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TEORIA

Tanto Mar (ou para a história do povo na revolução portuguesa • 1974-1975)

Betto della Santa |

«Foi bonita a festa pá/ Fiquei contente/ Manda novamente/ Algum cheirinho d’Alecrim.» (Francisco Buarque de Hollanda apud Raquel Varela)

Advertência*: O texto que segue não é uma típica resenha. Trata-se de alento com bocadinho mais de fôlego. Como na canção de Lenine pedimos um pouco mais de paciência.

[*Assista ao video de Booktrailer do livro com depoimentos gravados de historiadores sociais como Valério Arcary, Marcelo Badaró, Marcel van deer Linden abaixo do texto.]

I.

Tanto Mar é o que separa o Brasil de Portugal. A canção popular de Chico Buarque não deixa de ser a tradução poética de uma distância espacial. Mas as coordenadas históricas que separam a ditadura militar brasileira da revolução socialista portuguesa desenham o arco de uma, tanto maior, «discordância de tempos». Essa bienal rubra – de Portugal – coincidiu com os anos de chumbo, no Brasil. E não poderia haver maior desencontro. É com esses versos, nada obstante, que a jovem historiadora – Raquel Cardeira Varela – dá início à narrativa de História do Povo na Revolução Portuguesa (1974-1975). Ela mesma oferece a oceanografia para uma marejada Portugal-Brasil. Por muitas (e variadas) razões é um livro necessário, urgente e, sobretudo, social e politicamente útil; para as mais amplas maiorias da história global das pessoas que vivem do próprio trabalho. Por que se trata do que é o mais profundamente revolucionário e extensamente democrático processo histórico de quê se tem notícia após a Segunda Guerra Mundial em todo o Planeta.

O Brasil comparece – outra vez – na prefaciação de Ricardo Coltro Antunes, que apresenta, a todo o público de fala portuguesa, o seu ponto de vista ultramarino. Desse modo os nexos entre o nacional e o internacional – forma e conteúdo da historiografia social e do trabalho de Raquel – são marcas de anunciação já desde os elementos pré-textuais de sua poderosa obra magna. A história social (e política) contemporânea é o seu terreno. E quando se trata da história do tempo recente as várias tensões, conflitos e disputas são algo mais intensos. As conexões entre passado e presente são já demasiado autoevidentes como para serem, ora, soslaiadas. As alternativas em aberto, as paixões partigianas e o que há de fissuras – e mal-estar – pretéritos, ganham corpo com maior nitidez e mais contornos no inquérito historiográfico do passado imediato. As batalhas, travadas nas trincheiras da escrita do histórico são, também, escaramuças, que se as combatem nas casamatas do fazimento da história. A interação entre o devir político histórico e a artesania intelectual da historiadora – Histoire e Geschichte – encontram-se em dialetização sem fim.

II.

Varela redige seu trabalho como uma historiadora ciosa de seu ofício – que conhece, cultiva e ama – e uma ardorosa combatente sem quartel. Uma prosa arriscada e vigorosa coteja fontes primárias, as mais múltiplas e mais diversificadas – dos jornais à cinematografia, dos dísticos partidários aos documentos oficiais –, com o estado da arte da atual literatura nacional e internacional. A tenra colheita (e articulação) de dados, o entretecimento épico-dialético das narrativas e a fina artesania da reconstituição de fatos e aconteceres constituem, daí, um verdadeiro tour de force. Mas nós acreditamos que uma leitura «mais de perto» possibilita, efetivamente, o desvelamento de contribuição original (e a portentosa criação) que se permite antever desde o próprio título. Trata-se de um constructo com duplo caráter. A senha para o motim vem da fertilização recíproca do que é a «História do Povo» e sua herança, por um lado, e a «Revolução Portuguesa» e seu legado, por outro. Aqui estão duas ricas vertentes:

1) A História do Povo perfaz uma tradução intercultural, em sentido pleno, do que nós aqui no Brasil – em uma primeira leitura – associamos, imediatamente, à tradição da People’s History, sobretudo, a partir da história vista [e feita] de baixo (“history from below”), notorizada pelas penas de toda uma cepa de historiadores de processos sociais e críticos de ideias ingleses, como Edward Palmer Thompson, Raymond Henry Williams e Eric John Hobsbawm. O Grupo de Historiadores do Partido Comunista da Grã-Bretanha escreveu páginas de história ao ousar se desmarcar da narração de grandes personagens e dos Estados-maiores, enfim, a história de cima. E é com um apaixonado interesse que registro essa inspiração – focando humilhados e ofendidos, deserdados da Terra, grupos subalternos e classes que vivem do próprio trabalho –, haja vista os meus estudos e pesquisas que concernem, também, a essa tão notável tradição intelectual. A sua mais viva inspiração contudo, convicta e confessadamente, aponta à Outra margem do Atlântico Norte. Howard Zinn – o historiador anarquista – e sua People’s History of the United States. O autor, muitos menos conhecido no Brasil (do que são os seus pares ingleses), tampouco deixa de apontar uma simpatia política pela auto-organização independente de quem “trabalha para viver”.

2) A Revolução Portuguesa, substantivo + adjetivo, indicia um marcador nacional, é bem verdade mas, sobretudo, aponta para a presença ostensiva da história (e da teoria) da revolução. Mais uma vez, Raquel não esconde de onde vem e para aonde vai – da mesma forma que não se omite de para quê + para quem aos quais todo cientista social deve se haver. A pista, aqui, é a dedicatória de seu texto a Valerio Arcary, historiador trotskista, que realizou seu batismo de fogo na Quarta Internacional durante a mesmíssima Revolução dos Cravos. O reconhecimento do quê é a grandeza dos «historiadores populares» não passa aqui pela vista-grossa a suas limitações. Uma história do povo que se encontra com processos revolucionários do tempo presente em insurreições sociais do Séc.20, antes do que um marcador nacional, é uma declaração de princípios. Mas isso, de fato, não é mais do que um começo. À sua própria versão de história de baixo Varela elenca os aspectos da herança aos quais intende renunciar:

  1. O empiricismo das fontes deveria dar lugar a uma mútua imbricação entre conceito e evidência, ou melhor, o vigor daquele metiê historiográfico tipicamente anglossaxão deveria se aproximar mais da força da teoria social marxista revolucionária, impregnando-se daí de léxico político a envolver noções tais quais dualidade de poder, relação de forças em cena e situação revolucionária;
  2. A reificação contextual – de fronteiras nacionais – ganharia em ceder lugar a um renovado “internacionalismo metodológico”, o quê, no caso da revolução portuguesa, aponta para a indissolúvel conexão com as lutas anticoloniais em África;
  3. A própria concepção do fazimento da história, enquanto um ato de autodeterminação coletiva, por fim, granjearia novos continentes ao ampliar-se em escopo e espectro até incorporar, em cheio, a própria forma das revoluções sociais e políticas “de baixo para cima”. Trazer a história do povo até a revolução é – também – levar a revolução a seu seio.

