Pular para o conteúdo
EDITORIAL

Japão: Os limites da vitória eleitoral da coalizão governamental de Shinzo Abe

Fonte: Kyodo News, 22/10/2017

Por Mário Aguena, São Paulo/SP

A antecipação das eleições parlamentares

No dia 28/09/2017, o primeiro-ministro Shinzo Abe anunciou a antecipação em 14 meses das eleições para a Câmara Baixa (corresponde à Câmara dos Deputados no Brasil), que se realizaram no dia 22/10/2017. O governo Abe tomou essa decisão pensando em se fortalecer para prosseguir com seus planos econômico e militar, mas, sobretudo, pretendeu escapar de contingências que trariam muitas incertezas sobre resultados eleitorais em 2018, tais como as ações de Kim Jung-un com ameaças nucleares ou o desempenho da economia japonesa ou global.

Mesmo abalado por escândalos de favoritismo e derrotado nas recentes eleições de Tóquio, alguns fatores foram considerados pelo governo Abe para antecipar as eleições: primeiro, uma recuperação da popularidade por conta da sua postura dura diante da ameaça nuclear norte-coreana, o que atraiu a simpatia de setores da população japonesa; segundo, estava diante de uma oposição enfraquecida por denúncias de corrupção, mas principalmente dividida.

Diante sesse quadro o governo Abe viu a possibilidade de que a aliança governamental entre o Partido Liberal Democrático (PLD) e o Partido Novo Komeito (de orientação budista) assegurasse a manutenção de uma maioria parlamentar qualificada para um terceiro mandato consecutivo até 2021, tornando-se o político a mais tempo no poder no Japão desde a Segunda Guerra Mundial.

A breve campanha eleitoral

O Partido Democrata (PD), então a segunda maior força política do Japão, desintegrou-se no início da campanha eleitoral. Horas após o anúncio da antecipação das eleições, a governadora de Tóquio, Yorike Koike, anunciou a criação do Partido da Esperança (PE), que contou com a adesão de membros do PD, lançando uma disputa frontal com o PLD, no governo de forma ininterrupta desde 1955, exceto por um breve período entre 2009 e 2012, quando o PD exerceu o governo. No início de outubro, mesmo sem candidatar-se, pesquisas apontavam 33% das preferências dos entrevistados para Koike como primeira-ministra, enquanto 45,9% preferiam Abe. Ainda em outubro, de uma ruptura do PD, surgiu o Partido Constitucional Democrata do Japão (PCDJ), liderado por Yukio Edano.

A campanha eleitoral durou apenas 12 dias (10-22/10). Os debates giraram principalmente ao redor da Coréia do Norte, que disparou mísseis sobre o território japonês e no mar próximo do país. Acompanhando esse tema emergia a questão da revisão da Constituição pacifista do Japão.

Com relação ao objetivo de alterar o caráter pacifista da Constituição japonesa, Abe e Koike compartilhavam a mesma opinião. Mas enquanto o apoio ao PE de Koike diminuía conforme o andamento da campanha eleitoral, Abe usou habilmente a ameaça nuclear norte-coreana como principal plataforma política do PLD. A maioria dos eleitores apoiou a linha dura de Abe contra Pyongyang.

O Komeito, da coalização governamental, opunha-se à revisão do artigo 9 da Constituição, mas aceitava rever outras matérias. O PE e o PCDJ prometeram congelar um aumento de impostos previstos para outubro de 2018 e abandonar a energia nuclear. Mas não tiveram nem tempo nem recursos para cobrir os 289 distritos eleitorais em que os eleitores escolhiam um candidato e o mais votado era o único eleito pelo distrito.

A coalizão governamental saiu vitoriosa ganhando 313 das 465 cadeiras (a Câmara antes tinha 485 cadeiras, mas uma reforma as reduziu em 10 para diminuir o peso dos votos rurais). O PLD passou de 287 para 284 cadeiras, o Komeito passou de 35 para 29 cadeiras, o PCDJ conquistou 55 e o PE 50. O Partido Comunista Japonês (PCJ) que se opunha à revisão da Constituição pacifista teve a sua bancada reduzida em praticamente 50%, caindo de 21 para 12 deputados.

