Por: Elita Isabela Morais, de Maceió, AL
O dia 25 de julho, Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, foi marcado internacionalmente após o 1º Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas, que aconteceu em 1922, em Santo Domingo, na República Dominicana. Além de marcar esse dia, foi criada também a Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas. No Brasil, com a sanção da Lei 12.987, esse também é o dia nacional de Tereza de Benguela e da mulher negra.
Nesse dia, queremos fazer uma reflexão sobre a invisibilidade das mulheres negras que têm suas vidas cotidianamente marcadas não apenas pelo machismo, mas pelo racismo também, e lembrar que é impossível fazer qualquer análise real sobre a violência contra a mulher no Brasil sem levar em consideração os elementos de raça e classe.
O tema da violência contra a mulher parece, muitas vezes, ser um tema desgastado. Isso acontece não só porque essa temática já vem sendo discutida por muito tempo, mas porque essa realidade, para nós mulheres, é absolutamente devastadora. São as cantadas nas ruas, o assédio sexual nos transportes públicos e nos espaços de trabalho, o medo de andar em ruas escuras durante a noite e ser estuprada, os relacionamentos abusivos que destroem com a sua auto-estima e a sua capacidade de acreditar em si mesma, é a violência física e psicológica constante. Tudo isso e diante dos dados nada animadores, muitas vezes nos faz achar que estamos dando murro em ponta de faca, ou que nossa dor, para os poderes públicos, é irrelevante.
Imagine, então, quando essa dor vai para além do machismo cotidiano. Quando se é condenado constantemente aos piores indicadores sociais, quando a cor da sua pele te transforma no suspeito padrão da polícia, quando suas capacidades enquanto sujeito são o tempo todo questionadas não só pelo fato de você ser mulher, mas por conta da cor da sua pele.
As mulheres negras nunca se encaixaram nos padrões de “fragilidade” que a ideologia patriarcal sempre atribuiu às mulheres na história. Consideradas como propriedade dos senhores de escravos, “essas mulheres eram vistas, não menos que os homens, como unidades de trabalho lucrativas, para os proprietários de escravos elas poderiam ser desprovidas de gênero” (DAVIS, 2016). Portanto, a ideologia patriarcal do “sexo frágil” não se encaixa bem com a história das mulheres negras. É imprescindível, para se verificar os impactos da violência sobre o conjunto da população negra no Brasil, compreender o lugar que ocupa o racismo na formação sócio-econômica do capitalismo brasileiro.
Uma violência machista e racista. Uma violência que mata
Segundo o mapa da violência sobre homicídios de mulheres (2015), entre 2003 e 2013 as meninas e as mulheres negras estavam entre as principais vítimas da violência de gênero no Brasil. Isso é observado, inclusive, diante de uma redução dessas mesmas taxas de feminicídio entre as mulheres brancas. Diante dos cortes promovidos pelo governo Temer no último período no que se refere às políticas públicas para as mulheres, é pouco provável que esse quadro mude. Pelo contrário, a tendência é que se aprofunde.
Pesquisas do IPEA sobre mortes de mulheres por agressões (2016) avaliam que quase dois terços desses casos no último período foram de mulheres negras, sendo elas as principais vítimas da violência machista em praticamente todas as regiões do país. No geral, o perfil das vítimas é de mulheres jovens, negras e com baixa escolaridade. Esses dados apresentam poucas perspectivas de mudança no próximo período.
Informações da secretaria especial de políticas para as mulheres (SPM) demonstram que em 2016 a situação das mulheres negras no campo da violência doméstica manteve a posição nos números de vitimização (Mulheres negras e violência doméstica: decodificando números. GELÉDES, 2017)1.
A violência contra a mulher negra não se resume apenas ao seu aspecto físico. Está relacionada a uma estrutura sócio-econômica racista e a um sistema de saúde e educação precarizados. Segundo o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (2015), as Mulheres negras apresentam índices de alfabetização invariavelmente inferiores ao de mulheres brancas, e quanto mais elevado é o nível de ensino, maior fica a desigualdade entre as mulheres negras e brancas e entre homens brancos e negros.
As taxas de mortalidade materna entre mulheres negras demonstram também a precarização da saúde e as dificuldades de acesso a um sistema de saúde de qualidade para essas mulheres. Segundo o RASEM (Relatório Anual socioeconômico da Mulher), em 2012 os óbitos de mulheres negras correspondiam a mais de 60% das mulheres mortas durante a gravidez e o puerpério. Aqui não se pode deixar de mencionar também que a criminalização do aborto afeta especialmente essas mulheres. E como não poderia deixar de ser, no mundo do trabalho essa violência racista não é diferente, elas estão em maior número nos trabalhos precarizados e mal remunerados.
Esse conjunto de violências físicas e simbólicas se constitui em uma vitimização seletiva, porque embora a violência atinja a todas as mulheres, as mulheres negras e pobres são o alvo preferencial. A violência patriarcal é, portanto, também racista, da mesma forma que é racista e seletivo o sistema penal e penitenciário brasileiro, assim como é racista e genocida a violência policial empreendida pelo Estado contra a juventude pobre das periferias brasileiras.
Um feminismo negro e transformador: reconstruindo nossa história, recontando nossas dores
O movimento feminista nem sempre é um espaço convidativo para as mulheres negras. A origem branca e eurocêntrica desse movimento muitas vezes se constituiu em um impeditivo para uma análise mais profunda dos elementos de raça e classe em seu interior. Falar isso não significar negar o papel histórico dos movimentos feministas, significa apenas reconhecer suas limitações para atuar sobre elas e superá-las. É simplesmente afirmar que o racismo, enquanto ideologia, também encontra lugar nesses espaços na medida em que o discurso da democracia racial encontra eco nas suas fileiras. As mulheres negras marcaram sua presença no interior dos movimentos feministas, brigaram pelo seu espaço (e continuam brigando), e junto com elas a elaboração de um feminismo que leve em consideração os elementos de raça e classe em seu interior.
A presença das mulheres negras, enquanto questionadoras de um movimento feminista majoritariamente branco, tem o papel de recontar a nossa história, de desmascarar a hipocrisia do discurso da democracia racial brasileira que vende a imagem da mulher negra hipersexualizada e “exótica”. Tem o papel de revelar, portanto, que essa tal miscigenação, tão falada para encobrir o racismo brasileiro, nunca foi uma relação harmoniosa, mas fruto de muita violência.
Mesmo diante de tanto aniquilamento, nós, mulheres negras, continuamos aqui. Estamos vivas, em luta, e não poderia ser diferente. Carregamos a herança de nossas ancestrais conosco. Aqualtune, Dandara, Tereza, Luiza, somos todas elas e tantas outras. Continuamos reconstruindo e recontando nossa história. O racismo nos abala é verdade, “mas não deixam nossos neurônios cativos”.
1 Importa destacar aqui que, no governo Temer, a SPM, que já sofria com cortes em seu orçamento também nos governos do PT, perdeu seu status de ministério tendo suas atribuições dadas para o Ministério da Justiça e cidadania.
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