III.

Em verdade, esse pacto com Clio – ao qual se filia a autora –, é tributário de uma outra tradição intelectual, menos incensada na academia portuguesa e brasileira. A historiografia adogmática e antideterminista de Raquel considera que revoluções são impossíveis até se tornarem inevitáveis. Falando em miúdos – e resumindo brutalmente – a história do povo de Raquel Varela combina, com maestria, a via de mão dupla entre o que a historiografia zinn-thompsoniana oferta e aquilo o que certo marxismo – marx-trotskiano – proporciona. Não por outra razão cremos que mais que uma mera resenha a propositura do presente diálogo vivo, a um só tempo duro e terno, tem a audácia de sugerir que, não só as teses da autora são originais, e sua arguição consistente, do ponto de vista da historiografia social,sobre a revolução portuguesa, como é-nos apresentado um aporte inovador, com seu quadro, desde a perspectiva da teoria marxista-mundial contemporânea. O feliz encontro de amor-camaradagem entre ambos os horizontes sacode a poeira dos dois lados. Como se diz no mundo de fala inglesa é uma win-win situation, isto é, são todos a sair ganhando.

Da História Global do Trabalho (“Global Labor History”) herdou um certo anti-“nacionalismo metodológico” (circunscrito territorialmente este ao Estado-nação tal limite “natural” da história, com visada eurocêntrica). Tal perspectiva teórico-metodológica explica e compreende o combate em África – as lutas de libertação nacional mediante “guerras de guerrilha”, ancoradas no apoio amplo de trabalhadores rurais e camponeses das antigas colônias portuguesas, no continente – de forma em tudo inextrincável às batalhas operárias e populares na citadina metrópole lisboeta, da mesma forma como a Revolução de Abril influíra no vir-a-ser da queda da ditadura espanhola. Marcel Van der Linden – International Institute for Social History, Amsterdã – e, antes dele, Perry R. Anderson – University of California, Los Angeles –, criticara Edward P. Thompson de The Making of the English Working Class justamente deste ponto de vista. Nas diversas polêmicas travadas entre Anderson e Thompson – duas diferentes gerações de marxistas historiadores, desde a New Left inglesa – queda clara uma questão-chave, algo obscura na fortuna literária de Arguments within English Marxism (o último lance dessa controvérsia já estratégica): a teoria, a política e a historiografia de Leon Trotsky tal resorte fundamental do world-Marxism.

IV.

Raquel é uma historiadora sul-europeia, atenta à formação – histórico-social – de uma vontade coletiva do povo-nação, que sabe que os proletariados de cada país tem seu destino grupal selado pela sorte das lutas de classes para além das fronteiras nacionais. Na pequena – porém valorosa – recepção crítica brasileira, que já conta com recenseamentos de Marcelo Badaró, Demian Melo e Rejane Hoeveler, talvez falte como lacuna essa constatação de modo mais explícito. Os recursos penetrantes da análise e caracterização político-social da intelectual pública lisboeta vem de um diálogo crítico com a sociologia laboral, de Ricardo Antunes, e pós-doutoramento e co-laboração com a história social, de Van der Linden, mas não só. Ela é/faz parte de uma tradição minoritária – perseguida, ultrajada, isolada e/ou fracionada –, com uma multiplicidade de canais e correntes subterrâneos, que raras vezes é nomeada propriamente. A escriba toma partido do comunismo de militância trotskista e engajado na veia de um Trotsky historiador de guerras, crises e revoluções.

Mas, dizem o sisudo positivista + escalafobético pós-moderno, não há historiografia militante! O Santo do compromisso ético – e o valor cognoscitivo – não bateria, nunca, com o Militantismo? Não. É justo o contrário. As exigências por rigor humanamente objetivo só fazem, aqui, crescer. Qual canta o bardo carioca (e o poeta lisboeta) «navegar é preciso», tanto mais em águas revoltas. Para navegar à contracorrente é necessário albergar um estaleiro ancho e construir naus consistentes, além de maestria ao timão e pulso-firme na praticagem. Laborar partiginamente à historiografia desde tendência marginal (porém irredutível) faz preciso armar maciçamente corpora de pesquisa e manter prumo teórico que possibilite expor, interrogar e concatenar às fontes de modo legível. A investigação historiográfica não é um exercício diletante por meio do quê o artesão torce o real de acordo com intenções de ocasião, para fazê-la caber num Leito de Procusto de afirmações a priori. É a primeira que deve estar acorde com o real – e não o oposto. E, Raquel, bem sabe disso.

V.

A vaga de livre-arbítrio sobre a própria vida – que trabalhadoras e trabalhadores, mulheres e jovens portugueses, construíram durante todo o processo revolucionário, através de comissões de fábrica, assembleias de bairro e um largo etecétera – é o fio condutor vermelho, fulcral, do livro. A concepção ampliada da classe que vive do próprio trabalho – o povo que vive para trabalhar, em luta por trabalhar para viver – é eco e repercussão de Zinn e Thompson + Antunes e Linden, e isso está já fora de disputa. Mas, insistimos, adquire nova cor e textura a partir das amarrações permitidas por bravo trabalho historiográfico d’além-Mar – o que eu chamaria, aqui, de história global das ideias centrada, sobretudo, no «Marxismo-Mundo» –, do qual Raquel Varela tomou já conhecimento há mais de dez anos: n’As Esquinas Perigosas da História. O quê Valerio Arcary estabeleceu como critérios intelectuais de periodização histórica – muito homérica e alargadamente amparada pelos mais fundamentais debates marxistas-revolucionários do séc.20 – é a sua vez apreendido de ensinamento-aprendizagem de Hugo Bressano, alias Nahuel Moreno.