As contradições do resultado eleitoral

A coalizão governamental obteve uma vitória eleitoral, mas a participação dos eleitores com 53,68% foi a segunda mais baixa desde a Segunda Guerra Mundial (a participação foi maior somente à da eleição de 2014 com 52,66% para mesma Câmara).  Em 2017 foi a primeira eleição que jovens de 18 e 19 anos puderam votar. O tufão Lan impediu alguns eleitores de votar, mas ele não constituiu um fator para a elevada abstenção. No Japão é permitido o voto antecipado. Antes de domingo 22/10, 21 milhões de eleitores já haviam votado, um recorde, entre 100 milhões de japoneses aptos. A elevada abstenção não sugere um endosso maciço, nem à ideia de revisar a Constituição pacifista nem à política econômica do governo Abe.

Diante da elevada abstenção algumas coisas podemos afirmar: Michael Roberts parece ter razão quando conclui que a classe trabalhadora japonesa não foi votar, e não foi votar porque não viu nenhum partido representar seus interesses.

Sob o governo Abe, os salários estagnaram ou foram reduzidos e a rentabilidade das empresas voltou a subir. Mas o capital japonês não respondeu investindo. O empresariado japonês preferiu contratar mais mão-de-obra barata do que investir na produção. Há na sociedade japonesa um sentimento geral de que a economia melhorou, há um sentimento otimista no mercado, mas tudo é muito modesto sendo pouco sentido pela maioria da população com salários estagnados e com empregos disponíveis apenas com tempo parcial e mal pagos.

Na campanha eleitoral, Abe reiterou a intenção de aumentar de 8% para 10% o imposto sobre consumo, adiado para outubro de 2019. Em outras palavras, Abe apresentou a promessa de buscar reduzir o déficit público (hoje superior a 130% do PIB japonês) em detrimento do consumo da classe trabalhadora.

Os japoneses estão divididos sobre a necessidade de alterar a Constituição pacifista: de acordo com pesquisas 35% está a favor, e 40% é contra modificar a Constituição.

O artigo 9 da Constituição, no primeiro parágrafo, renuncia explicitamente a guerra, “para sempre”, e no segundo parágrafo afirma que “forças aéreas, marítimas e terrestres como qualquer outro potencial de guerra, nunca serão mantidos”. As forças militares japonesas chamadas de Forças de Autodefesa (assumiu esse nome 1954, após a Guerra da Coréia quando a Reserva Nacional da Polícia criada em 1950 foi transformada em Força de Autodefesa) conservavam quase que exclusivamente funções de proteção territorial, tais como assistências em tragédias como no terremoto seguido de tsunami em 2011. Mas o primeiro-ministro Abe vem interpretando o artigo 9 como não proibindo o Japão de possuir capacidade “mínima necessária” para se defender.

Parece que Abe pretende apresentar uma proposta que mantém intactos os dois parágrafos existentes, e adicionar outro parágrafo de forma a validar a existência de Forças de Autodefesa, isto é, dar-lhe um status, um caráter militar. Para Abe essa alteração seria destinada a por fim aos argumentos de estudiosos e outros de que Forças de Autodefesa são inconstitucionais.

O resultado eleitoral pode abrir espaço para uma revisão da Constituição pacifista do Japão. A revisão constitucional necessita de uma aprovação por maioria de 2/3 na Dieta Nacional do Japão (formada pela Câmara dos Representantes e pela Câmara dos Conselheiros, respectivamente, Câmara Baixa e Alta) e da aprovação por um referendo popular.

O problema de Abe não será conformar maiorias para aprovar seus projetos ou mesmo obter os 2/3 necessários à revisão da Constituição na Dieta. A questão central para Abe será como convencer os japoneses para os seus projetos imperiais diante de um referendo popular num cenário econômico pessimista para a maioria da população e com a memória histórica do que foi o desastre causado ao país pela II Guerra. Abe sabe do imbróglio pós-eleitoral e, ao menos em anúncio feito, prometeu abandonar o prazo-limite para abordar o tema, que estabelecera até 2020.