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TEORIA

As trôpegas revoluções do século XXI e a Revolução de Outubro

Fábio José de Queiroz

Há pouco mais de dois anos, elaboramos para este blog um artigo no qual a questão fundamental posta era: existe uma teoria da revolução em Trotsky? Resolvida, pela positiva, a indagação, é hora de continuar a reflexão ali iniciada. Neste artigo, a ideia de revolução, que nutre o pensamento do marxista ucraniano, se presta como suporte teórico às considerações acerca das revoluções do século XXI e de seus possíveis nexos e incongruências com relação à Revolução de Outubro na Rússia.

Trotsky afirma que a história “trabalha com lentidão, com crueldade insensível, mas trabalha” (S/D, p. 349). Isso nos faz lembrar que a revolução tem o seu tempo, ainda que, também, tenha o seu sentido e a sua expressão. No que toca ao tempo, ela tende a nos lembrar de um velho provérbio árabe que diz que “o maior erro é a pressa antes do tempo e a lentidão ante a oportunidade”; quanto ao sentido, ela é uma competição aberta entre as forças sociais em luta pelo poder; quanto a sua expressão, ela se revela na entrada violenta das massas no domínio de decisão do seu próprio destino. (TROTSKY, 2007 (I), p. 9)

Ou seja: a revolução é uma categoria histórica e uma prática que se assemelha a um caleidoscópio. Entendê-la implica tomá-la em sua perspectiva multiforme. Em todo caso, o nosso objetivo é familiarizar mais estreitamente o leitor com um objeto que, ao longo do tempo, não se constrange de apresentar combinações variadas em confronto com o espelho inclinado da história.

Marx (2008) sustenta que não se deve buscar inspiração na poeira do passado. Para ele, que os mortos enterrem os seus mortos tem o sentido de afirmar que a época das revoluções burguesas cede o seu posto a uma nova época cujo signo máximo é a revolução proletária. 132 anos depois da morte de Marx, essa “nova época” está historicamente superada? A revolução social é uma ferramenta antiquada na presumida “era do facebook”?

O século XXI nos oferece um acervo de acontecimentos que, em regra, despreza esse tipo de compreensão fundado na ideia de que a revolução está fora de moda. Mas tomar a história como ela se apresenta (nesse começo de século) implica recordar os processos revolucionários que, duas vezes na Bolívia e uma vez no Equador, opõem-se ao diagnóstico doloroso de morte da velha senhora; significa lembrar-se de sua infatigável presença nas terras áridas do norte da África e do Oriente Médio, ainda que sob o peso gigantesco de contradições que parecem se comprouver do sofrimento humano; ainda que pareçam nem importantes nem memoráveis.

O que as experiências dos primeiros anos do novo século têm nos dado como prendas apontam no sentido de que, às vezes, a vida nos oferece um prólogo excessivamente longo. Nesse caso, parece inútil ofertar ao mundo uma flor de girassol, pois a realidade parece pouco apreciar esse gesto de cortesia e os seus ritmos no rumo da mudança não dependem de um simples movimento do corpo.

Veja-se o caso do Egito.  Ali, as massas tomam de assalto ruas e praças e alteram bruscamente a correlação de forças na sociedade egípcia e lançam centelhas a escala mundial. A isso, pelo menos em um determinado momento, não chamamos de revolução? Terá o leitor, porém, nos últimos tempos, observado algo mais carregado de elementos opostos e conflitantes? Infunde ou não perplexidade o encontro violento da revolução com a contrarrevolução sem que novos horizontes políticos se descortinem com o mínimo de nitidez? O levante popular que acaba em um golpe militar conduz o ponto de vista que não vai ao fundo das coisas a só enxergar o segundo e ignorar o primeiro ou simplesmente inverter o ângulo da interpretação. Nos dois casos, estamos perante erros simétricos de apreciação da história e que se resumem a uma só palavra: unilateralidade.

Como acaba a Revolução de Novembro de 1918, na Alemanha, senão em um banho de sangue, inclusive com os assassinatos, no ano seguinte, de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht? No mesmo período, a Revolução, na Hungria, não recebe a sua última pá de cal com a intervenção militar da Romênia? Nos dois casos, os processos revolucionários abortados devem ser esquecidos e, nessa perspectiva, se admitir que, no patíbulo da história, só há lugar para a história dos vencedores?

Não há contrassenso histórico de que um levante revolucionário de massas seja afogado e extraviado pela força de um putsch militarista, como o que, por exemplo, ocorre em meados de 2013, no Egito. O erro faz se notar no momento em que se perde de vista a brutal mudança na correlação de forças. Essa, talvez, seja a questão-chave. Essa argúcia é necessária, particularmente, em tempos de revoluções extraviadas.

