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BRASIL

Uma interpretação do carnaval

Por Bernardo Pilotto, de Curitiba.

Para adoradores, isentões e para quem não gosta, saber qual é a data do carnaval é uma pergunta importante. Afinal de contas, são 4 (em alguns casos até 5) dias de feriado que marcam o fim do verão e o início de fato do ano.

E a forma que é “escolhida” a data do carnaval mostra muito das suas origens: a terça-feira de carnaval é sempre 40 dias antes da Páscoa. Neste período, chamado de Quaresma, a tradição católica colocava a necessidade de jejum, orações, enfim, de uma preparação para a Páscoa. Por conta disso, foi criada uma festa para anteceder este período de provações. E esta festa é o carnaval.

O carnaval é, portanto, uma anti-festa. É o momento de fazer aquilo que é proibido no restante do ano, afinal, você vai ter 40 dias para pagar seus pecados após os festejos. É o momento de tirar a fantasia do cotidiano e colocar a de pirata, rei, colombina, arlequim e tantas outras que a nossa criatividade alcançar.

E a influência cristã no carnaval não é apenas na data: a ideia de um desfile está intimamente ligada a rituais religiosos, como as procissões. Antes do carnaval, já haviam manifestações populares de formato processional, como os festejos da Senhora do Rosário e os ternos de Santos Reis. Esse formato também era visto nas religiões de matriz africana, como no caso dos afoxés vinculados ao candomblé.

Os ranchos surgiram a partir de comunidades baianas no Rio de Janeiro e desfilavam no dia 06 de janeiro, dia de Santos Reis. Até que Hilário Jovino Ferreira teve a ideia de transferir este desfile para os dias de carnaval. A ideia pegou e os ranchos acabaram aceitos também pelas elites cariocas.

Até então, nas camadas mais ricas da população, desde meados do Século XIX, se destacavam, no período do carnaval, os desfiles das chamadas Grandes Sociedades. Já as camadas populares preferiam a diversão em blocos improvisados, especialmente os ranchos, que são um dos núcleos fundadores das futuras escolas de samba.

A partir do começo do século XX, os ranchos foram se afastando de sua origem popular, buscando a aceitação das elites. Buscavam o afastamento dos cordões e blocos, que tinham sua imagem ligada a bagunças e arruaças. Vale lembrar que, durante a República Velha (1894-1930), as manifestações populares, especialmente de cultura negra, eram oficialmente proibidas e reprimidas.

De lá pra cá, o carnaval sempre sintetizou as disputas pelo uso do espaço público da cidade e refletiu as contradições da nossa sociedade.

Ainda hoje, a origem do nosso carnaval ainda se faz presente e não apenas na definição na data. As disputas pela aceitação da festa, por exemplo, continuam. E o seu caráter popular também, se renovando e reinventando a cada ano.

Em tempos de ajuste fiscal e de poderes ocupados quase 100% por setores conservadores, o carnaval tem sido colocado como um inimigo do bom funcionamento da sociedade. Em várias cidades, prefeitos e vereadores ameaçam retirar as verbas públicas para a festa, limitam a venda de bebidas alcoólicas e privatizam a festa (através de parcerias com as grandes cervejarias).

Essas decisões são hipócritas e elitistas. Do ponto de vista fiscal, o gasto com carnaval representa um valor muito pequeno perto do que as Prefeituras gastam com propaganda, dívidas indevidas e injustas (e que precisam ser auditadas) e remuneração de serviços privados. Ainda nesse campo, é preciso registrar que parte do gasto com os festejos é revertido por conta da maior arrecadação de impostos devido ao incremento de comércio, hotéis, etc. Mas, sinceramente, isso é o que menos importa.

O mais relevante é que o cancelamento do carnaval esconde uma visão elitista do papel do poder público em relação à cultura. Isso porque o carnaval de rua é uma festa bastante popular e para muitos é a única acessível. É também, como dissemos acima, uma festa transgressora. E isso incomoda muita gente.

Além de tudo isso, a ausência do poder público favorece a privatização (e consequente elitização) da festa. Em algumas cidades, como Curitiba e Rio de Janeiro, as Prefeituras fizeram acordos com uma cervejaria e aí só se pode vender uma marca de cerveja durante os eventos. Quem ousa vender outra marca, é reprimido.

A ausência do poder público também impacta naquilo que se ouve durante o carnaval. Isso porque apenas os grandes blocos (normalmente ligados a artistas já consagrados e que muitas vezes procuram inovar o carnaval sem muito critério) conseguem apoio do setor privado para efetivar seus desfiles. Sem o poder público, blocos tradicionais tendem a ter ainda mais dificuldade em resistir e existir.

Por fim, é preciso dizer com todas as letras: é sim possível fazer festa em tempos de crise. Eu diria que é ainda mais necessário. Se, nesta sociedade bruta em que vivemos, não pudermos ter nossos dias de extravaso, vamos todos acabar confinados e deprimidos.

*Uma versão reduzida deste texto foi publicada no Jornal Batucada, de Curitiba.

Imagem: Cena de Carnaval, Debret