Carlos Zacarias de Sena Júnior*
Nos últimos meses um importante fenômeno, há tempos recolhido e pouco ativo na nossa política recente, voltou a ressurgir. A ocupação das ruas da parte de setores da direita tradicional acentua uma tendência com interfaces nas últimas eleições, mas que, em perspectiva histórica, só muito excepcionalmente transcende os limites das instituições e o jogo eleitoral. Considerando não ser do ordinário das disputas eleitorais no Brasil uma permanência da polarização para muito além dos pleitos, o que estaria acontecendo na conjuntura política do nosso país? De que forma podemos identificar os resultados eleitorais como reflexos, diretos ou distorcidos, das disputas efetivamente travadas no âmbito da sociedade de classes? Haveria uma mudança efetiva na correlação de forças no país que aponta para um avanço das direitas tradicionais e seus setores golpistas, ou pode-se deduzir que as sucessivas vitórias eleitorais do Partido dos Trabalhadores (PT) significam que há um ascenso institucional do campo dos explorados e oprimidos?
Em que pese que o PT novamente ganhou as eleições majoritária realizadas no Brasil em 2014, o país que saiu das urnas assistiu a um avanço importante das forças conservadoras refletida naquilo que se chama de bancada BBB (Bíblia, Bala e Boi), ligada aos evangélicos e ao fundamentalismo cristão, aos setores armamentistas e militaristas e aos latifundiários e agronegociantes. Poder-se-ia dizer que, pela composição atual do Congresso Nacional, o PT ganhou, ainda que por um pequeno percentual de diferença, mas não levou, haja vista que precisará aprofundar ainda mais a linha política de conciliação que vem praticando há mais de uma década. A sociedade, entretanto, pareceu endossar pautas mais diretamente conservadoras ao eleger contrapontos importantes às políticas que podem ser tomadas por progressistas encampadas pelo partido que governa o país desde 2002, especialmente quanto aos programas de renda mínima, como o bolsa família e assemelhados.
Por paradoxal que possa parecer, a eleição de uma bancada de perfil mais conservador para o Congresso Nacional pode não significar exatamente que a sociedade está inflexionando uma posição adotada há mais de uma década, quando elegeu um operário oriundo do movimento sindical e principal liderança de um partido com estreitos laços com a classe trabalhadora. Isso porque, observando-se as últimas eleições e também os movimentos que ocorreram no país nos últimos anos, não estaria fora de questão que a polarização atual agudiza as contradições cujas expectativas não foram resolvidas com as sucessivas eleições de Lula e Dilma no plano federal e a importante presença do PT em muitos estados. Ou seja, mesmo com a reeleição de Dilma Rousseff para a presidência do Brasil amparada em ampla coalizão, o sinal emanado das urnas parece dizer que as soluções podem não passar pelo plano institucional e que as questões decisivas, ao que parece, poderão se decidir a partir das ruas.
Mesmo se constituindo em fenômeno de grande relevância sob todos os aspectos, especialmente se considerarmos os quantitativos humanos, emoções e sentimentos que mobilizam, as eleições não encerram todas a possibilidade de participação política da sociedade de classes. Todavia, na maioria das vezes, seja numa situação de normalidade democrática, ou mesmo em um momento de extraordinário ascenso revolucionário, não raro, são os setores das classes dominantes que detém os meios mais eficazes para se manterem dirigindo os processos políticos eleitorais, se constituindo como classes dirigentes. Tal circunstância pode ser comprovada através da história, pois mesmo nos momentos em que a política substituiu a História com “H” maiúsculo, ou quando os processos de explosão das consciências dos sujeitos se sobrepuseram às estruturas que mais lentamente se movem na dialética do tempo histórico, naqueles momentos precisos, quando os elementos da vontade foram mais eficazes que as forças da necessidade, se ocorreram eleições, foram as forças conservadoras que fizeram as maiorias parlamentares. Foi assim nas eleições francesas que sucederam à Revolução de 1848, marco inaugural da Primavera dos Povos, ou nas eleições ocorridas durante a Comuna de Paris, quando os velhos monarquistas que tinham acabado de ser derrotados pelas insurreições venceram o pleito. Nem mesmo nas eleições para à Constituinte Russa, ocorrida em novembro de 1917, logo após a tomada do poder pelos bolcheviques, lastreados numa maioria construída nos Sovietes, impediram que socialistas-revolucionários (esseristas) elegessem a maioria dos representantes.
