade em que nós estamos vivendo. Porque uma exposição, mesmo uma exposição histórica, ela se constitui como um evento e um fato contemporâneo. Ela trás pra nós as questões do passado ou apontam para as questões futuro, que de alguma maneira, possam dizer respeito aos anseios da sociedade, às questões, aos problemas, às críticas que tem que ser feitas, e etcetera.”

Ainda é preciso lutar muito contra o conservadorismo para que a “ideologia de gênero” seja uma “questão do passado”. É preciso lutar contra o conservadorismo para que as “questões do futuro” nos pertençam.

Imagem: Getty Images