Por: Lucas Vidal Silva Moraes, mestrando em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará
Usar turbante sendo uma pessoa branca é um problema para a luta contra o racismo? Essa é a grande pergunta que move minha curiosidade de entender o que seria a tão discutida apropriação cultural. Além de ser um conceito aparentemente vago que se afirma pela internet em tempos recentes, acompanha o processo de difusão mercadológica de artigos vindos de outras localidades e gestados em outras culturas como as do Oriente Médio e de África.
A circulação dentro do mercado de consumo brasileiro de turbantes, tecidos com estampas africanas, brincos e colares de penachos, entre outros, também traz consigo uma intensa discussão sobre a possibilidade de seus usos, ou não, por pessoas que não fazem parte desses grupos sociais os quais gestaram esses artigos. Alguns segmentos do movimento negro afirmam que pessoas brancas que utilizam alguns desses artigos estão se apropriando de outras culturas, contribuindo para o processo de colonização e de invisibilização de símbolos de resistência.
Esse texto foi escrito na tentativa de compreender esse debate de uma maneira mais ampliada, partindo do pressuposto de que é tarefa do movimento negro educar e desconstruir os sujeitos não pretos sobre o preconceito racial de maneira a fortalecer nossa luta. No entanto, não é o que vemos hoje, principalmente na internet, onde a geração negra do tombamento, ao trabalhar com alguns processos anti-educativos, traz sérios problemas para outras militâncias comprometidas com o fim do racismo patriarcal que é basilar no contexto brasileiro.
Primeiramente, é importante realizar uma velha e necessária autocrítica aos movimentos sociais como um todo. O afastamento dos debates sobre classes sociais após a queda do muro de Berlim, a fragmentação e a setorialização de algumas demandas antes esquecidas pelos movimentos revolucionários fizeram parte de um processo histórico de reação ao fato de o stalinismo ter ganhado proporções mundiais, degenerando uma das mais conhecidas tentativas de socialismo conhecidas até hoje.
Como podemos perceber, muito tempo depois, o objetivo do stalinismo foi a criação de um Estado que, apesar de ser voltado para classes trabalhadoras, conservava valores totalmente machistas e racistas, entendendo esses problemas como secundários às demandas da revolução.
O tom conservador do stalinismo trouxe consequências desastrosas para os movimentos socais, que são sentidas até hoje quando nos deparamos com a própria discussão sobre a apropriação cultural. A prática de perseguição racista e homofóbica de Stalin no processo russo gerou uma fragmentação profunda dos grandes movimentos revolucionários do início do século XX, onde a ebulição dessas discussões colocadas, antes concebidas como problemas secundários, dá forma ao que conhecemos como os novos movimentos sociais.
Esses novos movimentos sociais que surgem a partir dos anos 70 partem de uma perspectiva outra, onde as classes sociais são colocadas como apenas um fator secundário diante das demandas de grupos e indivíduos. Essa “individualização” é também conhecida como fragmentação, reação a alguns problemas históricos das tentativas de construção do socialismo no mundo. Dito isso, a não relação entre racismo e capitalismo hoje traz profundos problemas e individualiza uma luta que é social, já que a apropriação cultural também está localizada em um contexto social de capitalismo.
No pano de fundo desse processo político está também a conhecida reestruturação produtiva do capitalismo, que se inicia também por volta dos anos 60 com novas formas de acumulação que rompem com o enrijecido keynesiano-fordismo. Antes dessa reestruturação, a padronização da produção fabril exigia trabalhadores disciplinados, alinhados a uma estética branca burguesa e ligados de maneira radical aos valores conservadores da família. Para David Harvey é possível enxergar essa realidade nos filmes de época e na arquitetura moderna caracterizada por sua padronização. Esses aspectos sociais dentro do capitalismo geraram a revolta de inúmeros segmentos que eram marginalizados por sua lógica, como negros e negras, indígenas, mulheres e LGBT.
Com a reestruturação do capitalismo, outras relações foram exigidas para a hegemonização desse processo. A criação de novas individualidades preparadas para enfrentar contratos de trabalho cada vez mais incertos se deu através da apropriação de diversas demandas que antes estavam à margem do mercado de trabalho, mas que hoje encontram seu local de visibilidade dentro desse modelo de acumulação de lucro.
Locais onde só eram aceitas força de trabalho masculina oferecem subempregos para mulheres. LGBTs que eram criminalizados pela família hoje já têm legitimidade jurídica para a construção dessas relações e também um mercado específico para atender às suas necessidades, conhecido como mercado do Pink Money (dinheiro rosa). Negros e negras passam a ter lugares limitados para exercer cargos de importância antes impensáveis, como a presidência de uma das potências mundiais como os EUA.
Todos os efeitos dessa reestruturação que flexibiliza as relações sociais para atender às necessidades de um modo de acumulação mais contemporâneo tornam densa a relação entre apropriação cultural e circulação mercadológica de bens de consumo. Alguns casos, como a crítica à feijoada vegana como apropriação cultural, a crítica à garota branca com câncer por usar turbante ser uma forma de apropriação cultural, a crítica a uma pessoa branca por brincar maracatu, ou samba por ser branca, diversas críticas apartadas de seu contexto, mais atrapalham do que contribuem para uma reflexão sobre o racismo. Esse deslocamento que transforma a apropriação cultural em um carimbo não leva em consideração a complexidade das contradições da sociedade em que vivemos.
