Anitta, identidade e objetificação das mulheres brasileiras
Publicado em: 21 de dezembro de 2017
Por: Izabella Lourença, de Belo Horizonte, MG
A motivação para escrever esse texto surgiu a partir da publicação da colunista do Esquerda Online Jessica Milaré com o título ‘Vamos falar de celulite’, no qual ela afirma que a produção do clipe Vai Malandra, de Anitta, “contesta, em vários aspectos, as regras dos clipes de músicas, mostrando mulheres e homens reais, em sua diversidade de formas e cores”. O intuito das linhas decorrentes é me arriscar a fazer uma análise mais profunda e crítica do clipe da artista, que não tem a ver com as críticas moralistas contra o Funk e a sensualidade da cantora.
“Nem tudo o que parece libertador na superfície, de fato o é na essência. É preciso não confundir cultura popular com a sua apropriação pela indústria cultural”, disse Andrea Caldas, diretora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Paraná, em texto originalmente publicado em seu facebook e publicado na revista Fórum.
Vai Malandra é o quarto e provavelmente o último da série xeque-mate de clipes lançados pela cantora impulsionando sua carreira internacional. O primeiro, lançado em setembro, é Will I See You; o segundo é Is That For Me, lançado em outubro, onde Anitta aparece na Amazônia com diferentes fantasias cantando em inglês e o terceiro é Downtown, que foi seu lançamento de novembro em espanhol latino.

O último clipe da trilogia, o tão aguardado Vai Malandra, promete ser o Hit do Carnaval e conta com participações especiais, os brasileiros MC Zaac, DJ Yuri Martins e Tropkillaz e o rapper norte-americano Maejor. Além disso, a direção foi feita por Terry Richardson, o fotógrafo que acumula acusações de assédio sexual e, por isso, foi banido recentemente da editora Conde Nast, responsável por revistas como a Vogue.
Celulite
A grande sacada da cantora foi começar o clipe exibindo a bunda de maneira natural. Diferentemente de seus próprios clipes anteriores, Anitta mostra o bumbum sem photoshop nem maquiagem, assumindo que tem celulite. Ela levantou os ânimos de muitas mulheres que sofrem cotidianamente tentando alcançar o inexistente corpo “perfeito”. Bola dentro da cantora!
Sejamos justas. Anitta não é pioneira nessa pauta. Em 2012, Tati Quebra Barraco deu uma entrevista dizendo “Tenho mais celulite na bunda, parece que eu fui fuzilada. Mas tudo bem, se não tiver, não é mulher, né?” . Preta Gil, no ano passado, recebeu uma chuva de ofensas ao seu corpo após um show e fez questão de respondê-las: Meu corpo, minhas gordurinhas e minhas celulites não medem o meu caráter, a minha garra. Tenho celulite sim e não tenho vergonha delas. Não vou me render, nem virar escrava de um padrão de beleza que não é o meu. Eu também sou padrão de beleza, pois a maioria da mulher brasileira tem o meu biótipo.
Bolas fora
No exterior, principalmente nos países imperialistas, a imagem que se tem do Brasil é de um país que se resume em selvagens da floresta e favelas nas cidades com ‘malandros’ e mulheres sempre prontas para atender os prazeres sexuais dos homens, principalmente no Carnaval. As mídias tradicionais sempre reforçaram esse estereótipo, lembremos a Globeleza. Mudam as formas, mantêm os conteúdos. A carreira internacional de Anitta corrobora essa imagem brasileira.
Parece implicância? Mas discursos como esses sustentam a imagem que leva o Brasil a ser uma das principais rotas de turismo sexual e o tráfico de mulheres. Todas as vezes que eu entro em um ônibus e vejo imagens de meninas desaparecidas, me pergunto qual a probabilidade de terem sido pegas pelo tráfico e exploração sexual de mulheres que vêm aumentando no Brasil. Legalmente, vendem uma imagem. Ilegalmente, vendem mulheres.
Questionar a objetificação das mulheres não pode ser um aspecto menos importante do que a celulite da Anitta. As mulheres negras lutam uma vida inteira contra sua hipersexualizacão e grande parte do clipe é dedicado a mostrar a exposição de mulheres com a bunda pra cima e um homem (MC Zaac) jogando óleo e passando a mão em seus corpos, enquanto a parte que mostra certa variedade de corpos femininos não chega a ocupar 30 segundos no clipe.
Desde a primeira vez em que vi esse clipe, me remeteu a uma cena repugnante em que as notícias via google afirmam ser de um pastor lambendo a bunda das fieis, que também estavam ali voluntariamente.
É entendível que as mulheres brancas no Brasil ainda sofram com o papel de “recatadas” e muitos funks trazem na letra a afirmação sexual das mulheres. Mas esse não é o caso de Anitta nesse clipe. A cantora aparece fantasiada de negra para retratar a hipersexualização das mulheres na favela brasileira. Digo fantasiada porque essa não é a identidade que ela assume no dia a dia. Como o desejo é que mulher negra não seja fantasia de Carnaval, a torcida é para que Anitta assuma sua negritude, por ela e por tantas jovens que ela influencia.
Nenhuma mulher pode se libertar sexualmente enquanto outras são hipersexualizadas. O conteúdo que liberta da celulite, mas escraviza da objetificação não fortalece a luta feminista. Anitta e sua produção sem dúvidas fizeram um grande sucesso comercial. Estudou o mercado do consumo musical e fez um produto que vende e gera milhões. Não à toa, a cantora está no top 100 do Spotify – ou seja, é uma das mais ouvidas no planeta. Mas, o que vende no mundo capitalista quase nunca é o que fomenta um ideal de libertação das oprimidas.
Criminalização do Funk
A placa da moto que aparece já nos primeiros segundos do clipe é do PL 1256 que visa criminalizar o funk. Mais uma bola dentro de Anitta! Essa batalha é de todos que defendem uma arte livre e que lutam contra o extermínio da cultura periférica. Isso independe de qual a opinião sobre Vai malandra.
Muitos cantores de estilos musicais marginalizados já cometeram graves erros: Emicida quando lançou a música Trepadeira e tantas músicas Racionais, como Da ponte pra cá, que ao mesmo tempo em que gera inúmeras reflexões sobre a periferia paulista, representa a mulher como mercadoria. As críticas quanto aos elementos regressivos das músicas são necessárias para a resistência cultural. Ninguém se liberta oprimindo o outro.
Esse foi um desabafo em defesa do funk, do Carnaval e da libertação sexual de todas as mulheres, aquelas que passam a vida tendo sua sexualidade tolhida, assim como as que enfrentam a hipersexualização e objetificação de seus corpos.
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