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EDITORIAL

Reino Unido: indefinição com os rumos do Brexit e oportunidade para a esquerda socialista

Por: Vicente Marconi, de Londres, Reino Unido

Na manhã desta segunda-feira (7), o The Telegraph estampava uma matéria com Nigel Farage, líder do partido de extrema-direita UKIP. Segundo o tabloide, Farage e aliados estariam construindo uma “marcha dos 100 mil” em Londres, para o início de dezembro. O ato visa pressionar a Suprema Corte, que neste dia definirá se o acionamento do Artigo 50[1] precisa ser previamente aprovado pelo Parlamento. É verdade que Farage ou tabloides sensacionalistas não merecem muita credibilidade, mas isso mostra o tamanho da crise política que vive o país.

Para a maioria do imperialismo, especialmente o financeiro, Londres fazer parte da UE é um fator importantíssimo na ordem econômica mundial. O grande capital não esperava uma vitória do Brexit no Referendo do dia 23/06. A campanha pela saída foi dirigida por setores bem à direita[2], representando frações burguesas locais ou secundárias. Porém, capitalizou o descontentamento de amplas camadas da população britânica, principalmente as mais afetadas pelas políticas de austeridade no país. E fez isso se apoiando (e incentivando) em sentimentos reacionários como ultranacionalismo, racismo e xenofobia. Algo semelhante ao que Trump vem fazendo na campanha presidencial dos EUA[3]. Embora os principais institutos de pesquisa apostassem na vitória da permanência, a proposta de saída da UE ganhou por uma margem apertadíssima.

Com isso, a questão passou a ser sobre o “tipo” de Brexit: soft (suave) ou hard (duro). A burguesia imperialista passou a buscar o soft, que na prática significa algo muito semelhante ao que existe hoje, com alterações pontuais. Os setores pró-Brexit querem uma ruptura mais profunda, que atenda melhor seus interesses comerciais com outros países ou os proteja no mercado interno.

O governo atual foi construído sobre um grande conchavo dentro do Partido Conservador, que evitou prévias ou qualquer consulta mais ampla. Theresa May montou um gabinete ainda mais à direita que seu antecessor, David Cameron. No processo de negociação com os demais governos da UE, colocou o controle imigratório como cláusula central, deixando até a permanência do país no Mercado comum em segundo plano. Em outras palavras, se afasta do soft Brexit, caminhando na direção da separação mais acentuada. Recentemente, May afirmou que acionaria o Artigo 50 até março de 2017.

Projeto Brexit e disputa judicial
A oposição acusa o governo Conservador de não ter um “Projeto Brexit” claramente definido. Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista (Labour), afirmou em discurso no Parlamento que o processo do Brexit está “totalmente sem rumo”. Até a BBA (associação de banqueiros, o equivalente britânico da FEBRABAN) vem criticando o governo pela falta de um projeto claro de separação. May vem tentando acordos bilaterais com vários países, como forma de pressionar Bruxelas, mas não tem conseguido avanços significativos. As respostas, invariavelmente, argumentam que é necessária uma definição maior de como caminhará o Brexit.

Um fato ocorrido na última semana pode dar um novo ritmo a essa situação. Juízes da “Alta Corte” definiram que o governo não pode acionar o Artigo 50 sem a prévia aprovação do Parlamento. Isso significa que May deve apresentar um “Projeto Brexit”, e este ser aprovado por maioria em Westminster, antes de iniciar o processo. O governo apelou à Suprema Corte, e a decisão final será no início de dezembro – data da “marcha” convocada por Farage. Os mercados se animaram com a notícia, e a cotação da Libra subiu com força, o que não acontecia desde o Referendo. Este processo, caso se confirme na Suprema Corte, não deve impedir a saída do Reino Unido da UE. Mas pode atrasá-la e dificultar consideravelmente um hard Brexit.

A crise nos partidos burgueses
O processo do Brexit põe fim a uma lua de mel entre o Partido Conservador e a grande burguesia imperialista britânica. Apesar de a maioria das lideranças Tories[4] (inclusive a atual PM) ter defendido a permanência na UE, a movimentação tomada pelo novo governo faz a banca dar claros sinais de insatisfação. O partido de “centro-direita” LibDem, que era parte da composição do governo Cameron, procura ocupar este espaço. Há poucas semanas, o ex-primeiro ministro renunciou também à sua cadeira no parlamento, e houve nova eleição em seu distrito. O Partido Conservador venceu, mas o LibDem cresceu mais de 20 pontos percentuais sobre sua base. O UKIP, que havia perdido espaço com a guinada dos Tories, parece utilizar uma tática de “ exigências e denúncias” sobre os mesmos. E aproveita situações como essa questão judicial para voltar aos holofotes da política nacional.

O Labour e a oportunidade aberta para a esquerda socialista
O Labour Party, durante as últimas décadas, vem passando por um processo de direitização que tem como grande exemplo o ex-primeiro-ministro Tony Blair.  Tanto que os parlamentares e dirigentes deste partido com esse perfil são chamados de Blairistas. Para eles, o Labour seria o depositário natural da confiança da burguesia imperialista. Para isso, bastaria apontar um líder “de confiança dos mercados”, criticando o governo Conservador sem entrar a fundo na negação das políticas de austeridade. E as chaves do número 10 de Downing Street[5] já estariam nas mão. Só que não!

Desde o ano passado, com mais intensidade nos últimos meses, há um fenômeno anti-austeridade e anticapitalista surgindo pela base, nos locais de trabalho, escolas e bairros.  Isso gerou uma onda por dentro de sindicatos e organizações sociais, e levou Jeremy Corbyn à liderança do Labour[6]. Sua campanha esteve diretamente ligada a greves[7] e movimentos sociais. Tal fato levou os caciques do partido ao desespero e, depois de várias tentativas de removê-lo, Corbyn está ainda mais forte. Se o Labour obtiver maioria nas próximas eleições gerais, Corbyn será Primeiro Ministro. A pressão do aparato do Labour é gigantesca. A oportunidade para a esquerda socialista, em aproveitar esse processo e virar esse jogo, maior ainda. Como diz o sempre atual The Clash, Londres (ou melhor, o Reino Unido) está pegando fogo.

[1] Artigo 50: Início formal da saída de um Estado da União Europeia

[2] Especialmente a direita do Partido Conservador e o xenófobo UKIP

[3] A composição social do voto Brexit possui bastante semelhança com o voto Trump

[4] Tories: como são coloquialmente chamados os membros do Partido Conservador

[5] 10 Downing Street, residência oficial do Primeiro Ministro britânico

[6] No Labour, têm direito para a voto para a Liderança todos os trabalhadores sindicalizados e membros inscritos, mesmo se forem militantes de outros partidos.

[7] O ano de 2015 viu o menor número de greves em uma década no Reino Unido, mas há uma clara retomada esse ano com lutas em várias categorias, como transportes, saúde e educação.