O capitalismo como um modo societário que transforma tudo em mercadoria, desde artigos culturais até mesmo relações, encontra diversas formas de se reelaborar e se expandir durante a história. Nos seus momentos de crise, os capitalistas se agarram até mesmo em coisas que antes lhe eram exóticas e marginais, na tentativa de capitalizar e manter a estrutura de relações às quais vivemos hoje.
Um caso que não foi muito discutido recentemente na internet, mas que ilustra bem esse argumento é o do casal de brasileiros que fatura R$ 550 mil com a venda de artigos indígenas produzidos pelas etnias Krahô, Kayapó, Mehinako, Yawalapiti e Xavantes, em Nova York. Nesse caso, apesar de afirmarem reverter os lucros às tribos, pagam para seus “colaboradores” apenas R$ 500 por mês.
O que fica evidente ao observar esse caso é que o que chamamos de apropriação cultural, na verdade é a circulação desses artigos pela indústria mercadológica do capitalismo que se configura de várias formas. Lojas bem intencionadas que vendem esses conhecidos símbolos de resistência os transformam em objetos estéticos, apagando seu significado histórico. Mas, a culpa desse fato seria dos indivíduos que acessam esses artigos, ou desses sistemas que capitalizam as produções culturais? Se o capitalismo hoje permite que troquemos informações com pessoas do Japão através da internet, não seria ele o culpado pela apropriação cultural?
Entender essa problemática em uma visão cartesiana, ou seja, mecânica e dualista, em minha compreensão, nos distancia de um entendimento amplo sobre a apropriação cultural. O capitalismo enquanto um sistema global nos permite o contato com culturas de diversos locais do mundo e seu constante intercâmbio.
No Brasil, encontramos diversos restaurantes de comida chinesa e japonesa, comidas de nosso dia a dia que têm origem e influência de povos africanos, tais como o acarajé e feijoada. Temos também exemplos no mundo estético, além dos supracitados turbantes e tecidos africanos, temos as calças jeans, criação norte americana muito utilizada pelas pessoas brasileiras. Em resumo, uma infinidade de artigos que são integrantes de outras culturas e que perpassam o nosso dia a dia satisfazem nossas necessidades em vários aspectos e nos dão a possibilidade de conhecer outros espaços, mesmo sem tê-los percorrido.
Esse constante compartilhamento de elementos culturais são socializados, mas no capitalismo são apropriados pelo mercado para serem acessíveis apenas a quem pode pagar. Não se compra um turbante esteticamente bonito sem ter dinheiro para isso. Tecidos africanos cada vez mais estão em moda. Todo esse processo de circulação desses artigos convertidos em mercadorias se tornam acessíveis para pessoas pela mediação do dinheiro, ou lhe são inacessíveis pela falta dele.
Essa estrutura de poder que perpassa as relações raciais no capitalismo encontra diversas nuances. Já que elementos culturais encontram-se socializados em todo o mundo e que o mercado os deixa acessíveis apenas a quem tem como pagar, a reivindicação em cima da apropriação cultural na verdade se trata, como afirmou Valter Magnaroli, em 2015, de uma reivindicação por exclusividade de consumo.
A pessoa branca que utiliza o lenço na cabeça não é culpada pelo racismo que se propaga e pela constante expropriação dos bens culturais do povo negro. A condenação de outras pessoas em utilização de artigos árabes, indígenas, negros, ou outros, na verdade individualiza um problema que tem relação direta com o racismo estrutural.
Uma jovem branca ser repudiada por usar turbante e um casal branco enriquecer às custas de artigos indígenas são bem diferentes. No primeiro caso, é preciso perceber que quando falamos de apropriação, na verdade estamos pensando em socialização e isso é um elemento importante para a resistência negra.
Fazer com que o sujeitos não pretos vejam em artigos da cultura oriental, africana e afro-brasileira elementos de resistência e luta é fundamental para uma reeducação de toda uma sociedade que reproduz práticas racistas. No segundo caso, quando se fala em apropriação, se fala em expropriação, ou seja, a produção de artigos feitos por indígenas, que é levada ao exterior e vendida para lucro de empresários brancos. Nesse sentido, apropriação é um conceito problemático que precisa ser contextualizado para não emitirmos opiniões de culpabilização apenas dos indivíduos, mas direcionarmos nossa prática para quem realmente sustenta essa lógica: as estruturas racistas do capitalismo.
É importante lembrar que parte da luta do movimento negro diz respeito da Lei 10.639, que ressalta a importância da cultura negra ser trabalhada nas escolas. Ora, na escola vamos escolher apenas os indivíduos negros para abordar questões raciais, ou é necessário que abordemos essas questões com todas as pessoas da comunidade escolar, sejam brancas ou negras, para o enfrentamento e desconstrução dos preconceitos pela educação? Reconhecer a beleza de nossa cultura passa longe de ser uma abordagem racista. O racismo é um ato de ódio, genocida, muito bem praticado pelos órgãos oficiais do Estado como a polícia – grande parte composta por pessoas negras, diga-se de passagem.
Nesse sentido, retomando a pergunta inicial: Usar turbante sendo uma pessoa branca é um problema para a luta contra o racismo? Acredito que não, assim como também ter acesso a elementos dessa cultura de maneira a respeitá-la e contribuir com sua resistência. Temos diversos casos passíveis de problematização, como a expropriação histórica de nossos bens sociais pela burguesia branca. Porém, não será recriminando uma jovem por seu uso de turbante que iremos trazer uma outra ideia de sociedade livre do preconceito racial e, principalmente, livre dessa lógica mercadológica que individualiza e atomiza uma luta que deve ser de todas as pessoas.
Foto: Reprodução Facebook
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