Por: Igor Dantas, do Rio de Janeiro, RJ
Esse texto não visa reinventar a roda, ou mesmo trazer relevantes novidades ao tema da questão nacional. Seu intuito é bem mais modesto, apenas recolocar em pauta uma discussão que muitas vezes é ignorada e, em outras tantas ocasiões, tratada de maneira rasa e formal: a relação dos marxistas com o nacionalismo.
Um dos princípios que fundamentam uma práxis revolucionária é o internacionalismo. O socialismo em um só país se mostrou incapaz de coexistir em longo prazo com o sistema capitalista.
Não há dúvidas quanto à importância dessa premissa. No entanto, muitas vezes no afã de se posicionar como defensor (a) de um internacionalismo ferrenho e puro, muitos militantes honestos se colocam absolutamente contrários a qualquer menção ao termo nacionalismo, independente do contexto envolvido e da realidade concreta.
Este é um equívoco, que em diversos casos se origina ao se realizar uma análise deveras formal da realidade. Obviamente, o conceito de nacionalismo em abstrato se contrapõe diametralmente ao internacionalismo em significado. Mas os marxistas baseiam suas teorias não apenas em conceitos abstratos, tido como absolutos. Pelo contrário, como materialistas dialéticos, sempre se deve buscar o estado que aquele conceito se aplica na realidade concreta, observando todo o contexto histórico no qual ele está inserido em determinada situação, suas contradições e peculiaridades. Vejamos um caso elucidativo:
A questão nacional na União soviética de 1922
Nos primeiros anos após a revolução russa de outubro de 1917, ocorreram alguns conflitos envolvendo as nações antes dominadas pelo império czarista e o partido Bolchevique. Um dos casos mais alarmantes se deu nas relações com as nações da região do Cáucaso (Geórgia e Azerbaijão), que relutavam em aceitar uma unificação, mesmo que em nome do socialismo. Esse impasse chegou a ponto de Sergo Ordzhonikidze, membro do partido bolchevique, ter agredido fisicamente um membro do comitê central do Partido Comunista da Geórgia. O caso acabou contornado e essas nações ingressaram na fundação da União soviética em dezembro de 1922.
O respeito ao princípio da autodeterminação dos povos era, portanto, um dos desafios daquele governo, e a herança nacionalista grão-russa representava um risco para o futuro da União Soviética. Lênin em seus últimos escritos dizia:
“Nas minhas obras a respeito do problema nacional tenho já escrito que a formulação abstrata do problema do nacionalismo em geral não serve para nada. Cumpre distinguirmos entre o nacionalismo da nação opressora e o nacionalismo da nação oprimida, entre o nacionalismo da grande nação e o nacionalismo da nação pequena”.
No que diz respeito ao segundo nacionalismo, nós, os integrantes de uma nação grande, quase sempre somos culpados no terreno prático histórico de infinitos atos de violência e ofensas. Não preciso fazer mais do que evocar minhas lembranças de como nas regiões do Volga trata-se desrespeitosamente os não russos. (2012, p. 84)
De fato essa postura se mostra mais condizente com a realidade local, de coexistência de inúmeras nações, com relações históricas e complexas que os socialistas não podiam simplesmente ignorar, como se após a revolução houvessem passado uma borracha em toda essa questão. Ele conclui:
Por isso o internacionalismo por parte da nação opressora ou da chamada nação “grande” (embora seja grande apenas pela sua violência, apenas como um grande agressor) não deve resumir em respeitar a igualdade formal das nações, mas também respeitar uma tal desigualdade que compense a outra desigualdade, aquela que se produz na vida prática, por parte da nação grande, por parte da nação opressora. (Lenin, 2012, p.84)
E no Brasil?
O que dizer da relação da esquerda brasileira e o nacionalismo? Alguns podem se questionar se possuir uma relação mais preocupada com as questões nacionais não seria um desvio ou de alguma maneira uma adesão à teoria campista e o seu mito de burguesia nacional, progressista e aliada dos trabalhadores em um projeto soberano de nação. De fato, parte da esquerda brasileira se apaixonou tanto por essa hipótese que até após um golpe parlamentar continua a manter relações cordiais e promover alianças com setores burgueses, abandonando, na prática, uma perspectiva revolucionária. A história comprovou mais de uma vez que essa união policlassista deu errado. Isso se trata de algo insustentável num capitalismo dependente como o brasileiro, ainda mais em tempos de crise e forte ofensiva burguesa.
Por outro lado, parte da esquerda socialista ainda secundariza esse debate, elabora pouco sobre o tema e volta os olhos para as revoluções do passado como fórmulas fechadas, aguardando um momento propício para aplicá-las sem qualquer modificação. O que se vê no nosso país é uma barreira entre a esquerda e o nacionalismo, seja ele qual for. Como diz categoricamente Nildo Ouriques (2015):
“Somente a superação do divórcio entre marxismo e nacionalismo (a questão nacional) abrirá as portas para a solução de velhos e novos desafios teóricos e políticos necessários para a reconstrução da esquerda revolucionária no Brasil”.
No entanto, exatamente por essa difícil fase, vivemos um momento de disputa ideológica forte, tanto na sociedade como no campo da esquerda. Coloca-se como urgente a elaboração de um programa para o país. Faz-se necessário um projeto brasileiro anticapitalista que dialogue e se mantenha firme nos princípios internacionalistas, mas que entenda e lide com sensibilidade com nossas peculiaridades e todas as questões que envolvem o desenvolvimento de um capitalismo dependente e periférico, repleto de contradições e desigualdades em relação a outras nações. Enfim, é preciso mostrar que há alternativa diferente da reedição ou de uma suposta “purificação” do programa democrático popular.
Temos relações culturais muito mais próximas com os Estados Unidos e Europa do que com nossos vizinhos latino-americanos e até mesmo com regiões do Brasil fora do eixo Rio-São Paulo. É hora de superar isso, estudar nossa terra, pois é nela que a revolução brasileira está inscrita. É preciso decifrá-la, ou seremos devorados.
Esse debate não pode se restringir a apenas uma organização, tamanha a fragmentação que enfrentamos hoje. Faz-se necessário reunir os setores da esquerda socialista que entendem a importância do tema para a própria sobrevivência das perspectivas reais de socialismo no século XXI.
Imagem: Quadro “A Pátria” de Pedro Bruno
Referências:
OURIQUES, Nildo. O colapso do figurino francês. Disponível em. Acesso em 7 de Agosto de 2016.
LENIN, V.I.. Últimos escritos e diários das secretárias. São Paulo: Editora José Luis e Rosa Sundermann, 2012.
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