Ante a etapa presente na qual se encontra submersa a humanidade, essas contradições, somadas à lentidão de mudanças as mais prosaicas, comezinhas, parecem conduzir os que são tomados como revolucionários a ingerir do célebre elixir do pirronismo. Dado o exercício da dúvida, há de se indagar: no nível das relações políticas, essa lentidão e contraditoriedade do processo revolucionário não inspiram a que muitos de nós, marxistas, conjecturemos que, de fato, os processos revolucionários, definitivamente, sobram e despencam, e assim, se perdem nas curvas fechadas de um século que só lhes tem horror?

Efetivamente, do mesmo modo que tantas outras coisas, nomes e fenômenos, a revolução não se revela com a acessibilidade que os idealistas de plantão desenham em suas mentes brilhantes. Ainda mais: “As massas entram na revolução não com um plano de reconstrução social, mas com um agudo sentimento de não poderem mais suportar o velho regime”. (TROTSKY, 2007, p.10) No exemplo da Bolívia, a entrega do gás e da água por uma burguesia autóctone, subalterna ao imperialismo, faz com que as massas entrem em movimento e ponham na ordem do dia a derrubada do velho regime. Mas, elas não trazem consigo um plano de reconstrução social. Obviamente, que essa contradição permite à classe burguesa desviar o curso revolucionário para a mão morta da reação democrática. Também é manifesto que as direções surgidas dos embates não se furtam a fornecer ajuda à classe dominante que vacila sobre as pernas. É assim que se extravia a uma revolução.

Obviamente que os mais melancólicos e nostálgicos esperam ouvir a música que, em outubro de 1917, é cantada nas ruas de Petrogrado. Há um pequeno problema que costuma ser desprezado: a história não torna a fazer ou a dizer. Ela não se repete. Cada processo revolucionário tem as suas personagens, as suas palavras de ordem, os seus atos e o seu veredito. As canções do século XXI não são as canções de 1917. Não é preciso repetir uma revolução que descortina uma época para que esse evento tenha o direito de merecer o nome de revolucionário; ainda que o elemento diferenciador principal entre Rússia, Bolívia, Equador e Egito esteja no fato de que no primeiro caso se desenvolve (junto com o processo mais global) uma direção política que se prontifica a dar um rumo consciente aos acontecimentos, apoiando-se, no entanto, na orientação ativa das massas. Esse elemento pode explicar porque os processos revolucionários produzem resultados tão rigorosamente distintos. Esse aspecto, ao lado da correlação objetiva de forças, é o que, em última análise, pode determinar o desenlace.

O que é decisivo para se definir se tal ou qual sucessão de eventos é ou não uma revolução não é o seu resultado, mas, principalmente, o fato de que as massas passam a interferir direta e objetivamente no governo do seu destino. No século XXI, por mais de uma oportunidade, as massas interferem de maneira direta no governo do seu destino, ainda que as resultantes, definitivas ou parciais, não estejam proporcionalmente ajustadas aos planos a priori que se engrandecem no espírito.

Seja o que for que se imagina aprioristicamente, a inexorável ação das massas, em sua conexão interna, ensina que as revoluções não só constituem uma realidade do século XXI, mas se manifestam por meios e formas para os quais os marxistas não carecem de torcer a cara e mostrar má vontade. Inversamente, sobre elas devem se debruçar e entender (como marxistas) que são essas revoluções – e não a teoria em “estado puro” – as locomotivas da história. Se, ao longo do percurso histórico, a locomotiva freia de modo brusco e vagões inteiros são atirados para fora dos trilhos, esse fato, se não deve ser ignorado, em toda a sua relevância, não pode, no entanto, se prestar a aniquilar o sentido geral dos processos revolucionários.

Defender “novos outubros” não pode ter o sentido de sustentar a frágil tese de uma história que se repete; defender “novos outubros” significa que a história do século XXI precisa atar os seus fios com o conteúdo mais profundo da fibra longa de 1917; não para reproduzi-la, mas para, partindo dela, seguir adiante. Reafirmar, enfim, que a revolução socialista é mais uma necessidade do novo século do que um desejo de recordação.

Para efeito de exemplo: a revolução russa de 1905 é um esboço fundamental para a de fevereiro de 1917, assim como essa se constitui na antessala da revolução de outubro. As revoluções bebem das revoluções, mas elas não se repetem. A Revolução de Outubro bebe da Comuna de Paris e da grande Revolução Francesa. Bebe sem, no entanto, reprisá-las. Nesse sentido, as revoluções do século XXI precisam se encharcar da experiência de outubro, não para imitá-la, mas para continuá-la e aprofundá-la. Por esse prisma, a revolução de outubro segue como um legado insubstituível às práticas revolucionárias de um século que apena começa.