As eleições não são, portanto, os terrenos mais férteis de onde os principais sujeitos sociais e políticos da sociedade de classes, ou seja, os trabalhadores e seus partidos, podem fazer a história. Não obstante, nem mesmo na tradição dos partidos mais revolucionários no século XX o absenteísmo foi defendido de uma perspectiva estratégica. Muito ao contrário, pois ninguém menos que o próprio Lenin esgrimiu argumentos convincentes contra os esquerdistas holandeses, ingleses e alemães que pretendiam abandonar o terreno das eleições, que acertadamente acusavam de desfavorável, para pregarem a não participação dos revolucionários nas eleições e nos parlamentos burgueses. Sobre o assunto, o dirigente bolchevique insistia que caso os partidos revolucionários quisessem efetivamente disputar a consciências da maioria dos trabalhadores, o que se devia fazer era estar presente nos locais onde estava a classe, sob o risco de isolamento e perda de influência. Ou seja, enquanto a maioria dos trabalhadores seguia acreditando que podia mudar as suas vidas através das eleições, não havia porque os revolucionários abandonarem a disputa das urnas à exclusiva influência dos partidos da burguesia, já que o objetivo dos revolucionários era conquistar as massas e não substituir seu protagonismo político. Isso não dispensava os revolucionários de continuarem denunciando os parlamentos e as eleições como espaços de hegemonia burguesa e conservadora, ao mesmo tempo em que se deviam incentivar os trabalhadores a acreditarem no seu protagonismo e nas suas próprias forças, especialmente quanto ao método das greves e da ação direta. (LENIN, 1981)
Mas que não se pense que sendo terreno das classes dominantes e dos seus partidos, as eleições sejam inacessíveis para os partidos da classe trabalhadora. Em conjunturas específicas e extraordinárias pode-se assistir a ascensão de partidos operários, alguns deles fracamente identificados com a revolução, quando não impulsionados por ela. Em todo caso, ascensos eleitorais de partidos das classes trabalhadoras e setores subalternos em geral, só são possíveis em conjunturas de grande acirramento e polarização, especialmente em situações revolucionárias ou pré-revolucionárias. Foi assim com as frentes populares espanhola e francesa na década de 1930, que emergiram em meio a abertura de uma vaga revolucionária na Europa, que opunha a revolução à contrarrevolução fascista. Foi assim também nos processos referidos acima, quanto ao caso francês e russo, que apesar da derrota eleitoral dos grupos que dirigiam a insurreição, o quantitativo de votos recebidos pelos partidos revolucionários só foi possível em virtude do ascenso que atingia as grandes cidades onde o proletariado estava concentrado, como Paris, Petrogrado, Moscou e Kiev. Decerto que havendo uma situação revolucionária pode haver a possibilidade de ascensão de forças progressistas e revolucionárias, muito embora, como observado, mesmo nessas situações não é incomum que as forças do atraso possam ser majoritárias nos pleitos que indistintamente alcançam toda a sociedade, fazendo com que o voto de um camponês dos recantos mais remotos de um país valha tanto quanto o voto de um trabalhador da indústria, sindicalizado e ciente dos seus direitos.