Membro (e fundador) do assim-chamado “trotskismo ortodoxo” – na América Latina –, com laços ao Norte das Américas – junto ao Socialist Workers Party estadunidense –, Moreno soía se autodenominar um “trotskista bárbaro”, enfatizando sempre parcos estudos e uma avassaladora experiência vivida, como batalha à morte, por levar um vocabulário marxista para o trabalhador argentino. Pois bem. Esse comunismo selvagem – e modestamente letrado – livrou embates sem conta para municiar-se da teoria marxista durante décadas a fio, junto ao desafio de proletarizar a corrente boêmia que herdou de seus ascendentes e internacionalizar uma tendência que cada vez mais cedia ao provincianismo nacional. Dito isso, vamos ao grão. São os mesmos trabalhos de investigação, da pena de Nahuel Moreno – além de uma convivência de companheirismo –, que irão influir no futuro historiador e no agrupamento ao qual ligou seu destino àquele 25 de Abril. Para expor uma só prova concreta: a distinção feita entre Fevereiros e Outubros – as revoluções políticas e as revoluções sociais – vem justamente desse velho trotskista bonearense.

A época histórica e a situação política são também critérios nahuelmorenianos, que vão das longas durações – até os tempos curtos – e, uma distinção temporal, dessa calibragem, é fundamental. Registrar descompasso de tempo, entre base e superestrutura, Estado e sociedade civil, nacional e internacional e – por que não? – a teoria e a prática, é o que adjudica a delicada sensibilidade para a escuta (e a escrita!) do que é histórico. Tão-só na confluência mesma das mais múltiplas temporalidades a história (e a teoria) da revolução se faz, daí, possível. Isto é, principalmente, “o resultado de uma violenta irrupção das massas nos domínios onde se pautam os seus próprios destinos.” Mas, na boa companhia de Leon Trotsky, seu escopo não se circunscreve a uma narrativa do acontecido. Para além da narratividade põe-se o repto de iluminar às tendências do fazimento histórico em si, ou seja, confronta-se à polêmica historiográfica sobre o sentido – e a forma – da própria revolução. E a revolução portuguesa foi a simultaneidade histórica de três processos revolucionários diversos.

VI.

À revolução antiimperialista, nas colônias, aliou-se a revolução antiditatorial, na metrópole e, desse nexo nacional-internacional, fez-se, então, uma revolução política e social anticapitalista. As insurreições anticoloniais, na África lusófona, foram o detonador do processo revolucionário. Se o “Movimento das Forças Armadas”, grupo político-militar da oficialidade intermediária, não suportou um então colossal sacrifício beligerante lusíada, as coetâneas e coextensivas revoluções anticoloniais em África estabeleceram o exemplo para a luta em Portugal, criando bases de apoio a ultramar, já desde as deserções militares até as reivindicações por independência. A exemplo do que aconteceu com a vaga revolucionária europeia dos “anos das barricadas”, de 1967 a 1975 – em Paris, Berlim, Londres –, a radicalização política foi a hora e vez para que se apresentasse a “esquerda da esquerda”, i.e., o marxismo revolucionário, insubmissa ao programa e às ideias do stalinismo e da socialdemocracia. Do que se depreende que o processo histórico não se reduz, aí, nem aos Capitães de Abril e seu putsch ou ao Partido Comunista Português e sua via nacional ao socialismo. A história do povo – “de baixo” – na revolução portuguesa ausculta o pulsar do novo.

A perspectiva conhecida como a história social e do trabalho, inspirada esta no horizonte da historiografia de baixo deve, e muito, a um determinado marxismo de fala inglesa. Esse tipo de história, mais freqüente nos anos 70, foi cada vez mais sendo substituído por histórias políticas e institucionais. O trunfo do trabalho de Raquel, inclusive, foi o que lhe proporcionou daí uma das conquistas intelectivas mais importantes desta opera, qual seja, a nova cronologia from below do Portugal revolucionário. As datações arbitrárias de atos de governo e diretivas de Estado foram, ora, postas sob nova luz histórica, vis-à-vis às iniciativas dos movimentos e às reivindicações de classe. Pois bem. O escrutínio desse metiê anglo, numa leitura atentiva e de perto, produziu uma auspiciosa polêmica, que tem lugar em uma série de atos de fala – interpostos na esfera pública –, entre dois grandes representantes da tão rica e múltipla vertente do marxismo anglossaxão. Tudo teve início com As Peculiaridades dos Ingleses e findou com Arguments within English Marxism. Mesmo que historicistas absolutos – no sentido reivindicado por Antonio Gramsci – objetem-nos qualquer consideração sobre a teoria de modo relativamente autônomo à práxis como escolástica, as afinidades eletivas com o trabalho de Varela sabem a demasiado marcantes.

VII.

Não vamos passar em revista o conjunto da polêmica realizada entre as diferentes gerações da New Left anglossaxã. Tratar-se-ia não só de um labor exaustivo, como suplantaria os motivos do presente ensaio, e o espaço que lhe cabe. Remetemos qualquer interessado em um cotejo entre os marxismos de Edward P. Thompson e Perry R. Anderson aos próprios textos dos autores como, também, à nossa tese de doutoramento – Otimismo da Vontade, Pessimismo da Razão (2014). Contentar-nos-emos em indiciar que o que se colocava nesta disputa era desde um processo de formação (fazimento) da classe operária (trabalhadora) inglesa até, ao fim e ao cabo, o próprio conceito de agência humana (em inglês distinto a sujeito social) e, conseqüentemente, revolução digna das teses Nair-Anderson, e da controvéria de Thompson, pode ser buscada em capítulo de livro coletivo no prelo que titulamos Traduttore, Traditore (Del Roio, et. al.).

Ora, salvo ledo engano, o ponto de chegada da querela travada pelos titãs da historiografia marxista é justamente aquilo que mais interessa ao ponto de partida da obra de Raquel Cardeira Varela. A história da revolução tampouco deixa de ser uma revolução na história. A narrativa envolvente (e todo-açambarcante) da pena de Raquel almeja não só transportar os leitores ao que são os acontecimentos sociais, políticos, culturais e econômicos desses 12 meses que abalaram à Península Ibérica. A vívida prosa de Varela é, a um só tempo, mais concisa e ambiciosa que isso. Afinal a história de uma revolução deveria, após relatar o quê + como ocorreu – quando + onde –, ocupar-se, cristalinamente, do “por quê as coisas ocorreram desse modo e não de outro.” Isto é: “Os eventos não poderiam ser considerados como um encadeamento de aventuras nem inseridos, um após os outros, sobre um fio qualquer de uma moral preconcebida…” E aqui o que se faz necessário é – mais do que uma história da teoria – uma teoria da história. Acreditamos, firmemente, que a luz e o calor gerados pelo atrito de fricção na polêmica político-historiográfica-teórica travada entre Edward Thompson e Perry Anderson pôde aquecer/iluminar o debate de algo, puramente fundamental, resgatado por Varela: o espectro da autodeterminação.

