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TEORIA

Muda Direito!

Jorge Luiz Souto Maior  |

Sexta-feira, dia 11 de março, nove horas da noite, saindo da Faculdade, sou abordado pelo vigilante terceirizado, tratado aqui pelo codinome Brasileiro, que traz consigo uma papelada e pede a minha atenção, para que eu lhe explique porque, afinal, ele ainda não recebeu os seus direitos pleiteados em uma reclamação trabalhista movida em 2010, solicitando-me, ainda, alguma previsão de quando irá receber.

Analiso os papéis e vejo que a situação não parece muito boa para ele e fico com certo incômodo de lhe dizer isso assim de pronto. Aproveitando que faltam algumas informações nos papéis, mas que já eram possíveis de ser extraídas do que se via, lhe peço para que me dê um prazo para melhor avaliar a questão.

Passadas as tensões daquele final de semana, na segunda-feira dedico-me a procurar, na internet, maiores informações sobre o processo. Constato que se trata de uma reclamação referente a um vínculo de emprego que perdurou de 25/06/08 a 19/03/10, quando o Sr. Brasileiro, na condição de empregado de uma empresa terceirizada, prestou serviços, na função de controlador de acesso, à Universidade de São Paulo – USP, tida e havida como a maior produtora de inteligências no país.

A sentença, proferida em novembro de 2010, proclama que o Seu Brasileiro não recebeu os direitos pertinentes às denominadas verbas rescisórias e que tem direito de receber além dos valores respectivos também uma indenização por dano moral de R$5.000,00.

A empregadora não recorre, porque, afinal, não pagou mesmo e não tem sequer condições financeiras para efetuar o depósito recursal. No entanto, a Universidade de São Paulo recorre, querendo ter sua responsabilidade excluída e também que se extraia da condenação a indenização por dano moral. O Tribunal Regional do Trabalho mantém a responsabilidade (subsidiária) da USP, mas retira a indenização por dano moral com o argumento de que embora o reclamante estivesse inconformado em não ter recebido as verbas rescisórias isso, por si só, não seria prova de que a situação teria atingido a sua honra ou intimidade. Disse, ainda, que a pretensão do reclamante, se acolhida, transformaria o dano moral em uma panacéia, fomentadora de abusos.

Ou seja, o Sr. Brasileiro teria cometido abuso ao tentar qualificar juridicamente o sofrimento de não ter recebido verbas rescisórias, que todos apontam possuir natureza alimentar. Assim, para os trabalhadores o sofrimento já estaria integrado à própria dinâmica da sua vida, sendo que sofrer um pouco mais não alteraria a essência da sua condição pessoal, até porque, conforme se diz, o brasileiro está acostumado a sofrer e apesar de sofrer a vida toda não desiste nunca.

E sofrimento para os trabalhadores nunca é o bastante.

A Universidade de São Paulo, com todo seu poder econômico e seu arsenal jurídico intelectual, saído dos quadros que ela mesma forma, não se contenta e conduz o processo do Sr. Brasileiro ao Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília. O Seu Brasileiro talvez nem soubesse o quanto era importante. Fato é que o seu caso foi parar na mais alta Corte trabalhista do país, uma instituição que, coitada, mesmo querendo ter ares de corte constitucional, voltada a causas de transcendente relevância, se vê atolada na tarefa de julgamentos de causas que já deveriam ter sido resolvidas (com eficiência) lá na primeira instância.

Claro, o TST poderia não ter sequer recebido o recurso, como, aliás, já havia indicado o Tribunal Regional, mas, impulsionado por novo recurso da USP, o TST também não quis perder a oportunidade de cuidar do caso do Sr. Brasileiro, afinal, a condenação da USP ao pagamento de verbas rescisórias a um trabalhador terceirizado poderia comprometer boa parte da produção intelectual do país.

É evidente que esse pensamento nunca esteve, de fato, na mente dos julgadores, mas o fato concreto é que, valendo-se de uma formalidade jurídica, apoiada, vale dizer, em decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida na ADI 16 – e assim, ainda que de forma indireta, o próprio STF se ocupou do caso do Sr. Brasileiro – o TST excluiu toda e qualquer responsabilidade da USP frente aos direitos do Sr. Brasileiro. Assim, como restou decidido, se a USP abriu um processo de licitação para contratar a empresa terceirizada para lhe prestar serviços, não tem nenhuma responsabilidade quanto aos direitos trabalhistas dos trabalhadores que foram contratados para a execução desses serviços. Nenhuma consideração se fez, por certo, nem no STF (a não ser em um voto vencido) nem no TST, acerca da inexistência de norma constitucional autorizadora da terceirização no setor público e mesmo sobre a razão básica da Constituição que fixa a dignidade humana e os valores sociais do trabalho como princípios fundamentais da República, superando, por consequência, a perspectiva jurídica de proteção do interesse do ente público.

Assim, pela via da atuação dos meandros processuais, o Sr. Brasileiro, que durante quase dois anos foi o responsável pelo controle de acesso na USP, voltou a ser o que de fato já era na lógica intrínseca da terceirização, um “Brasileiro ninguém”.

O trabalho e parte da segurança de todas as pessoas que circularam no local passaram de certo modo pelos serviços do Sr. Brasileiro, mas, depois, a USP o tratou como um inimigo a ser derrotado.

Fico, inclusive, imaginando como foram a euforia e os gritos de vitória expressos na sala da Procuradoria da USP quando se soube que a USP, enfim, estava livre daquele fardo.

Bom, até aí se passaram cinco anos. Em 2015, o processo retorna ao primeiro grau, para definição do valor que é devido ao Sr. Brasileiro e ser dado início à execução em face da empresa prestadora dos serviços.