Se as eleições não são o terreno mais favorável aos trabalhadores que cotidianamente enfrentam seus patrões na luta de classes, não foram, todavia, as classes dominantes que, na sociedade burguesa, ligaram sua existência ao sufrágio universal. Ou seja, não foi a tradição liberal-burguesa que defendeu a universalização do voto aos maiores de 21 anos do sexo masculino, como era possível no século XIX. Foram os trabalhadores que introduziram este dispositivo como conquistas do movimento operário e das revoluções modernas, como foram as mulheres trabalhadoras que, posteriormente, defenderam a extensão desses direitos ao sexo feminino, sendo apoiadas pelos partidos dessa classe, compostos por uma maioria de homens. Desde as experiências francesas de agosto de 1793 e de fevereiro de 1848, ou quando dos episódios inaugurados com a Revolução de Fevereiro na Rússia, que o sufrágio universal foi introduzido e passou a ser uma bandeira do movimento operário e socialista europeu e mundial nos anos seguintes. (LOSURDO, 2004, p. 56)
Apesar da hostilidade das classes dominantes em admitirem a extensão de direitos de voto à maioria da sociedade, são justamente os liberais-burgueses e seus partidos que se pretendem os pioneiros e principais defensores da democracia e do sufrágio universal nos dias que correm. E não obstante permanecerem vencendo a maioria dos pleitos, estão sempre dispostos a rasgarem as constituições e as regras do jogo eleitoral em nome da democracia, caso entendam que o “comunismo” e o “totalitarismo” sejam uma ameaça. O sufrágio universal levou quase um século para se consolidar e se transformar numa consistente ferramenta de controle e manutenção da ordem de classe na sociedade burguesa contemporânea, mas se, de alguma forma, ele dificulta a reprodução da hegemonia burguesa, não haveria porque defendê-lo a qualquer preço, sendo este o raciocínio das classes dominantes ao longo da história. De sua parte, os trabalhadores e seus partidos, caso tenham a possibilidade de substituir a democracia participativa por formas diretas de democracia, como a soviética ou dos conselhos, também não se furtaram a fazê-lo. Ou seja, as formas existentes de democracia precisam ser contextualizadas historicamente e sua permanência depende do interesse das classes fundamentais da sociedade burguesa.
Ainda assim, as classes dominantes preferem o caminho seguro das urnas, porque de outra forma estão sujeitas às incertezas da luta de classes, que pode evoluir para situações adversas, como insurreições populares e mesmo guerra civil. Por seu turno, os trabalhadores entendem a importância das conquistas efetivadas nos últimos 200 anos, ainda que estejam longe de caracterizar como definitivas tais formas civilizacionais. Com efeito, foi sob a forma de reação democrática que muitos processos revolucionários foram abortados, e foi pela democracia que boa parte das direções revolucionárias capitularam à hegemonia burguesa. Ou seja, sempre que um novo processo de ascenso se estabeleceu, o desfecho, tornado difícil pela agudização das contradições e por uma mudança na correlação de forças em favor dos trabalhadores que poderiam protagonizar as mudanças a partir das ruas, encontra um termo com o reestabelecimento da hegemonia burguesa quando eleições são marcadas, e os partidos disputam em supostas condições de igualdade, sejam eles os representantes dos trabalhadores ou das classes dominantes. Nesses casos, os resultados, invariavelmente, tem dado maioria aos partidos burgueses, que logo recompõem sua capacidade de direção, estabilizando a ordem.
Tem sido assim nas eleições recentes, mas que não se pense que a alternativa do sufrágio não esteja nunca ameaçada pelos setores mais reacionários da sociedade de classes. De tempos em tempos, pelos motivos apontados acima, são justamente os trabalhadores a defender as eleições sempre que as forças do retrocesso ameaçam legalidade, afinal de contas, por quantos anos os latino-americanos foram impedidos de votar? Não obstante, será efetivamente este o problema principal colocado para o Brasil diante do que se considera o avanço das direitas e também pelo fato de que os setores conservadores voltaram a ocupar as ruas? O que, de fato, esteve em jogo nas eleições das últimas décadas no Brasil? Quais as saídas para a reação democrática e para a onda conservadora que pode ameaçar a ordem constituída? Os partidos vinculados aos trabalhadores estariam previamente condenados à derrota na disputa eleitoral ou haveria alternativa?