VIII.

A «Revolução dos Cravos» foi a última das revoluções político-sociais da Europa Ocidental. Foi original em vários sentidos. Mas no aspecto mais classicamente característico das revoluções foi, simplesmente, gigantesca. Não à-tôa uma conquista conceitual foi necessária no sentido da descrição e análise do que a autora chamou controle operário da produção (e reprodução) social. Uma análise comparativa e internacional esboça, aí, um diagrama rudimentar neste terreno ao se debruçar sobre o cotejo de revoluções similares, no Império Austro-Húngaro, Alemanha e Itália. Entre o abril de 1974 e o fevereiro de 1975, algo abalou Portugal desde fábricas, escolas, locais de moradia e lugares de trabalho. Generalizou-se um novo modo de vida (e luta) em tudo distinto. A «dualidade de poder» foi aí uma grande recusa, organizada e consciente, ao direito sagrado à propriedade. Fez nascer de cada chão de fábrica, estaleiro, escola, repartição, casa e bairro uma nova hegemonia trabalhadora pela profana necessidade à vida. A escuta atentiva ao pulsar do controle operário – já em profundidade ou extensão – possibilitou uma nova escrita histórica da revolução portuguesa. O 11 de Março muda de significado, tal momento movido e movente, e as nacionalizações são, antes que reflexo da fortaleza do Estado, refratação de seu definhamento. Trata-se dum tipo específico de fazimento da história, que a sua vez roga por nova historiografia.

A essa altura, mesmo o leitor mais atento e cuidadoso poderá se perguntar o porquê de tantas perturbações aparentemente secundárias imiscuídas à questão, essencialmente, prioritária. Não se trataria, tão-só, de apresentar texto recém-lançado ao público brasileiro, ambientá-lo de maneira eficaz (com a efetiva contextualização da revolução portuguesa) e, daí, versar sobre as inovações temáticas e/ou as conquistas formais – tal qual suas eventuais zonas cegas e/ou limites – dessa novíssima narrativa historiográfica? Arrancamos do pressuposto de que a tarefa supracitada foi realizada a contento pelo grupo nucleado no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense – talvez o mais avançado programa coletivo de pesquisas marxista em história social e do trabalho no país – e ao mesmo tempo admitimos de antemão que o esforço hercúleo de mais de 500 páginas legou – à comunidade internacional, de língua portuguesa – a mais portentosa e vibrante história social europeia de que se tem notícia após os escritos de L. Trotsky. (E fazemos votos de que seja traduzida o mais amplamente para idiomas os mais diversos.) O que podemos fazer senão pedir já muito honesta – e sinceramente – ao caro leitor um pouco mais de paciência?

IX.

O trabalho de Raquel apresenta uma rara oportunidade. Faz-nos sentir e faz-nos pensar. Uma das coisas que nos faz sentipensar sobre é justamente a história dos “grupos sociais subalternos”, a história “à margem da história”. A inspiração autoevidente dessas rubricas remete ao afamado Caderno 25, de Antonio Gramsci. Sabemos amplamente que, esse caderno produzido pelo sardo revolucionário no cárcere fascista, inspirou genuína “volta ao mundo” com os post-colonialism, os cultural studies e os subaltern studies. Menos conhecido, porém, é o périplo por detrás de Eric John Hobsbawm e seu Rebeldes... Consta que, na feitura da pesquisa do livro, foi indicado ao historiador egípcio-inglês que conhecesse os parágrafos do comunista meridional dedicados ao fenômeno do lazzarettismo itálico.[1] As trilhas e considerações, sugeridas por Gramsci, valem ouro para todo e qualquer historiador de processos sociais e crítico de ideias sintonizado com a perspectiva de encontrar a identidade real sob a aparente alteridade e a substancial diversidade sob a unidade aparente. Tem a ver com a centralidade axiológica do saber-fazer dos subalternos.

O lazzarettismo itálico foi muitas vezes lido como manifestação histórica dum atraso cultural. Um espasmo irracional e selvagem, um messianismo milenarista de tipo retrógrado – sobrevida estranha ou fenômeno primitivo –, algo tal qual delírio coletivo. Mas o que quer dizer ‘delirar’? O quê se ensina às pessoas, mulheres e homens do povo, indivíduos que fazem e são feitos pela base mesma de cultura e sociedade? Trabalhar e obedecer: não-delirar. Desde a origem latina o verbo delirar dá conta de uma negação parcial ao mundo do trabalho. Ele indica o que acontece com o arado da terra ao sair dos sulcos marcados pela charrua. Do Lat., Delirium, é um estado de confusão mental descrito a partir de Hipócrates (460-366 a.C.) qual um dos primeiros transtornos neurológicos já registrados. O termo Delirium deriva de Delirare, que significa algo como estar fora de lugar mas ganhou uso, atualmente, com sentido de estar confuso, distorcer a realidade e foranear-se de si. O direito ao delírio é parte inextrincável com algo de atenção ao texto e estória das palavras (no contexto e história das lutas de classes) àquilo que Friedrich Engels considerou como único direito histórico universal inalienável, a saber, o direito à insubordinação. Manobra de puxar o freio de emergência à charrua e se descarrilhar dos sulcos da dominação. Sair fora de si, encontrar-se com o Outro, e reconciliar-se à humanidade. A rebeldia social é o delírio coletivo.

