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TEORIA

A mulher que superou o fim do mundo

Aruska Patri  |

 

“Vais perseguir a maldita

Vais insultá-la na rua

Vais jogar pedras na lua

Vais montar uma guarita

Pra que aquela esquisita

Não se atreva a voltar

E aí, e aí, e aí

Ela cisma de voltar (…)”

(Pássara – Chico Buarque de Holanda)

 

O teatro está lotado e a expectativa quase pode ser ouvida. Cochichos distraem os que vieram revisitar uma velha conhecida das paradas musicais ou jovens que estão a lhe descobrir. Alguns aguardam silenciosos e com curiosidade o encontro da noite. Após escutar o bárbaro “A Mulher do Fim do Mundo”, disco lançado em outubro de 2015, era preciso ver e ouvir de perto aquela potência.

O espetáculo se inicia e a voz açoita o vazio. Coração do Mar, releitura de um poema de Oswald de Andrade, irrompe o teatro e as poucas vozes ainda presentes se calam de imediato. Estão todos paralisados. A figura de Elza Soares, sentada sob uma espécie de altar, vestida como uma extensão do palco, ganha particular dimensão quando diz: Tem por nome “Se eu tivesse um amor”, trecho do poema. No silêncio que se segue, dispara à plateia: “Meu choro não é nada além de carnaval”. Estamos avisados. Estamos diante da mulher que venceu a dor.

Elza Soares retorna aos palcos com sua turnê “A Mulher do Fim do Mundo”, que dá nome ao disco que celebra os seus quase 60 anos de carreira. Em 2014 já havia desafiado suas constantes dores na coluna e sua segunda cirurgia (que lhe renderam oito pinos nas costas), apresentando o show “Elza Canta Lupicínio”. A homenagem ao compositor de seu primeiro grande sucesso “Se Acaso Você Chegasse”, intercalava-se com duas outras apresentações: “A Voz e a Máquina” e “A Bossa Negra”. A inquietude de Elza se traduz em necessidade de cantar e experimentar. Cantar para sobreviver. “Sem cantar eu não sei viver. É minha alegria”, ela gosta de repetir. Em a “Mulher do Fim do Mundo”, reafirma como nunca essa vontade.

Vinda do Planeta Fome

Isso é absolutamente verdadeiro. Foi por necessidade de comprar os medicamentos para seu primeiro rebento, fruto de um casamento aos 12 anos de idade, que se apresentou no programa de rádio de Ary Barroso, o maior da época. Arrebatou o público e o apresentador, que anteriormente havia lhe perguntando de que planeta vinha, devido ao seu jeito e vestimentas extremamente simples. “Do planeta fome”, respondeu com a firmeza de alguém que não desistiria. Obteve as maiores notas e não parou mais de cantar.

Desde então, cantou para comer, para poder descer o morro, para chorar a morte dos filhos (no ano passado enquanto gravava o disco, faleceu o quinto filho de Elza), para lutar contra o racismo, para denunciar violência. Não fugiu da sua história. Ao contrário, cantou sua realidade de mulher negra e periférica, a grande dor de quem amou demais, vítima do machismo, marcada pela fome, pelo abuso, mas também por excessiva força.

Não à toa, a tônica do novo disco é a da superação. Em suas entrevistas, reafirma o jeito crítico de enxergar a vida e o que passou. Diz se arrepender apenas do que não fez. Carrega uma força e lucidez surpreendentes diante de assuntos como violência à mulher e racismo, por exemplo. “E essa história de proibir a pílula do dia seguinte? Por favor! A mulher está sendo violentada de todos os jeitos”, afirma Elza em entrevista concedida ao jornal El País.

Sobre o racismo, sempre afirmou ter sofrido muita discriminação, posicionando-se progressivamente diante de episódios veiculados na mídia sobre o tema. Nunca reproduziu em seus discursos o mito da democracia racial, tão arraigado e difundido no Brasil. A respeito da campanha “Somos Todos Macacos” de 2014, declarou em entrevista: “Escrever que ‘somos todos macacos’ é fácil, mas e dizer ‘somos todos negros’? Ninguém consegue falar isso.”.

A mulher que amou demais

Em 1962, em campo chileno, a seleção brasileira conquistava o bicampeonato na Copa do Mundo de Futebol. Isso é meia verdade. O time que concebeu a conquista não se apoiou em Pelé, contundido na segunda partida. Outro jogador viria garantir a vitória. E essa vitória se constrói primeiro fora dos gramados. É do amor de Mané Garrincha por Elza Soares que nascem os grandes dribles dessa história.

“Eu vou ganhar a Copa para você”, prometeu Garrincha e cumpriu. Quanto mais juntos ficavam, melhor Garrincha era em campo. Isso não é exagero. Amaram-se como poucos. Elza pagou um preço alto. Por ser Garrincha casado, à época, foi perseguida, xingada, teve a casa apedrejada. Nem o conservadorismo e machismo feroz dos anos 60 puderam detê-la. Segurou a barra e permaneceram casados por mais de 16 anos.