Analisando a abertura de uma nova vaga revolucionária na Europa na virada da década de 1920 para a de 1930, tendo a Alemanha como epicentro, Trotsky observou o grande ascenso eleitoral do Partido Comunista (Kommunistische Partei Deutschlandsnuma – KPD) numa conjuntura altamente polarizada, que punha a revolução e a contrarrevolução com grande peso para o pleito de fins dos anos 1920. Chamando atenção para o fato de que, no plano eleitoral, mil votos fascistas pesavam tanto quanto mil votos comunistas, enquanto na luta revolucionária mil operários pertencentes a uma grande empresa “representam uma força cem vezes maior do que mil funcionários amanuenses”, pois os fascistas nada mais eram do que “poeira de humanidade”, Trotsky anteviu a possibilidade de uma derrota eleitoral nas condições de um acentuado ascenso da luta de classes e de um deslocamento da correlação de forças em favor dos operários e seus partidos. (TROTSKY, s/d, p. 34-35) No final das contas, os fascistas venceram as sucessivas eleições na Alemanha, até que em 1933 chegaram definitivamente ao poder, ainda que por uma pequena margem de votos. Depois de vencerem as eleições e de conquistarem a maioria da pequena burguesia para o seu projeto, os fascistas adquiriram a legitimidade necessária para restabelecerem o princípio da hegemonia da fração financeira da burguesia alemã em crise desde 1918, entretanto foi através da força que exerceram a direção política, quase por cima das classes. Isso ocorreu, segundo Trotsky, devido aos sucessivos erros cometidos pela direção comunista, erros que estiveram relacionados a uma avaliação equivocada da conjuntura da parte da Internacional Comunista (IC).
Caracterizando a conjuntura mundial como tendo entrado “terceiro período” a partir de 1928, que seria de ascenso revolucionário, a IC havia recomendado aos comunistas a imposição de profundas restrições a uma aliança com a socialdemocracia no movimento operário, inviabilizando a Frente Única adotada a partir de 1921, quando Lenin e Trotsky ainda eram dirigentes. Do ponto de vista da direção da Internacional Comunista, a socialdemocracia e o fascismo se equivaliam (tese do “social-fascismo”) e como inimigos renhidos dos trabalhadores deviam ser igualmente combatidos. Como resultado de tal política que não era capaz de distinguir os riscos representados pelos fascistas, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – NSDAP) de Hitler, não apenas venceu as eleições de 1933, como chegando ao poder, teve condições de esmagar o movimento operário, destruindo os partidos comunistas e socialdemocratas e provendo uma das mais violentas e brutais ditaduras da história da humanidade, ditadura esta que conduziu o mundo à Segunda Guerra Mundial, que ao final contabilizou cerca de 60 milhões de mortos.
Em que pese o fato de que os escritos de Trotsky tenham se debruçado sobre uma conjuntura específica e de grande importância para os desdobramentos da luta de classes no plano mundial, o criador do Exército Vermelho intuiu que os processos eleitorais analisados a partir da experiência alemã, poderiam lhe oferecer algo mais do que uma apreciação circunstancial. De acordo com Trotsky, as eleições tendem a reproduzir distorcidamente a correlação de forças da sociedade em qualquer circunstância, pois “[a] representação parlamentar de uma classe oprimida diminui consideravelmente a sua força real, e, inversamente: a representação da burguesia, mesmo na véspera do seu desmoronamento, é sempre mascarada de sua força imaginária”. (TROTSKY, s/d, p. 148) Dessa maneira a tendência é de que as eleições venham a refletir de maneira distorcida a realidade da luta de classes, pois neste espaço há uma imensa desproporção numérica entre a minoria burguesa e uma maioria de trabalhadores, cuja expressão eleitoral é invertida. Mesmo em situações agudas de conflito, a burguesia se ressente da capacidade de dirigir os processos políticos, considerando que os seus líderes não são talhados na escola da luta de classes, que oferece lições permanentes sobre a atuação em processos de massa, nem os seus partidos, na condição de sujeitos políticos, estão capacitados a dirigirem grandes contingentes sociais, posto que as classes dominantes são numericamente insignificantes. Portanto, são quase sempre os dirigentes da classe operária que encabeçam as lutas sociais que tem o terreno das ruas por palco principal. Mas isso não significa que as classes dominantes e as chamadas direitas não estejam dispostas a ocupar as ruas e disputar a direção da pequena-burguesia aos trabalhadores e seus partidos, se as eleições não esgotarem os processos de acirramento da luta de classes. Em circunstâncias extremas, é longe dos palácios e dos gabinetes governamentais que as crises políticas se resolvem, quando entram em cena as forças da revolução e da contrarrevolução, confirmando a afirmação de Lenin que dizia: “As grandes questões da liberdade política e da luta de classes são resolvidas em última análise unicamente pela força (…)”. (LENIN, 1986, p. 392)