Se vistos “desde cima”, os elementos de baixo parecem guardar sempre algo de bárbaro e/ou patológico é dever de classe, de um historiador a contrapêlo dos vencedores, ler pelo avesso suas marcas de enunciação e estar atento a qualquer chispa de tendência subversiva, a mais elementar. Os critérios teórico-metodológicos para uma historiografia de grupos sociais subalternos impõe o conhecimento de seu caráter desagregado e episódico. A inegável tendência à unificação, ainda e quando provisória, é continuadamente rompida pela iniciativa dos dominantes. Não é por outra razão que todo e qualquer sinal de iniciativa independente deve conformar valor inestimável para aquilo o que Gramsci chamaria de historiador integral. Ainda e quando Thompson escreva seu magnifico The Making of the English Working Class sem maior conhecimento da recomendação gramsciana, não é outra a paixão que transparece logo de seu prefácio. A explosão de letras com que se põe à tentativa de redimir às revoltas camponesas, à rebeldia trabalhadora ou à economia moral da multidão é mais do que notória. O passo seguinte, nada obstante, formaria progressivo inquérito de sua composição heteróclita até a conquista da autonomia, isto é, o poder de Estado. A investigação monográfica de revoluções não serve um outro propósito senão, justamente, esse.

X.

A polêmica de Thompson e Anderson é conhecida no Brasil, assim como em muitos outros lugares, desde o ponto de vista do primeiro em detrimento do segundo. Não é aqui o espaço para esclarecermos o porquê da obviação dos argumentos de Anderson a respeito. São muitos e muito variados. Um forte sintoma da prevalecência de uma historiografia social popular à la Thompson são os seus vários discípulos no campo da história e, por exemplo, a não-publicação desse livro fundamental em língua portuguesa. Mais do que assumir a perspectiva de um contra o outro o que nos propusemos fazer em nosso trabalho é esclarecer seu caráter mutuamente complementar. As zonas de penumbra de um constituem o foco luminoso de outro e viceversa. Mas como já nos adiantamos, não é nosso objetivo reconstruir a história político-editorial desse quiprocó público. Nos interessa chegar já diretamente ao ponto em que a controvérsia finalmente assume um tom mais fraternal e conseqüente e, coetaneamente, deixa de lado a imponente crítica thompsoniana a Louis Althusser para colocar no centro do fogo às concepções totais de mundo que ali se debatem. Sem qualquer embaraço e pelas razões já expostas vamos passar ao que diz Anderson nessa obra.

De 1964-1978 o debate Thompson-Anderson galvanizou uma série de questões em teoria, política e história.[2] O lançamento d’A Miséria da Teoria (1978) forneceu o que seria uma chance para enfrentar os problemas nodais para a historiografia marxista mais importante produzida durante a segunda metade do século vinte. Teórica e filosoficamente, um Argumento é uma tentativa de persuadir alguém de alguma coisa, dando razões para aceitar uma conclusão particular tal qual demonstrável autoevidente. A forma geral de um Argumento em linguagem clássica é a de premissas (mais normalmente na forma de proposições) como suporte de uma vindicação. Ademais, em língua inglesa, to argue with; arguir com alguém a respeito de algo, tem uma conotação polêmica bastante aguda; de natureza e limites bastante claros a respeito do teor de contraponto crítico. Within = dentro de. O enunciado formal, de difícil tradução seria, por aproximação, algo de árida adaptação para um ambiente literário onde socialistas e comunistas, bem como a esquerda e o marxismo brasileiros, tem grandes dificuldades em estabelecer uma cultura política e teórica comum baseada na argumentação racional de critério polêmico, já seja via a oferta de premissa destinada a uma garantia de verdade para uma conclusão, argumento dedutivo, ou o fornecimento de razão que fundamente sua provável verdade, argumento indutivo.

XI.

O trânsito da racionalidade crítica para a polêmica política passando da teoria à história e da história à teoria, para todos os efeitos, são aqui um tema peculiarmente inglês. Os Argumentos no interior do Marxismo Inglês para a polêmica que se estabeleceu no seio da New Left mais antiga do mundo, é o tópico que nos ocupa aqui e agora. Uma das predições concretadas da pena andersoniana é então inaugurada. O jovem editor fizera prognóstico do encontro da historiografia insular com a filosofia continental. O Canal da Mancha, contudo, fez com que se estrelassem um contra o Outro o histórico Thompson e um teórico Althusser. A primeira grande confrontação em grande escala de um historiador inglês com um grande sistema filosófico continental no terreno do marxismo; este seria o significado a ser celebrado da empreitada deste ensaio histórico-político-teórico. O desenvolvimento do Marxismo-Mundial muito se beneficiaria do direto confronto de tão distintas tradições, representadas por Thompson e Althusser e, desse modo, dar-se-ia então uma largada ao processo de tornar a história conscientemente teórica e a teoria historicamente informada. O singelo recado de Anderson era nada mais e nada menos uma emulação da laboração historiográfica de Thompson aliada ao “trabalho teórico” de Althusser, atentando para a crítica do empirismo e do ultrateoricismo, se é que é possível equiparar ainda que alusivamente corporas de pensamentos tão antípodas quanto podem ser o de um e o de outro.

Algo contra intuitivamente – para se dizer o mais mínimo – Anderson arbitra a polêmica de Thompson contra Althusser afirmando que, ainda e quando seja Thompson o mais brilhante de todos os historiadores da mais talentosa e erudita cepa de mestres do ofício e Althusser o menos historicista dos filósofos do marxismo ocidental foi o último a formular a natureza da história em termos mais claros. Se Thompson equalizou história a passado per se Althusser mais nitidamente argumentou que fatos históricos seriam aqueles a causar mudança em relações sociais estruturais. Debater-se-ão, daí, os tópicos: i) Historiografia, ii) Agência, iii) Marxismo, iv) Stalinismo, v) Internacionalismo, vi) Utopia e vii) Estratégia. Anderson considera que o conjunto do ensaio é dominando por quatro aspectos centrais, a saber, o caráter da Historiografia, o papel da Agência humana na História, a natureza – e o destino – do Marxismo e, enfim, o fenômeno do Stalinismo. Não vamos nos deter na crítica a respeito do conceito de codeterminação e consciência de classe ou formação histórica da classe trabalhadora e contradição entre forças / relações de produção. O que retemos aqui de relevante (e produtivo) é a centralidade teórico-metodológica atribuída a uma revalorização do famoso Prefácio – 1857 – à Contribuição da Crítica da Economia Política.

XII.

