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TEORIA

Clausewitz: guerra, política e revolução

Alvaro Bianchi 

(Prefácio ao livro de Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos. Clausewitz e a política. Ijuí: Unijuí, 2014.)

A chegada das tropas de Napoleão Bonaparte à Prússia abalou profundamente o modo de pensar dos alemães, mas também o modo do Ocidente se imaginar a si próprio. A Revolução Francesa de 1789 dissolveu relações feudais; trouxe o povo para a política, concedendo-lhe direitos até então negados; secularizou as propriedades da Igreja; promoveu a reforma agrária; acabou com o poder dos nobres e colocou a guilhotina em ação. O rei e a rainha, que já haviam perdido suas coroas, perderam também suas cabeças. Maxilmilien Robespierre e seus companheiros levaram a Revolução a seu limite, a defenderam e consolidaram. Mas coube a um soldado à frente de um exército levá-la a toda a Europa.

A vitória de Napoleão Bonaparte sobre o exército prussiano em Jena, no ano de 1806, foi presenciada por dois contemporâneos muito diferentes: o filósofo Georg Wilhelm Hegel (1770-1831) e o general Carl von Clausewitz (1780-1831). Na segunda-feira, 13 de outubro de 1806, quando as tropas de Napoleão atravessaram o muro de Jena, Hegel encontrava-se lecionando nessa cidade. Dias antes havia finalizado sua Phänomenologie des Geistes, e na sexta-feira anterior enviado os originais para seu amigo Friedrich Immanuel Niethammer.

Na Phänomenologie des Geistes os acontecimentos do vizinho país serão reconstruídos filosoficamente em uma ivnestigação a respeito dos impasses políticos aos quais os jacobinos teriam chegado. Seu prefácio deixava ouvir os tiros e as explosões que não deixavam os habitantes de Jena dormir. Os cascos dos cavalos franceses revolviam o solo e estragavam as colheitas, mas seus estragos eram ainda maiores na velha ordem política e social. O antigo regime tremia ante a espada napoleônica. O frêmito de Hegel devia-se ao entusiasmo. Uma sincera excitação perturbava sua existência filosófica à medida em que os franceses avançavam. Junto com estes marchava o espírito absoluto. No Vorrede da Phänomenologie Hegel registrou: “Vivemos, aliás numa época em que a universalidade do espírito está fortemente consolidada, e a singularidade, como convém, tornou-se tanto mais insignificante; em que a universalidade se aferra a toda a sua extensão e riqueza acumulada e as reivindica para si.” (HEGEL, 1992, v. 1, p. 62).

O capítulo intitulado “Die absolute Freiheit und der Schrecken” a revolução expressa politicamente a consciência que o espírito adquire da liberdade absoluta. Em 1789 o espírito teria pela primeira vez adquirido plenamente essa consciência e a liberdade se tornado seu princípio fundamental. A confusão levada a cabo pelos jacobinos entre a vontade geral e a vontade de todos os singulares, teria permitido a afirmação da vontade geral da liberdade absoluta e criado o Terror. A posição de Hegel era ambígua, mas apontava para uma moderação da revolução. Era assim, na restauração napoleônica e não na revolução jacobina que Hegel identificava a realização do espírito do mundo.

Esse espírito universal capaz de reivindicar toda a singularidade e concentrá-la em um único ponto, em um só momento, aproximou-se de Hegel portando canhões e fuzis. No dia 13, tendo derrotado os exércitos prussianos, Napoleão entrou em Jena a cavalo e inspecionou pessoalmente a cidade. Para o filósofo, o pequeno general deve ter se assemelhado ao gigante que o pintor Jacques-Louis David retratou cruzando os Alpes, montado em um imponente cavalo branco e apontando para o futuro. Mas no lugar da espada embainhada o que Hegel via era o Código napoleônico. De fato, este estatuto jurídico que Boonaparte levava junto com suas tropas expressava a restauração, mas esta não representava um retorno ao antigo regime, o novo não era cancelado mas reconfigurado, carregando ainda consigo uma força capaz de colocar por terra o antigo regime prussiano. Confrontado com a reacionária dominação de Friedrich Wilhelm III, Napoleão Bonaparte trouxe junto o ar fresco da universalização dos direitors de liberdade.