Tomados à luz da experiência histórica, as apreciações de Trotsky sobre a luta de classes e seus reflexos nas disputas eleitorais podem servir para analisar os conflitos sociais no Brasil tanto do ponto de vista eleitoral quanto na sociedade como um todo. Quanto a isso, vale lembrar, que o Partido dos Trabalhadores ganhou a última eleição presidencial, certamente a mais polarizada em nossa história recente, mas pelo visto optou por governar com o programa do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), o partido derrotado. Vale ainda lembrar que embora a eleição tenha dado sobrevida aos setores conservadores da sociedade brasileira, parte deles abrigados na ampla coalizão liderada pelo PT e agora compondo o novo governo de Dilma Rousseff, não foram exatamente os partidos mais à esquerda os maiores derrotados. Mesmo considerando os percentuais irrisórios recebidos pelo PSOL, PSTU, PCB e PCO nas eleições de 2014 (juntos esses partidos não alcançaram 2% do eleitorado), não se pode dizer que foram eles a sofrerem a principal derrota. Considerando-se que expressão eleitoral dessas organizações é bastante menor do que sua inserção social, tomar os resultados das eleições como único critério de aferição das forças à esquerda do PT, é dizer da menor parte do que representam. Ou seja, eleitoralmente esses partidos não tem obtido bons resultados ao longo dos anos, muito embora na sociedade sejam forças em ascensão, especialmente se considerarmos que o PSOL e o PSTU, principalmente, mas também o PCB dirigem importantes sindicatos e movimentos populares, parte deles abrigados sob bandeira da Central Sindical e Popular–Conlutas (CSP-Conlutas).
Ainda assim considerando-se que 39 milhões de eleitores, cerca de 27% do total do eleitorado, praticaram algum tipo de absenteísmo, votando nulo ou em branco, poder-se-ia dizer que a democracia representativa e os partidos tradicionais nunca estiveram tão mal avaliados no Brasil Com efeito, nem mesmo os milhões de reais gastos pelos grandes partidos nas eleições foram capazes de convencer percentuais expressivos de que as mudanças se darão por esta via. Seria, então, uma manifestação de repúdio às eleições da parte de um país que tinha vivido dias quentes nas chamadas Jornadas de Junho de 2013? Mas como explicar que os eleitores que escolheram algum candidato optaram por sufragar uma maioria conservadora após as manifestações de 2013?
Discorrendo sobre os tumultuados dias que antecederam a ascensão dos fascistas aos governos europeus entre os anos 1920 e 1930, o historiador Geoff Eley afirmou:
Os erros maximalistas foram uma lição prática sobre como não conduzir uma revolução. Eles alimentaram expectativas sem lhes dar solução. Incentivaram uma disposição de excitação revolucionária, mas se recusaram a lhe dar a forma de um desafio revolucionário. Fizeram do socialismo uma barreira contra o mundo da burguesia e, de trás dessa barricada ideológica, disparavam uma fuzilaria de provocação retórica. Mas, quando as massas cobraram uma atitude e agiram, aconselharam disciplina e paciência. É compreensível que isso gerasse ressentimento. No final de 1920, o movimento se desmantelava, sem direção desmoralizado, arrasado por recriminações. Os fascistas se apresentaram como um agente de pacificação contra-revolucionária. A atividade paramilitar localizada estava fermentando desde o início dos anos 1920 e agora se espalhava violentamente de forma organizada. (ELEY, 2005: 210)
As observações de Eley podem nos servir para pensar a situação do Brasil, pois mesmo sem expressar nenhum tipo de programa que possa ser tomado como maximalista, a chegada do PT ao governo central do Brasil em 2002 representou uma profunda guinada na correlação de forças em favor dos trabalhadores que vinham de pouco mais de uma década de recomposição da hegemonia burguesa implementada a partir do processo de impeachment de Collor, do governo de Itamar Franco e, principalmente, da eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1994. Nessa nova fase de exercício de sua hegemonia, as classes dominantes no Brasil puderam dar consecução ao processo de estabilização política e social do país, a partir da derrota da inflação, da adesão ao Consenso de Washington e de alinhamento irrestrito aos Estados Unidos, que vieram junto com a imposição de políticas neoliberais, com uma onda de privatizações e tentativas de desregulamentação da economia e da força de trabalho, que só não foi mais eficazes em virtude a resistência tenaz dos trabalhadores ao longo da década de 1990.