O contexto efetivo da controvérsia seria o limiar não-cicatrizado entre efervescência dos anos das barricadas e prenúncio de uma década perdida para a reação política histórico-mundial. A justeza da crítica thompsoniana ao antiempirismo althusseriano não deixaria de sublinhar a necessidade da teoria na história, isto é, a construção e sistematização do conceito que permita ao historiador ascender – do abstrato ao concreto –, através do quê Karl Marx e Friedrich Engels chamam síntese de múltiplas determinações. Controvérsia clássica das ciências sociais é então enfrentada; a dicotomia entre o determinismo estrutural e a agência subjetiva. Considerando-se a ambiguidade dos termos e conceitos de Agência e Sujeito (uma distinção importante em idioma inglês) rechaça-se o que se considera os unilateralismos de Thompson, criatividade humana, e Althusser, implacabilidade estrutural. Em seu lugar se propõe, então, algo de uma nova posição compatibilista, tratando de reconciliar o irreconciliável nos termos em que se dão: a ação volitiva, trazida por Thompson, e a causalidade universal de Althusser. A noção de Agency entra em cena.

Apesar d’Agência ser a chave-organizadora do conjunto da obra de Thompson restaria em seu núcleo nevrálgico algo de uma indistinção entre três diferentes tipos. Esses três tipos incluiriam agentes atuando sob meios para realizar fins privados, individuais – como, por exemplo, o casamento –, ou mesmo finalidades públicas, interpessoais, não-voltadas ao remodelamento de relações sociais estruturais pré-existentes, tal como conflitos armados e/ou diplomacia de Estado. Para além dessas esferas da vida – e também para além de todo tipo de fazimento da história já conhecido – Anderson mais se preocupava com aquilo que chamou projetos coletivos de auto-determinação popular ou de massas. Em um contraste agudo com a elisão promovida pelo pensamento de E. P. Thompson – para sermos justos, elisão essa mais patente nos escritos “mais teóricos” –, Anderson argumentara que a concepção de uma agência humana de transformação global poderia ser retida em premissas as mais historiograficamente rigorosas como atividade consciente guiada por fins. Para o autor, tais projetos coletivos – que intentaram fazer de seus pioneiros os autores de seu próprio modo de produção da existência social com um programa autoconsciente e de forma auto-organizada, encaminhando-se para criar ou remodelar estrutura e agência a um só tempo e em sua totalidade – formam tipo de agência historicamente novidadeira.

Tratar-se-ia de obra coletiva do moderno movimento social operário nascente como que a criar realmente essa nova concepção e prática de transformação histórico-social. Com o advento do socialismo científico os projetos coletivos de mudança social e política se irmanaram, pela primeira vez na história da humanidade, com esforços sistemáticos e ordenados por interpretar os processos do passado e presente e, assim sendo, produzir demiurgicamente um futuro pré-ideado. A Revolução dos Soviets – dirigida por bolcheviques-leninistas – teria sido o ensaio geral dessa nova forma histórica de pensar e agir sobre a interpertação e transformação do mundo, isto é, uma encarnação real e inaugural de um novo tipo de fazimento da história, baseado em um modo de ação sem precedentes conhecidos. Como bem se sabe, os resultados “realmente existentes” deste grande ciclo de revoltas histórico-sociais estiveram bem longe do que se sonhou. ‘Mas, em qualquer caso’ – disse P.R.Anderson – ‘a alteração do potencial da agência humana operada no curso do Séc. XX é irreversível.’ (p.20-21) O que se nominou, como já referimos acima, o espectro da autodeterminação.

XIII.

Esse novo tipo de agência humana, inaugurada pelas três revoluções russas do século vinte, teve «premonições antecipatórias» nas formas históricas da colonização política, heterodoxia religiosa e utopia literária dos séculos passados. Mais especificamente as revoluções francesa e americana foram as pré-figurações históricas de agência humana, neste sentido mais decisivo. A especificidade histórica do processo revolucionário russo repousa na direção coletiva imbuída de um conhecimento científico do mundo social e político que permitiu a predição do processo de modo a alterar relações de forças e à própria agência no decurso do movimento mesmo do real, enquanto as revoluções francesa e americana detonaram-se amplamente como explosões, o mais espontaneamente. (Trotsky e Lenin, à diferença de Robespierre e Washington, colocaram-se os fins de mudança político-social de modo autoconsciente e auto-organizado.) Uma nova forma de agência humana – como afirmava Marx – se faz necessária para a revolução proletária socialista. A autoemancipação dos trabalhadores voltada não para a substituição política de formas sociais de dominação mas – justamente – para a abolição das relações de poder é a nova forma histórica.

Se Althusser foi autor da odiosa noção de “processo sem sujeito” Thompson insistiu na ideia, igualmente apodictica e algo especulativa, de “sempre ressurgentes agentes”. Uma aproximação histórica mais do que axiomática buscaria traçar a curva de empreendimentos de novo tipo, que se mostra agudamente ascendente – em termos de largura de escopo e participação de massas –, nos últimos dois séculos em franco transcrescimento dos níveis de primeiridade e secundidade. (A demografia e a linguagem seguem áreas da existência inexploradas por esse tipo de agência.) O lugar da autodeterminação – para usar um termo mais preciso do que ‘agência’ – expandiu-se notoriamente nos últimos duzentos anos. O inteiro propósito do materialismo histórico tem sido precisamente o de fornecer a mulheres e homens os meios efetivos através dos quais possam eles exercer uma autêntica autodeterminação popular por primeira vez na história e decidir o destino de suas vidas. Não é outro o objetivo da revolução proletária socialista – isto é, na linguagem clássica de Karl Heinrich Marx –, a transição do reino da necessidade para o reino da liberdade.

XIV.

«Nunca tanta gente decidiu tanto» disse Varela quando do lançamento editorial no prestigiado Festival Literário de Madeira 2014, ao comentar o trabalho de quase uma década nos arquivos de Grã-Bretanha, Holanda, Estado espanhol e Portugal para dar voz aos que não tiveram voz e vez. “Essa História do Povo [HdP] não é sobre o Povo todo, nem referente à ideia de Nação, é focada nas comissões de trabalhadores, nas associações de moradores, nos comandos de greve, nos atos e manifestações, nas pessoas que se auto-organizaram para definir a estrutura social a partir de seus bairros, do movimento estudantil, da história social de mulheres que passaram por processos emancipatórios fortíssimos – em 1974/1975 –, por questões tão básicas quanto direito a licença-maternidade, direito ao divórcio, [direito a] que os filhos não fossem considerados ilegítimos. A HdP é a história das pessoas em descoberta de que podem tomar a vida em sua própria mão, que o poder pode ser exercido diretamente por elas, coletivamente, sem que lhes seja outorgado.” Ou seja, as ocupações e os conselhos, autogestão + controle operário da produção da existência, a hora-lugar do salto de consciência e organização, que aponta uma alternativa ao poder de Estado.