Hegel percebia claramente que nesse confronto a liberdade, ainda que moderada, representada por Napoleão levava vantagem. Pouco depois de vê-lo nas ruas de Jena, o filósofo escreveu a seu amigo o impacto dessa visão: “Vi o imperador – este espírito do mundo – cavalgar nos arredores da cidade em missão de reconhecimento. É realmente uma sensação maravilhosa ver tal indivíduo, o qual, concentrado aqui em um único ponto, montado sobre um cavalo, se estende sobre o mundo e o comanda. Quanto ao destino dos prussianos, na verdade nada de melhor poderia ser prognosticado.” (HEGEL, 1984, p. 114.)

Para os prussianos o prognóstico de Hegel foi realmente o melhor, mas durou poucos anos. Após a derrota de Napoleão na Rússia, a restauração teve lugar na Prússia. A semente da mudança havia sido, entretanto, lançada. O filósofo não deixou de pagar um preço elevado pelas suas idéias. Para muitos de seus contemporâneos ele não havia sido patriótico e sua simpatia manifesta para com os invasores o tornava uma pessoa pouco confiável. Com o passar dos anos tomou distância da revolução e em seus Lineamentos para uma Filosofia do Direito lhe dedicou ásperas palavras, muito embora interpretes afirmem que por detras delas havia ainda um Hegel esotérico que alimentava um espírito revolucionário. A monarquia constitucional defendida por Hegel estava, entretanto, muito longe da realidade política da Prússia pós-napoleônica, e não é preciso recorrer a sofisticados exercícios filológicos para rencontrar, mesmo em seus últimos escritos, simpatia pelas realizações políticas dos franceses.

G. W. Hegel não foi o único a ver de perto a vitória de Napoleão e a impressionar-se com ela. O general alemão Carl von Clausewitz participou da batalha de Jena como  aide-de-camp do príncipe August Ferdinand no batalhão dos granadeiros das tropas comandadas pelo general de infantaria Friedrich Adolf, conde von Kalckreuth. Tinha 26 anos quando os prussianos foram derrotados e foi feito prisioneiro juntamente com outros 25 mil soldados. Clausewitz refletiu sobre as razões da catastrófica derrota e dentre elas identificou as vacilações decorrentes das divisões existentes no alto-comando prussiano. O general de infantaria Frederick Louis, príncipe de Hohenlohe-Ingelfingen e o duque de Brunswick não agiram de modo ordenado e isso acarretou o enfraquecimento da ação prussiana.[1]

Os particularismos próprios do antigo regime prussiano impediram a necessária centralização da ação bélica. Em termos hegelianos seria possível afirmar que a universalidade do espírito ainda não se encontrava unificada na Alemanha, ao contrário do que se via na França. Em todos os aspectos o exército prussiano representava uma ordem política em decadência. Em 45 anos, esse exército havia travado apenas duas batalhas. Nesse ínterim, os postos de comando foram preenchidos com base no tempo de serviço dos militares, colocando o exército sob o comando de homens velhos e cansados, incapazes de enfrentar os “jovens e vigorosos líderes” franceses (CLAUSEWITZ, 1922, p. 518). As condições nas quais os prussianos lutaram foram ainda agravadas pela  incapacidade de arregimentar aliados entre os pequenos estados vizinhos e pela revolução polonesa, que desviou forças prussianas do fronte ocidental (idem, p. 518-521).

Embora tenha formado uma força militar considerável, mobilizando mais de 200 mil pessoas, a Prússia não possuía um exército popular. Sua prática bélica encontrava-se presa ao antigo regime que estava sendo destruído pelo exército francês. Na Prússia, o povo ainda “não era nada”, era um povo sem direitos e sem influência sobre os rumos das batalhas e dos conflitos. A guerra era, assim, “unicamente uma preocupação do governo, na medida em que os governos se afastaram de seus povos e agiam como se fossem eles próprios o Estado.” (CLAUSEWITZ, 1984, p. 589).