Obviamente que nenhum exercício de hegemonia plena está imune aos percalços das oscilações da economia no plano mundial, e os humores da política, se não se ligam automaticamente as alterações nas condições objetivas, não deixam de ser influenciadas pelas condições estruturais da sociedade. Com efeito, a crise econômica que atingiu o capitalismo a partir de 1997, tendo como epicentro os países do oriente conhecidos como “Tigres Asiáticos” (Hong Kong, Coreia do Sul, Singapura e Taiwan), logo se estendendo para a Rússia e o México, com repercussões importantes no conjunto da América Latina, anunciaram para o mundo que a estabilidade democrática latino-americana podia estar ameaçada por convulsões provocadas pela adesão em bloco dos governos desses países ao Consenso de Washington. Por conta disso, uma mudança na correlação de forças desses países foi observada, permitindo a eleição de partidos reformistas de grande base popular que sucediam a ascensos sociais importantes dos setores mais subalternizados, especialmente no Equador e na Bolívia, com desenvolvimento desigual e processos específicos nos casos da Venezuela, Argentina, Paraguai, Uruguai, Brasil, Chile e Peru.
No caso brasileiro a eleição de Lula da Silva em 2002 representou uma importante mudança na correlação de forças e nem mesmo a Carta ao Povo Brasileiro, publicada em junho de 2002, em que o PT se comprometia a honrar todos os compromissos com os credores, podia macular a expectativa criada em torno da eleição de um operário, membro de um partido de esquerda surgido das greves, ao governo central do Brasil. Havia esperança de transformação com a eleição de Lula, mas ao lado das expectativas, vieram os compromissos assumidos com frações do grande capital financeiro e especulativo, com frações do agronegócio e do latifúndio, e com frações da indústria nacional. No final das contas, após a emergência de denúncias de práticas de corrupção nos governos de Lula e também de Dilma, a esperança, que “havia vencido o medo”, conforme diziam os marqueteiros do PT, havia se transformado em frustração.
Em política, como se sabe, não há vazio, e aquilo que não avança tende a retroceder. O PT governou nos últimos anos na base de um consenso bastante frágil, tanto do ponto de vista dos acordos que foram estabelecidos com as frações das classes dominantes, como no campo dos movimentos sociais e das organizações sindicais dos trabalhadores. Após três mandatos sucessivos e a emergência de uma crise econômica de grandes proporções que pôs à nu a precariedade desse acordo, que não expressava nada muito além de uma hegemonia fraca (“reformismo fraco”, no dizer de André Singer), (SIGER, 2012) levada a efeito por um governo burguês atípico (Frente Popular), as contradições extrapolaram os limites eleitorais e passaram a cobrar nas ruas os acordos não cumpridos. Por conta disso, as direitas tradicionais, que só puderam engolir o PT na falta de alternativas próprias para dirigir os destinos do país, partiram para o terreno da conspiração, não deixando de insuflar o sentimento de frustração e medo que atinge os setores da pequena-burguesia. Com efeito, mobilizam-se ódios ancestrais, com forte teor anticomunista, onde elegem-se símbolos, antigos e novos, como Cuba e Venezuela, para se sugerir que o país não pode ser conduzido a uma ditadura “totalitária” de esquerda, sob a liderança de Lula e do Foro de São Paulo. Do outro lado, premidos por circunstâncias que objetivamente lhes são desfavoráveis, as direções sindicais que ainda mantém graus variados de adesão ao projeto governista, são empurradas e desafiadas por suas bases a caminharem para esquerda, o que determinou um grande ascenso de greves no Brasil no ano de 2012, que teve o maior número de paralisações e de horas paradas desde 1996, segundo o DIEESE (2013).
