Por: Ana Lucia Marchiori, São Paulo, SP
Entre os dias 5 e 7 de dezembro foi realizada pela Comissão Nacional da Anistia a 93ª Caravana da Anistia. Os julgamentos ocorreram na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Neste julgamento, dentre outros perseguidos pela Ditadura, foram anistiados vários metalúrgicos do ABC e de São José dos Campos, além de ex-militantes da Convergência Socialista (CS). Dentre os anistiados da ex-CS estavam companheiros como Oraldo Paiva, preso político e ex-metalúrgico da Villares e FORD de Guarulhos, militante do PSTU de Belo Horizonte.
Nessa caravana advoguei em defesa dos metalúrgicos do ABC e de ex-militantes da CS. Entre os metalúrgicos do ABC e associados da AMA.A-ABC foram anistiados Alvacy Lopes Ferreira (demitido na greve 79 quando houve intervenção no sindicato), Fernado Agostini Neto (Ford- ABC)), Joel Fonseca Costa (demitido na greve Vaca Brava), José Drummond (EE Jose Ferrari), José de Oliveira (Ford ABC), Luiz Antônio Duarte (professor) que foi preso e processado na ação história contra a Ação Popular.
Dentre os militantes da ex-CS defendi Ronaldo Eduardo Almeida, cuja história vale a pena conhecer. Ele iniciou sua militância em 1974 quando estudava na Escola de Sociologia e Política em São Paulo. Ronaldo relatou que naquele ano vários estudantes estavam sendo presos, quando então numa assembleia geral universitária foi criado o Comitê de Defesa dos Presos Políticos ao qual se integrou.
Nesse momento conheceu a Liga Operária, agrupamento que começou se organizar no Chile a partir de alguns brasileiros que tiveram contato com trotskista Mario Pedrosa. Apresentados ao dirigente trotsquista Hugo Blanco decidiram formar o Ponto de Partida composto por companheiros como Jorge Pinheiro, Maria José Lourenço dos Santos (Zezé), Enio Bucchioni e Tulio Quintiliano, assassinado nos primeiros dias do Golpe Militar chileno.
Ronaldo ingressou na Liga Operária quando trabalhava na SADE, uma empresa de engenharia com muitos canteiros de obras. Sob a alegação de que o DEOPS estava acompanhando os estudantes “metidos em política”, foi compelido pelo seu chefe à pedir demissão. Ronaldo passou cerca de 10 anos desempregado, período este que manteve sua militância política. Entretanto, sua companheira, Marcia Basseto Paes, foi presa e torturada em 1977, tendo então que fugir.
Sua prisão ocorreu em 1978, quando quatro homens armados com metralhadoras e pistolas automáticas interceptaram o ônibus em que estava à caminho de Volta Redonda (RJ). Preso junto com Marcos Farias, que também estava no ônibus, foi levado para o DOPS em São Paulo, onde se encontrava preso o dirigente trotsquista argentino Nahuel Moreno.
Ronaldo e Marcos, dois dias depois, decidiram entrar em greve de fome que durou 14 dias. Após campanha nacional e internacional pela libertação dos presos, Moreno foi libertado e levado para Bogotá.
Ao ser julgado na 93º Caravana da Anistia, Ronaldo ouviu o pedido de desculpas em nome do estado brasileiro pelas agruras que sofreu no período da ditadura militar no Brasil.
Além do Ronaldo, defendi o professor Gilberto Pereira de Souza, que iniciou sua militância política no Alicerce da Juventude Socialista (AJS), sendo membro da chapa de oposição nas eleições da União Estadual dos Estudantes (UEE-SP). Hoje é militante do MAIS.
Gilberto seguiu na Convergência Socialista, trabalhando como professor na rede municipal de ensino. Foi um dos fundadores do Departamento Nacional de Educação da CUT. Na Apeoesp foi presidente de uma chapa de oposição à diretoria encabeçada por João Felício, perdendo por apenas 3% dos votos.
Por sua militância política e sindical foi monitorado pelos órgãos de repressão. Após participar do ato das diretas e do congresso da Central Única dos Trabalhadores que terminou no dia 27 de agosto de 1984, Gilberto foi demitido no dia seguinte. Relatou que a diretora o chamou em sua sala e disse que comunista subversivo não podia trabalhar com crianças.