Desse modo, quaisquer que sejam os seus resultados, as revoluções do século XX (a russa, em particular), não devem receber um tratamento fatalizado, como se delas se negasse qualquer nível de empreitabilidade à história do tempo presente ou como se se tratasse unicamente de plagiá-las.

Notoriamente, para um raciocínio não dialético, essa não é uma discussão fácil. No estádio mecânico do pensamento, se a história não se repete nunca, não se pode retornar a outubro. Esse tipo de compreensão é essencialmente mecânico, dedutivo: ou se retorna ou não se retorna. O fato em si não tem retorno. O que carece ser retomado não é mais do que uma tradição, um programa e uma estratégia. Esses três aspectos correspondem ao legado de outubro. Para que a revolução do século XXI não estacione na próxima gare – ou avance apenas para recuar até o ponto de onde inicialmente partira – aqueles que a reivindicam, e a ela dedicam as mais ilustres páginas de seu tempo, não podem se tornar reféns de um critério não dialético de apreciação da história.

Ao nos apoiar em Trotsky, buscamos atar as duas pontas do fio (1917 e o século XXI), pois se a teoria do líder comunista, em larga escala, sintetiza, vigorosamente, a tradição, o programa e a estratégia da Revolução de Outubro, de outro lado, não é que faltem revoluções; os primeiros anos do século são pródigos em processos revolucionários. Faltam a esses processos, entretanto, o programa e a estratégia que estão contidos nessa tradição a que podemos nomear de marxista, bolchevique ou simplesmente socialista.

No Egito, dir-se-ia que tudo muda, mas continua como antes. O país é abalado pela revolução, mas o exército “imperial” reage e segue o seu domínio. A lição egípcia, assim como a equatoriana e a boliviana, ensina que, na presente etapa da luta de classes, as revoluções sem uma estratégia e um programa nítidos, com um inelutável corte de classe, apresentam como tendência mais provável que a dinâmica dos fatos leve a que o poder seja entregue a burguesia, independentemente do regime político que se estabeleça (civil, militar, colonial, semidemocrático, democrático-parlamentar etc.). Em um enquadramento breve, esse tende a ser o roteiro tortuoso.

Além disso, importa assinalar que, em larga medida, por mais que se choquem a cada passo com o esquema histórico geral, as revoluções do século XXI demonstram que não guardam incompatibilidade com o ato de evocá-las à luz do tempo presente. Discussões à parte, as revoluções contemporâneas se revelam em cores vivas; consequentemente, não como artefatos de um passado extinto, expressões fantasmagóricas, mas, de modo geral, como fenômenos históricos que não cessam de se reinventar. No fluxo da história há muitas linhagens de revolução. Movidas pela urgência do momento histórico, as ações revolucionárias do século em tela contêm elementos peculiares, mas não são as contraparentes das estirpes que parecem ainda caminhar pela passarela do breve século XX. Talvez fosse mais correto tomá-las na linha de parentesco de uma série de múltiplas formações de uma só genealogia. Nesse particular, uma vez mais, o processo histórico é desafiador.

À luz desse quadro, há de se concluir, aqui, sumariamente: se a revolução é a esfinge das explosões sociais do começo do século XXI, essas explosões sociais são os primeiros signos da primeira. Mas, para que os primeiros passos não morram perante o desafio dos passos seguintes, faz falta um “sistema de educação revolucionária para a realização da revolução proletária”, ou seja, a seleção e educação do pessoal dirigente “que não fuja no momento da sua revolução de outubro” (TROTSKY, 2007, p. 122). Em 1917, esse sistema de educação atende pelo nome de bolchevismo. Esse fato não deve ser negligenciado no processo de seleção e educação do pessoal dirigente das revoluções do século XXI. Do contrário, a incongruência entre elas e o outubro bolchevique há de permanecer e pode vir a se constituir no prefácio de novos e futuros desastres. Na medida em que nos aproximamos do centenário da Revolução de Outubro, mais do que tudo, precisamos aproximar a teoria e o programa do interesse prático de emancipação de todo aquele que vive sob o domínio irritante do capital.

É desse interesse prático que nasce a persuasão de que as revoluções do século XXI não hão de ser expurgadas da história.

BIBLIOGRAFIA:

MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte, In: a revolução antes da revolução, São Paulo: Expressão Popular, 2008.

TROTSKY, Leon. A revolução de 1905, São Paulo: Global Editora, s/d.

_________. História da revolução russa, tomo I, parte 1, São Paulo: Sundermann, 2007.

_________. Lições de outubro e outros textos inéditos, coleção 10, São Paulo: Editora Sundermann, 2007.