Para completar o quadro pintado acima, a intensificação das denúncias de corrupção praticadas por todos os partidos que receberam verdadeiras fortunas de empresas privadas nas eleições, com um óbvio foco principal no partido do governo, potencializou um sentimento de descontentamento que promoveu pautas anticorrupção tipicamente encabeçadas pelos setores da direita no país. Por conta disso, passeatas foram convocadas por organizações assumidamente de direita, como o Movimento Brasil Livre (MBL), o Movimento Vem pra Rua, o SOS Foças Armadas e a organização que atua nas redes sociais Revoltados On Line. Entre as pautas principais dessas manifestações, que também contaram com a presença de lideranças da direita tradicional e de seus partidos, estão o “Fora Dilma”, a luta pelo impeachment da presidente e um sinistro pedido de “intervenção” das Forças Armadas. Como resposta a esses movimentos, os setores governistas promoveram, incialmente, passeatas e manifestações de apoio à presidente, com o subterfúgio de defesa da legalidade, dos direitos trabalhistas e de luta contra a direita. Neste caso, como não puderam quantitativamente fazer frente às manifestações da direita tradicional, e também pelo fato de que amplos setores dos trabalhadores, se não já romperam com o governo, desconfiam profundamente das políticas implementadas em torno de um ajuste fiscal que ataca os direitos e precariza o trabalho, a conjuntura termina colocando as organizações sindicais e populares diante do desafio de fazer avançar as lutas, ainda que o custo seja o de enfraquecer os laços com PT, com resultados incertos.
E se não está descartado que o desenlace da maior crise política e econômica vivida pelo país possa ser resolvido longe das urnas e antes das próximas eleições gerais marcadas para 2018, não é certo de que este caminho seja a opção principal dos partidos da direita tradicional, haja vista ser bastante improvável que qualquer movimentação golpista mais consequente conte com o apoio dos Estados Unidos, como ocorreu em 1964. Também não parece razoável supor que o PT de Lula e Dilma Rousseff possa ter o mesmo destino que o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) dos tempos de João Goulart, isto porque o PT tem ainda uma forte base social facilmente mobilizável caso a legalidade esteja efetivamente ameaçada.
Por fim cabe mencionar que não há qualquer crise no padrão de acumulação adotado pelo Brasil como havia há 50 anos, quando o populismo foi incapaz de oferecer saídas às frações da burguesia associadas e ao próprio imperialismo. A atual crise econômica tem dimensões mundiais, mas o desfecho político de crises no sistema, mesmo nos elos mais débeis da cadeia, como parece ser o caso do Brasil, pode passar pelas urnas, que provavelmente refletirão distorcidamente a correlação de forças na sociedade. Todavia, quando o tema da luta de classes é fundamentalmente a política, qualquer prognóstico tem que contar necessariamente com a imprevisibilidade das contingências.
*artigo publicado originalmente no nº 21 da revista Olho da História
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AGULHON, Maurice. 1848: o aprendizado da República. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
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LENIN, V. I. “Duas tácticas da social-democracia na revolução democrática”. In: LENIN, V. I. Obras escolhidas. 3 ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1986, pp. 382-472.
———————. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. 5 ed. São Paulo: Global, 1981.
LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo. Triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; São Paulo: Editora Unesp, 2004.
MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
SIGER, André. Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
TROTSKY, Leon. Revolução e contra-revolução. Lisboa, Porto, Luanda: Centro do Livro Brasileiro, s/d.
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