Dentre os anistiados gostaria de comentar o caso do belga Jan Honoré Talpe, 81 anos, militante da seção belga da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI). Jan Talpe veio ao Brasil como sacerdote e foi professor assistente na Escola Politécnica (EP), onde lecionava Física. Envolveu-se nas mobilizações da universidade contra a Ditadura e com os metalúrgicos de Osasco, que realizaram a histórica no ano de 1968. Em seu depoimento relatou que ao ver estudantes sendo espancados pela polícia no campus da universidade, interveio, mas sumariamente também foi espancado e detido. Preso pelo DOPS, em 1969, Jan foi torturado, mantido incomunicável por seis meses e, finalmente, expulso do país.
Mais recentemente, em 2014, quando então vinha ao Brasil para realizar uma palestra, Jan foi detido no aeroporto de Guarulhos em São Paulo, pois seu nome ainda constava no registro da polícia federal como banido do país. Ao final foi solto por um Habeas Corpus. O juiz de plantão na 2ª Vara Federal de Cumbica, Paulo Marcos Rodrigues de Almeida, decidiu que o decreto expulsório de Talpe não mais subsistia, “em razão da absoluta inconsistência jurídica, à luz da Constituição da República de 1988 e da própria Lei da Anistia (Lei 6.683, de 1979). O juiz observou que o Decreto-Lei nº 417/69 (fundamento legal da expulsão) foi expedido “com base nas atribuições outorgadas ao Presidente da República pelo Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, o famigerado AI-5, de triste lembrança na memória política nacional”.
Entretanto, a Advocacia Geral da União recorreu sob o argumento de que Jan Talpe não era anistiado político. Ou seja, mesmo com a redemocratização do país, ainda tinha validade o decreto que deu base à sua expulsão. Quando veio para seu julgamento na 93º Caravana da Anistia foi novamente detido no aeroporto.
É preciso punir os torturadores, os militares e as empresas que colaboraram com a Ditadura
Além do pedido de desculpas aos que foram presos, perseguidos, torturados, além das famílias dos mortos e desaparecidos políticos, é preciso que as empresas que participaram, financiaram a ditadura civil militar no Brasil também sejam responsabilizadas.
Um relatório da Comissão Nacional da Verdade revelou a existência de um aparato repressivo militar-empresarial, na qual as empresas monitoravam funcionários, repassando informações e encaminhando denúncias ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
Além disso, indicou empresas que contribuíram moral e financeiramente com o golpe de 1964 e com a Operação Bandeirante (Oban), um aparelho de repressão montado pelo Exército. Várias empresas nacionais e multinacionais são citadas no relatório. Entre as alemãs estão a Volkswagen, Mercedes-Benz e Siemens. As três foram apontadas por contribuir com recursos à Oban.
Mesmo antes do golpe em 1964, segundo apuração da Comissão Nacional da Verdade, foram criados o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Estas instituições apoiavam partidos e parlamentares de direita com dinheiro do empresariado e da própria CIA (Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos), ajudando a criar todo um aparato da repressão.
A Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), por exemplo, junto com outros setores do empresariado paulista ajudou a financiar a repressão e os próprios centros de repressão. É o caso da própria Oban (Operação Bandeirante), que viria a ser um modelo de centro de tortura para outros lugares do país. Localizada no número 921 da rua Tutóia, onde hoje funciona o 36º Distrito Policial da Polícia Civil, o local se tornou mais tarde o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna), estrutura reproduzida em outras capitais do país.
O caso Henning Albert Boilesen
Henning Albert Boilesen foi presidente da Ultragaz. Da mesma forma que outros empresários e banqueiros como, por exemplo, Gastão Bueno Vidigal, do Banco Mercantil, colaborou com a Ditadura em troca de vantagens. Boilesen acabou sendo assassinado por um comando da ALN (Ação Libertadora Nacional) e do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes) em 1971.
A construção civil também foi um dos setores que mais se beneficiou com o regime militar ao assumirem a construção das obras públicas, particularmente de infraestrutura que envolvia a construção pesada. Como se sabe, as grandes obras deram salto nessa época ganhando inclusive projeção internacional.
A anistia aos perseguidos é um passo importante, mas é apenas o primeiro se queremos fazer justiça aos crimes cometidos pela Ditadura. É preciso avançar na punição das empresas, dos torturadores e dos militares que cometeram crimes em face ao povo brasileiro. Para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça.
Ana Lúcia Marchiori é advogada e atua em defesa dos perseguidos políticos pela Ditadura.
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