Contudo, os problemas de alcoolismo e as agressões sucessivas de Garrincha minaram a relação, quando em 1982, a cantora decide se separar. Fora acusada de abandoná-lo quando a decadência chegou. Engoliu a má fama e foi atrás de reavivar sua carreira, também atingida pela relação. Lutou até o fim por ele. Até hoje, procura preservar a importância de Garrincha para o futebol e para sua vida.

Uma combinação explosiva

Seu novo disco figura entre os melhores lançamentos musicais de 2015. Produzido por músicos paulistanos escolhidos especialmente para o projeto, o time foi composto pelo produtor e baterista Guilherme Kastrup ao lado de Kiko Dinucci, guitarrista. Completam a banda que a acompanha: Marcelo Cabral (baixo), Rodrigo Campos (guitarra), Felipe Roseno (percussão), Celso Sim (direção artística) e Rômulo Fróes (direção artística). São jovens músicos do cenário punk, rock, do rap e samba paulista que se misturam a voz rasgada e crua de Elza para celebrar seu retorno e sua redenção.

As composições são inéditas e o ritmo que marca o disco é chamado por ela de “punk-samba”. Junto a “A Mulher do Fim do Mundo”, “Maria da Vila Matilde” canta a reação de uma mulher golpeada pela vida, ante a violência: seja ela física ou emocional. “Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim” guarda as lições de uma vida marcada pela necessidade de reagir, de se retirar, de se reinventar. “Benedita” denuncia ao final: essa mulher é negra! Apesar de ser uma música sobre uma travesti, Elza identifica-se em sua história. O disco é todo construído através da personalidade e vida de Elza. Aí reside sua maior sacada e seu maior acerto.

Impressionam a percussão e bateria afinadas pela necessidade de abrir caminho para o vozeirão que logo tomará tudo. Alternando os momentos de suingue, batida e calmaria do disco, o espetáculo combina magistralmente os instrumentos de corda e sopro para compor a execução das faixas. Estão todos comprometidos em tornar aquele momento único, com uma musicalidade de alto nível, característica do trabalho da artista.

Já no primeiro momento, as marcantes batidas de funk e rap, acompanhadas da cuíca, deixam frustrados os expectadores que veem tudo aquilo sentados em fileiras coladas. Ali, todos se sentem um pouco como Elza. Estão presos em sua vontade de que o corpo expresse a alma. Queriam possuir a pujança de Elza para que o sentir ultrapassasse os limites da cadeira.

A Mulher do Fim do Mundo

Sob o vestido negro que toma o palco como uma espécie de continuação dele, está o salto quinze, sua marca registrada junto ao Black Power que ostenta. São para ela como lembranças de quem foi e de quem é, mesmo que a coluna problemática a tenha impedido de atravessar o palco sobre ele. Elza Soares sabe que, enquanto possuir a voz que a elegeu a maior cantora do milênio, pela BBC londrina, cantará até o fim, de qualquer maneira.

“A mulher do Fim do Mundo” coroa uma Elza que chega aos sessenta anos de carreira com a autoridade construída pelo seu talento irretocável e sua intensidade. Conduz sua música por caminhos desafiadores até hoje, pois só assim sabe ser. Expulsa de si toda a paixão que tem pela vida, apesar de. “C’est La vie”, ela diz. Seu novo álbum é sua recusa de se conformar. Ela quer cantar até o fim. Se libertar da violência.  É a obra de alguém que não desistiu. Elza é uma mulher que superou o fim.

 

Referências:

<http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2014/07/11/madrinha-de-62-elza-soares-aponta-erro-na-selecao-virou-elite.htm>. Acesso em: 18 de janeiro de 2016.

Confira o álbum: A Mulher do Fim do Mundo. Disponível em: <http://www.blognotasmusicais.com.br/2015/09/eis-as-onze-musicas-gravadas-por-elza.html>. Acesso em 18 de janeiro de 2016.

<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/10/1689464-elza-soares-renasce-das-cinzas-com-seu-ja-historico-novo-disco.shtml>. Acesso em: 17 de janeiro de 2016.

<http://sopedradamusical.com/elza-soares-a-mulher-do-fim-do-mundo-natural-musical-2015/>. Acesso em: 18 de janeiro de 2016.

<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151211_entrevista_elza_soares_costa_barros_lgb>. Acesso em: 18 de janeiro de 2016.

<http://www.revistacapitolina.com.br/a-cantora-do-milenio-e-mulher-negra-brasileira-e-feminista-elza-soares/>. Acesso em: 18 de janeiro de 2016.

Entrevista com Elza Soares. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/28/cultura/1445997545_661801.html>. Acesso em: 17 de janeiro de 2016.

<http://elzasoares.com.br/elzasoares/elza-soares-a-voz-e-a-maquina/>. Acesso em: 18 de janeiro de 2016.

Elza e Mané Garrincha. Disponível em: < http://rollingstone.uol.com.br/noticia/elza-soares-fala-sobre-feminismo-mane-garrincha-e-lupicinio-rodrigues/>. Acesso em 19 de janeiro de 2016.