A história do Brasil foi forjada na escravização e marginalização de corpos negros. O povo preto foi subjugado a péssimas condições de vida e trabalho e às mais diversas formas de violência. Os quilombos, construídos a partir de intensa resistência, foram – e seguem sendo – um importante espaço de organização social da população negra, onde se busca o resgate da humanidade e cultura, bem como o fortalecimento de negros e negras como sujeitos de suas próprias histórias. Mesmo após a abolição da escravatura, muitos foram os anos de luta e denúncias ao mito da democracia racial no Brasil. A fundação da Frente Negra Brasileira, em 1931 trouxe maior notoriedade às questões e demandas de classe e raça na política brasileira e, em 1970, o Movimento Social Negro trouxe ainda mais força às denúncias já realizadas.
A 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, consiste em um importante marco na luta por assistência digna à saúde da população, sendo este o espaço onde a saúde passou a ser entendida como direito universal e dever do Estado. O Movimento Social Negro participou ativamente do processo de elaboração e aprovação de propostas na conferência, ao lado de outros movimentos sociais, como o movimento feminista. É neste contexto onde se evidencia, também, a atuação das mulheres negras na disputa dos rumos do feminismo brasileiro e, assim, na busca por maior visibilidade às questões específicas da saúde da mulher negra – denunciando a dupla vulnerabilidade da mulher negra imposta pelo imbricamento entre racismo e machismo.
Com a realização da Marcha Zumbi dos Palmares em 1995, o racismo e a vulnerabilidade em saúde de pessoas pretas começaram a ser pautados. A Marcha Zumbi foi um marco histórico que reuniu cerca de 30 mil pessoas, em Brasília, para denunciar a discriminação racial e inexistência de políticas públicas voltadas para a população negra no Brasil. Sua realização abriu caminhos para a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI). Em abril de 1996, o GTI realizou a Mesa Redonda sobre Saúde da População Negra, que culminou na: a) introdução do quesito raça/cor nos sistemas de informação de mortalidade e de nascidos vivos; b) elaboração da Resolução 196/96, que introduziu o recorte racial em toda e qualquer pesquisa com seres humanos; e c) a recomendação da implantação de uma política nacional de atenção às pessoas com anemia falciforme – doença que acomete mais a população negra quando comparada à população em geral.
A atuação do Movimento Negro brasileiro na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em 2001, e nas 11ª e 12ª Conferências Nacionais de Saúde, realizadas, respectivamente, em 2000 e 2003, fortaleceu e ampliou sua participação social na instâncias do Sistema Único de Saúde (SUS). Os anos seguintes foram marcados por seminários, encontros, reuniões técnicas e políticas de pesquisadores e ativistas antirracistas na área da saúde. O II Seminário Nacional de Saúde da População Negra, realizado em 2006, merece maior destaque devido ao reconhecimento oficial do Ministério da Saúde da existência do racismo institucional nas instâncias do SUS. O reconhecimento de como as iniquidades históricas sofridas por negros e negras afetam seu processo saúde-doença só foi possível a partir da luta e resistência do movimento negro.
As lutas do movimento negro, posteriormente, resultaram em um novo marco para a valorização da população negra. Em 2009, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) foi aprovada através da Portaria Ministerial Nº 922. A PNSIPN reafirma os princípios do SUS: universalidade de acesso; integralidade de atenção e equidade na atenção à saúde, objetivando a promoção de saúde integral à população negra, através da diminuição das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e o combate à discriminação nas instituições e serviços de saúde. Baseada na produção de conhecimento científico, na capacitação de profissionais, na informação da população e na atenção à saúde, esta política possui o caráter fundamental de apontar o racismo e a discriminação como determinantes do adoecimento e da morte precoce de negros e negras.
Racismo institucional e o atendimento à saúde
A formulação de diretrizes e estratégias teve origem fora do sistema de saúde, sendo construída pela atuação da população negra organizada, a partir de suas análises, conhecimentos e vivências. As mulheres negras foram protagonistas desse processo de formulação por serem uma expressiva parte das trabalhadoras da saúde, em suas diversas categorias. Porém, o reconhecimento do racismo como fator central das desigualdades e violências vivenciadas pela população negra não foi suficiente para superar as marcas deixadas pelas teorias eugenistas da saúde.