Se Thompson se mostrou às voltas com uma concepção advinda do marxistencialismo de Jean-Paul Sartre e Anderson enredou-se à moda teórica do marxismo analítico de Gerald Cohen, implicados em suas antinomias histórico-políticas, a história social e do trabalho de Varela não cometeu o mesmo deslize. Na verdade, a fonte de inspiração teórico-metodológica mais direta da autora passa ao largo das contradições, limites e tensões apresentados pelo debate Thompson-Anderson ao mesmo tempo que retém a seus momentos luminares. Acontece que Raquel declara sua simpatia histórico-político-teórica a outra dobradinha anglo: Howard Zinn e Chris Harman. Se Zinn foi historiador anarquista responsável pela História do Povo, Leslie Chris Harman perfaz diante de Raquel Varela um modelo teórico de trabalho intelectual em tudo atraído pela noção radicalmente marxiana: da emancipação dos trabalhadores como obra dos próprios trabalhadores. Nem Howard Zinn é Edward Thompson e nem Chris Harman – autor de A People’s History of the World – é Perry Anderson. “Muita gente me pergunta se existe um livro que faz pela história mundial o que meu livro fez pela história dos Estados Unidos. Eu sempre respondo dizendo-lhes que conheço apenas uma obra que realiza esta extremamente complexa tarefa, e que esta é Uma História do Povo do Mundo de Chris Harman.”

XV.

A presente operação de detóur – por dizer de algum modo – de «deslocamento/condensação», do duo Thompson-Anderson (ao ‘lugar-hora’ de Zinn-Harman), serviu-nos ao propósito a um só tempo de chegar ao conceito do espectro da autodeterminação, Anderson, e sugerir às noções de experiência vivida e percebida, cultivadas por Thompson. Pois se é bem verdade que não se sabe a fundo sobre o debate Thompson-Anderson no Brasil, a respeito de H. Zinn e C. Harman paira uma zona de penumbra de abosluto desconhecimento. O que importa afirmar é que um terço da população de Portugal – cerca de 3 milhões de pessoas – se engajou diretamente no centro vivo de processos decisórios a respeito de suas próprias vidas. As pessoas não votavam de quatro em quatro anos para daí decidir o que se fazer: elas decidiam, a diário, reunindo-se em fábricas, nas escolas, nos hospitais, no campo, nos bairros. Decisões que não eram impostas. Havia horas de reunião – de negociação e de discussão – votações, braços ao ar e olho-no-olho, para se chegar, coletivamente, à conclusão do que era melhor. Onde construir uma creche? Como organizar os correios? De que modo impartir à educação? Muitas vezes pensa-se à democracia liberal contra a ditadura como se não houvesse nada a mais mas, em 1974/1975, houve uma democracia de base.

A questão urgente – vital – é aquela vinda da política de baixo. Trata-se de resolver o enigma das revoluções proletárias socialistas e de suas repetidas tragédias históricas: como, de nonada, tornar-se, já, infinito? Como uma classe, física e mentalmente mutilada pelo cotidiano da servidão assalariada, poderá, , se metamorfosear em um sujeito universal da autoemancipação humana? Raquel reconta, com um indisfarçável júbilo, sobre como as pessoas mais pobres, e em farrapos humanos – “sem dentes” e/ou “de olhos fundos” –, depois de já 48 anos de ditadura salazarista, irrompiam com discurso e prática de transformação social global. Em um país assolado por 30% de analfabetismo, com muitos vivendo no que no Brasil se conhece por «favelas», com muitos milhares de mulheres fora do mercado de trabalho e do acesso à educação escolar, como terá sido possível? Não poderia ser outra, a tarefa de Sísifo, a que se lançou essa bravíssima e paciente historiadora trotskista: reunir – construtiva e diligentemente – um tal volume de dados sobre número de greves, empresas autogestionadas, comissões de trabalhadores, de “saneamentos” (afastamento de ex-colaboradores da ditadura), de associações de moradores, movimentos da renda e o salário médio. O registro alcançado pela extensão do controle operário nas fábricas, o nível de coordernação de comissões de trabalhadores e a participação direta nos eventos de Abril de 1974 são uma eloqüente resposta. A autoatividade das massas enquanto práxis revolucionária.

XVI.

Ainda há muitos temas e questões por tocar. Raquel demole a falácia da noção de “transição”, sem-transição, e de processo “cordial”, não-violento. Coloca MFA e PCP em seu devido lugar (aquém de qualquer além). Reabilita vozes e revaloriza eventos (muitas e muitos). Um tratamento o mais adequado da documentação fotográfica – à la Revoluções (“A Revolução Fotografada”), de Michael Löwy (São Paulo : Boitempo, 2009) –, que transborda de images à la sauvette (Cartier-Bresson) ou daquilo que mal-traduziu-se tal qual «instantes decisivos» da revolução, é devido. Uma especial atenção para a relação entre arte e revolução no capítulo específico traria uma série de novas problemáticas internacional-comparativas com estruturas e processos mundo-afora (e no Brasil, em particular, com preocupações semelhantes à de Marcelo Ridenti & outros). E uma abordagem mais conseqüente dos prolegômenos aqui esboçados, para o recurso heurístico de trazer à lume o debate Thompson-Anderson (suas concepções de classe, agência e revolução), não se pararia por aqui. Tudo isso para dizer que poderíamos desdobrar ad infinitum (sob o risco de fazê-lo ad nauseam) às riquezas de relações e multideterminações trazidas pela leitura do livro. Nesse momento precisamos daquilo que os italianos chamam de Fermata, uma espécie de freio de mão de emergência literário, para que leitor, escriba e autora possam restar um cadinho em paz.