Valor definido: R$14.840,33, já incluídos juros e correção monetária. Só que a essa altura a prestadora de serviços já havia sumido. Forma-se, então, um instrumento processual para tentar localizar a empresa na cidade de Duque de Caxias, RJ. O processo do Sr. Brasileiro, assim, faz movimentar a máquina Judiciária trabalhista do Rio de Janeiro (eita sujeito importante esse Seu Brasileiro!), mas, de fato, o empenho da atuação do Judiciário fluminense não foi tão grande quanto a importância que até aqui se havia dado ao caso do Sr. Brasileiro e mediante a certidão do Sr. Oficial de Justiça de que a empresa não estava mais localizada no endereço indicado, encerram-se imediatamente as buscas e o processo foi devolvido para São Paulo.

Chegando ao ponto inicial, só faltava mesmo tirar de uma vez o tubo do processo, vez que já tinha dado muito prejuízo ao Judiciário e provocado graves males à estatística dos processos encerrados. Então, em fevereiro de 2016, após mais de cinco anos de tramitação do processo, que foram utilizados para ir diminuindo os direitos declarados como devidos, foi conferido ao Sr. Brasileiro, um trabalhador terceirizado que trabalha no horário noturno, em regime de 12×36, o prazo de 30 (trinta) dias para que descobrisse o paradeiro da empresa prestadora de serviços, cujos proprietários provavelmente jamais conheceu, sob pena de, enfim, se arquivar o processo.

Agora estou aqui escrevendo essas palavras em um vôo para Manaus, onde vou falar, na Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho, sobre o conflito entre o novo CPC e o processo do trabalho, pensando como, na segunda-feira, vou dizer ao Sr. Brasileiro que não tenho muitas novidades a lhe revelar a não ser aquilo que nos papéis que me entregou já constava, ou seja, que ele deve descobrir o paradeiro da empresa de terceirização ou de seus sócios e seus respectivos bens, no prazo que foi conferido pelo juízo, sob pena de se repetir consigo aquilo que sistematicamente vem ocorrendo com milhares de trabalhadores terceirizados pelo país, qual seja, não receber nada!

Mas para não ser mensageiro de notícia que só pode trazer mais sofrimento ao Sr. Brasileiro, por mais que alguém diga que ele está bastante calejado para isso, pensei, então, em lhe falar, e já adianto aqui com o risco de que ele, então, venha a saber antes mesmo de me dirigir diretamente a ele, que seu caso pode ser emblemático de uma mudança importante no país. Afinal, uma multidão de pessoas (de partidos e orientações políticas diversas) está indo às ruas, dentre outros motivos, para pedir o fim da impunidade, o respeito à Constituição democrática, a eficácia dos direitos sociais e o acatamento do pressuposto da ética. Quer me parecer que nenhuma das pessoas que tenha participado dessa disputa se levantará para justificar como sendo algo natural e inevitável a situação que foi imposta ao Sr. Brasileiro primeiro pela terceirização, ela própria, já inclusa a atitude de conluio da USP, segundo, pelo uso da inteligência jurídica voltada a justificar e até aprofundar a situação e, terceiro, pela atuação legitimadora do próprio Judiciário. Vale perceber que o Sr. Brasileiro, sem saber, foi combatido por diversas forças extremamente poderosas. Mas, enfim, conforme preconizado nas ruas, isso não vai acontecer nunca mais, afinal estamos no limiar da impunidade.

Portanto, se o Sr. Brasileiro de fato não vier a receber seus direitos, o que, infelizmente, se apresenta como muito provável, o seu caso pode, ao menos, servir para que se obtenha o compromisso mínimo, assumido por todos que se integraram com honestidade nesse debate nacional, de que a terceirização, por ser ilegal, inconstitucional, injusta e imoral, além de representar um estímulo à corrupção quando inserida no contexto dos entes públicos, não será mais socialmente admitida e, por conseqüência, não terá mais o respaldo do Direito, até porque tanto dispêndio de energia e os grandes desgastes pessoais que os diversos manifestantes estão sofrendo precisam, pelo menos nos pontos de identidade, repercutir no mundo jurídico.

E, por favor, não me digam que nem nisso eu posso acreditar, até porque o Sr. Brasileiro, teimoso que é, vez que poderia, segundo se costuma dizer, ter escolhido, no exercício da liberdade, juridicamente garantida, muitas outras coisas para fazer na vida, está lá de novo, prestando serviços de controlador de acesso na USP, desta feita na Faculdade de Direito, e ainda vou encontrá-lo em várias ocasiões e não terei muito o quê lhe falar quando, no futuro, mesmo próximo, se constatar que a realidade no mundo jurídico – repercutindo nas vidas de pessoas já acomodadas – continuou exatamente a mesma, ainda mais se chegarmos ao ponto (que, na hipótese da preservação da realidade atual, parece inevitável) dele novamente deixar de receber as verbas rescisórias e as forças institucionalizadas mais uma vez se unirem para, afrontando o que havia sido expressado como clamor popular, demonstrar que não estão dispostas a ceder à intenção abusiva de “Brasileiros ninguéns” de receberem direitos. Aí nos perguntaríamos: do que valeu tudo isso?

Eu só queria mesmo era ter um mínimo de esperança de que ao menos um pouco de mudança no plano do desrespeito à legalidade quanto aos Direitos Sociais e Direitos Humanos esteja de fato ocorrendo no Brasil, afinal, já são 12 milhões de brasileiros que, cotidianamente, são submetidos às incertezas e aos sofrimentos impostos pela terceirização e ainda há quem queira que essa perversidade se multiplique em nome da “modernidade” ou como condição essencial para a sobrevivência do modelo de sociedade capitalista, o que, se for verdadeiro, só demonstra o quanto esse modelo é indefensável.