O racismo pode ser visto como um sistema que possui três dimensões: internalizada, interpessoal e institucional. O racismo institucional está na dimensão estrutural e corresponde às formas organizativas, políticas e normativas que culminam em tratamentos desiguais. Dessa forma, o racismo opera induzindo as instituições públicas e privadas e as políticas públicas a produzir e reproduzir a hierarquização racial, ou seja, a manter a vulnerabilidade daqueles atingidos pelo racismo. Sermos maioria na sociedade brasileira não garante acesso a itens básicos, como prevenção e promoção da saúde, educação e cultura.
O médico que se recusa a atender um homem negro. A gestante negra que recebe menos anestesia no parto. Pacientes negros que demoram mais para serem atendidos. As consultas que acontecem sem contato físico ou diálogo olho no olho. Estes são alguns exemplos de como o racismo pode ocorrer durante os atendimentos. Além disso, a invisibilização das doenças predominantes em pessoas negras, o não preenchimento do quesito raça/cor nos sistemas de informação em saúde, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde de todos os níveis de atenção, a qualidade de atenção à saúde são determinantes da diferença nos perfis de adoecimento e morte entre brancos e negros.
As relações entre o racismo institucional, o adoecimento da população negra e a limitação de acesso a melhores condições de vida se estendem, ainda, na sobreposição ao racismo estrutural e ao histórico escravocrata. A limitação socioeconômica destes decorrente faz com que a população negra esteja mais suscetível a adquirir doenças relacionadas aos hábitos de vida, como a diabetes mellitus e a hipertensão. Por exemplo, a diabetes mellitus tipo 2 atinge com mais frequência os homens negros (9% a mais que os homens brancos) e as mulheres negras (cerca de 50% a mais do que as mulheres brancas).
É difícil não ser atingido por doenças evitáveis quando a pobreza é um fator determinante, que começa a conduzir o processo saúde-doença do povo preto desde a infância. O risco de uma criança negra morrer antes dos cinco anos por causa de doenças infecciosas e parasitárias é 60% maior do que o de uma criança branca. 90% das crianças negras estão em risco de desnutrição, enquanto este risco para uma criança branca é quase inexistente. Quando a criança negra consegue ultrapassar as dificuldades interpostas e alcançar a adolescência, o risco de mortes violentas ameaça a existência de nossos jovens.
No parto e nascimento, a dor tem cor
Segundo o Ministério da Saúde, a violência obstétrica atinge 1 em cada 4 gestantes no Brasil. Violência obstétrica é o conjunto de violências sofridas pelas pessoas capazes de gestar e parir nos serviços de saúde durante todo o período gravídico-puerperal, ou seja, pode ocorrer no pré-natal, no trabalho de parto, no parto e nascimento, no pós-parto e também nos casos de abortamento. Essa forma de violência está relacionada à ausência de autonomia da pessoa gestante e à exploração de seu corpo. Essas violências podem ocorrer com qualquer pessoa, mas a raça influencia diretamente no risco de sofrer violência obstétrica.
Segundo o artigo “A cor da dor” realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), as mulheres negras recorrentemente recebem pré-natal inadequado, falta de vinculação à maternidade de referência e ausência de acompanhante. Além disso, o estudo “Nascer no Brasil”, realizado em 2017, revelou que mulheres negras recebem cerca de 50% menos anestesia em casos de episiotomia – uma prática de violência obstétrica – e que mulheres negras são as que mais peregrinam entre hospitais em busca de internação. 65%: este é o número que representa as mulheres negras na taxa de óbitos maternos. As violências sofridas por gestantes negras são tão graves que, quando não levam a morte, deixam sequelas para toda vida. Essa violência tem raiz no mito de que corpos negros são mais fortes e mais resistentes a dor, ou seja, na desumanização de pessoas negras.
A violência e o racismo obstétrico estão presentes, até mesmo, na formação de novos profissionais sobre as práticas relacionadas à gestação. Um exemplo disso é o médico Marion Sims, considerado uma das maiores referências da ginecologia moderna, que realizava cesáreas em mulheres negras escravizadas, nos Estados Unidos, sem a utilização de anestesia. Este cenário só pode ser revertido com mudanças na formação profissional médica e de enfermagem, porém, também é necessário que os gestores dos serviços de saúde reconheçam que as desigualdades raciais influenciam a assistência às gestantes.