Mas já não sem antes inculcar algo de “uma pulga detrás da orelha” de quem lê a essas linhas. O lampejo de insight dialético-intuitivo que dá conclusão provisória a esse escrito de intervenção é de que se avizinha a tal «velha toupeira», tantas vezes emulada por um tal Karl H. Marx. Chegam-nos ressonâncias e reverberações – sinais dos tempos – de que, mais uma vez, se fará uma revolução social e política europeia. Do que se dizia, no jargão dos mais velhos, as “condições objetivas” e “subjetivas”, há um avolumar-se de contradições baseadas em antagonismos os mais diversos e irreconciliáveis de-há algum tempo já. Os ecos e repercussões da crise econômica mundial e a forma como se dá o ensaio geral – ou prólogos – de lutas e resistências, sobretudo na porção Sul do velho continente, diz (ou murmura) algo a esse respeito. A Europa inicia a se espreguiçar. Um corpo político e social, algo embriagado de um sono profundo, das casamatas e fortalezas da Europa do Capital, deve ainda alongar membros (e testar movimentos) antes de se colocar de pé. Mas os bocejos (no lugar de gritos de guerra) já se fazem ouvir à longa distância de um Oceano. A geração à rasca, precários inflexíveis e a Avenida Liberdade não são mais do que um começo

XVII.

A ultimíssima remarcação se faz à revelia da escritora da obra ora em escrutínio a tudo atento. É que muitas e muitas vezes ela mesma se desmarcou, em diversas ocasiões e entrevistas, de se assumir como, além de historiadora de ofício, uma praticante da arte da escrita. Não nos sobra mais remédio do que afirmar o mesmo juízo literário que Perry Anderson dedicou àquele que considera, nada mais e nada menos, o que seria o melhor escritor socialista da Inglaterra — “e, possivelmente, da Europa.” Anderson assevera, sobre a escrita de Edward Palmer Thompson, “estupenda variedade de timbre e ritmo”, diz o autor, “é o quê predomina em seu melhor – “apaixonada e alegre, cáustica e delicada, conscienciosa e coloquial” – e, para todos efeitos, não teria paralelo no seio das esquerdas. O juízo literário é, enfim, o mais alto. Mas não se para por aí. Não obstante, diz, as conquistas estritamente “historiográficas”, de uma série de alentados estudos sobre os Sécs. XVIII e XIX – que abarca desde William Morris até o brilhante conjunto de ensaios de Costumes in Commom –, constituiriam algo como o produto mais original da mais avançada historiografia marxista-mundial, à qual teriam contribuído já tantos eruditos de talento. O registro da prosa de Varela tem tudo isso – alegre/apaixonada/cáustica/delicada; irredutível – e mais. Fustiga o tempo-de-agora do mundo dos trabalhadores, suas riquezas e misérias, com o debruçar de um par de olhos que sabem tudo aquilo que é capaz quando «o medo muda de lado». E potencializa a calibragem do poder de comunicação e expressão a partir destes conhecimentos.

O fim da leitura da obra de Varela faz saltar da letra do texto outro quadrante quente da canção popular brasileira: —Vamos fazer um filme? Cada um dos leitores não poderá evitar o movimento involuntário de editar uma película – na mente e no coração –, onde não haverá lugar para o herói masculino individual, típico da dramaturgia burguesa mais convencional. Um filme, com a força da narração de um Ken Loach, atento à vida vivida da classe trabalhadora em tela. Esse filme haverá de construir muitas pontes: entre continentes, entre épocas e entre gerações. Um filme que, não sendo nada parecido a uma love-story – tal qual a indústria dos cinemas nos habituou a considerar –, haverá de dizer sem papas na língua sobre o mais autêntico amor humano. Não por outra razão já causa expectativa o ensaio histórico-político que editou às vésperas da viagem Portugal-Brasil-Inglaterra, atualmente no prelo, Para onde vai Portugal? (Lisboa, 2015). A autoevidente inspiração trotskiana é, mais que intenção, um gesto. Pois mais que estratega do ‘Programa de Transição’ e teórico da ‘Revolução Permanente’, Leon Davidovich Bronstein Trotsky, é cronista do modo de vida, ensaísta de literatura e revolução e, creiam ou não, criador de trechos que simplesmente não podem não ser comparados com aquilo que nós usamos chamar de poesia política:

‘É fevereiro de 1917: tem começo a maior revolução de todos os tempos. Em uma semana a sociedade se desfaz de todos os seus dirigentes: monarca e homens da lei, policiais e sacerdotes, proprietários e gerentes, oficiais e amos. (…) Surge então – das profundezas da Rússia – um imenso grito de esperança. Nessa voz se mescla a voz de todos os desesperados, humilhados e desamparados. Em Moscou, os operários obrigam a seus donos a aprender as bases do novo direito operário. Em Odessa, os estudantes ditam a seu professor um novo programa de história das civilizações. No exército, os soldados deixam de obedecer a seus superiores. Ninguém jamais havia sonhado com uma revolução assim. Agora esse sonho circula pelas veias de todas as almas – desesperadas e desamparadas – deste Planeta. A grande fraqueza de muitos ‘revolucionários’ consiste em sua mais absoluta incapacidade de se entusiasmar, de se elevar, acima do nível rotineiro das trivialidades, de fazer surgir um vínculo vital entre ele e os que o rodeiam. Aquele que não pode incendiar; não pode incendiar sua vida, nem a dos demais’.* (Leon Trotsky, O Grande Sonho, s/d.).

[1] Davide Lazzaretti (1834-1878) foi um líder rebelde emerso das camadas subalternas da Toscana, Itália central. Profeta místico, Lazzaretti foi, também, um pregador – em oposição à Monarquia – tal como se apresentava à Igreja.

[2] Vide Dalaqua, Renata. O debate no interior da New Left britânica. História Social Nº 25, 2013 para o lapso citado.

Ficha

27th April 2015| A People’s History in the Portuguese Revolution 1974-75 | A Video by Bertrand Book Publisher, Lisbon | Videography: Tiago Abreu | Translation Subtitles: Sean Purdy and Betto della Santa.


Referências

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ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

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LINDEN, Marcel Van Der. Rumo a uma nova concepção histórica da classe trabalhadora mundial. História, São Paulo, v. 24, p. 11-40, 2005.

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RIDENTI, Marcelo S. Brasilidade Revolucionária: um século de cultura e política. São Paulo: Editora Unesp, 2010.

THOMPSON, Edward P. A história vista de baixo. In As peculiaridades dos ingleses e outros ensaios. Campinas: Unicamp, 2001, p. 185-201.

TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa. Tomos 1 e 2. São Paulo: Ed. Sundermann, 2007.

VARELA, Raquel. A história do PCP na Revolução dos Cravos. Lisboa: Bertrand, 2011.

ZINN, Howard. A People’s History of the United States. New York: Harper Collins, 1980.