CORONAVÍRUS E A POPULAÇÃO NEGRA
Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), a pandemia de Covid-19 afeta desproporcionalmente os mais vulneráveis; assim, negros e negras têm 1,5 vezes mais chances de morrer por Covid-19. A população negra já vivia em piores condições econômicas e precário acesso aos serviços de saúde antes da chegada da pior crise sanitária vivida pela nossa geração, o que explica as elevadas taxas de mortalidade por coronavírus na população negra. A desigualdade socioeconômica é um dos fatores que explicam a maior incidência de coronavírus na população negra. 12,5% dos negros vivem em locais sem coleta de lixo; 17,9% dos negros não tem abastecimento de água por rede geral; 42,8% dos negros não possuem esgotamento sanitário.
O primeiro óbito pela Covid-19 registrado, notificado em março de 2020, foi de uma mulher negra de 57 anos que trabalhava como doméstica. Uma pesquisa realizada pela PUC-Rio apontou que, até maio de 2021, de 8.963 pacientes negros internados em hospitais brasileiros, 54,8% morreram, enquanto entre os 9.988 brancos internados a taxa de letalidade foi de 37,9%. Perpetuando os traços de sua história escravocrata e racista, o Brasil é marcado por fortes desigualdades que tornam a incidência e a mortalidade pela Covid-19 muito maior na população negra.
A Coalizão Negra por Direitos caracteriza, de forma assertiva, a gestão da pandemia como racista e genocida, agravando os riscos e ameaçando ainda mais as vidas pretas no Brasil. A péssima condução do governo federal no combate e enfrentamento à pandemia deixou a população brasileira em situação de vulnerabilidade, em especial aqueles totalmente dependentes do SUS para receber assistência em saúde, sendo 67% deles negros. O Brasil esteve aquém das estratégias emergenciais e apostou em táticas equivocadas de contingenciamento sanitário, cujas consequências foram a superlotação de hospitais públicos e a falta de insumos que levou o Brasil ao lamentável segundo lugar no total de mortes no mundo, em julho de 2021.
Defender o SUS é fortalecer a população negra
Além de representar a maior parte da população brasileira, negros e negras também representam a grande maioria dos usuários do SUS: 76% dos atendimentos e 81% das internações no SUS são de pessoas negras. Cerca de 80% dos usuários que dependem exclusivamente do SUS se autodeclaram negros. O SUS está presente em nossas vidas de diversas maneiras, diariamente, e não existe outro país no mundo que preste a assistência entregue pelo SUS de forma gratuita e universal. Nele se concentra o maior programa de imunização, de transplante de órgãos e de distribuição de medicamentos para HIV/AIDS do mundo. Entretanto, mesmo com toda a sua grandeza, as medidas de austeridade comprometidas com o desmonte da saúde pública fazem com que, muitas vezes, a capacidade do SUS seja insuficiente.
Apesar das ações institucionalizadas do Ministério da Saúde, a ausência de planejamento e execução de programas e ações, bem como a formação deficitária de profissionais – que responde ao modelo de saúde racista vigente – mantém as barreiras de acesso. Este dado fica ainda mais evidente quando vemos apenas 28% dos municípios brasileiros colocando a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra em prática no ano de 2019. É possível observar que ainda é necessária a construção de ações afirmativas efetivas no âmbito da saúde, que assegurem à população negra que seus direitos e especificidades sejam atendidas nos serviços de saúde.
O sucateamento do Sistema Único de Saúde é, também, parte do projeto político de genocídio da população negra em andamento no Brasil. Por isso, defender o SUS é fortalecer a população negra que é, em sua expressiva maioria, SUS-dependente. O projeto político de reconstrução do Brasil deve ser, necessariamente, antirracista e ter, portanto, a defesa, manutenção e aprimoramento do SUS como central na garantia de dignidade e saúde para vidas negras.
*Karoline Souza é enfermeira egressa da ESCS-DF, residente em obstetrícia pela SES-DF, pesquisadora em políticas públicas em saúde e militante do Afronte!
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