Do outro lado do campo de batalha encontrava-se uma força colossal, um povo. Em Da Guerra, Clausewitz expressou o que havia visto nos campos de batalha de Jena. Em 1793 uma força inimaginável apareceu; em 1806 essa força marchou sobre a Prússia sob o comando de Napoleão. Como isso foi possível? A expansão da base política do Estado representou para a França a expansão de seu exército:

“Repentinamente a guerra tornou-se uma questão do povo – um povo de 30 milhões de pessoas todas elas considerando-se a si próprias cidadãs. (…) O povo tornou-se participante da guerra; ao invés de governos e exércitos como até então, todo o peso da nação foi jogado na balança.” (Idem, p. 592).

Os primeiros movimentos do novo Estado revolucionário no teatro europeu encontraram uma resistência ainda forte dos demais. Mas essa resistência deveu-se mais ao peso que as antigas tradições e a velha formação ainda mantinham no exército francês. Sua transformação não foi imediata. Juntamente com as instituições do antigo regime era necessário por abaixo o antigo modo de fazer a guerra, o treinamento ultrapassado dos soldados e a retrógrada formação dos oficiais. À revolução social se sucedeu uma revolução militar. Coube a Napoleão levar esta ao seu limite. Sob o seu comando, a França “marchou estrondosamente sobre a Europa”.

A Revolução tornou a guerra um assunto de todo o povo e o mobilizou para defendê-la primeiro e para expandir suas fronteiras depois. A reação europeia soube adaptar-se. Na batalha e Jena, os prussianos mobilizaram um exército de 113.000 pessoas contra 130.000 franceses.[2] Mas o espírito que animava os comandados de Napoleão era outro. Sua presença na guerra era uma extensão de sua participação na vida política do país. Na Prússia, tal participação ainda se encontrava distante. O exército francês era formado por cidadãos, como destacou Clausewitz e não apenas por conscritos. O empenho subjetivo do governo e do povo eram iguais entre os franceses. A “vontade, o caráter e as capacidades” de ambos eram a força irresistível que os empurrava à frente. Na Prússia, entretanto, os mesmos que eram convocados par a guerra tinham sua participação na vida política nacional limitada. O povo era formado por soldados, mas não por cidadãos portadores de direitos de liberdade.

Na França a participação na vida política levou o povo à guerra; na Prússia, foi a guerra que levou os cidadãos à vida política. Os dois caminhos são muito diferentes. No primeiro, aquele que vai da política à guerra, tem-se uma participação ativa, na qual o povo não apenas é parte, mas é parte portadora de direitos. No segundo, aquele que vai da guerra à política, tem-se uma participação passiva do povo, o qual tem o dever de defender o Estado, mas não tem o direito de tomar parte das decisões que afetam diretamente a sua vida e que a colocam em risco. Não é de se estranhar, pois, que a vontade envolvida em cada um desses casos seja de magnitudes diferentes. São duas vias, a francesa e a prussiana, uma ativa a outra passiva, de expansão da base social da política. A análise dessas duas vidas nos permite compreender melhor os processos de conformação dos modernos Estados-nacionais.

O livro de Rodrigo Passos (2014) localiza muito bem este importante aspecto. Para Clausewitz a “guerra não é nada mais do que a continuação da política com outros meios” (1984, p. 69). Embora extremamente sintética esta não é uma afirmação simples e já deu lugar a muitos mal entendidos. John Keegan, por exemplo, atribuiu erroneamente a Clausewitz a idéia de que a guerra seria  apenas uma extensão da política não tendo nela lugar determinações culturais, econômicas ou de qualquer outro tipo.[3] Não é, entretanto, disso que se trata, como fica claro na análise que o general fez do papel desempenhado pelos sentimentos na guerra. Do mesmo modo, a redução da política à guerra presente em interpretes como Rapoport e mesmo no senso comum, não encontra apoio no texto de Clausewitz, para quem toda guerra é um ato político política, mas nem todo ato político se traduz em guerra.

A distinção desenvolvida por passos entre a lógica comum à guerra e a política e a distinta gramática destas é esclarecedora, na medida em que permite reconhecer a unidade e a distinção existente entre estas duas formas da ação humana. Deixando de lado os mal entendidos, é necessário voltar a afirmação do general prussiano para encontrar seu potencial. Aqui a aproximação do conceito de guerra com o de ação política forte realizada por Passos é esclarecedora. Depois que Napoleão marchou sobre a Europa como a encarnação do espírito do mundo, a guerra deixou de ser uma questão exclusiva dos governantes. O conflito bélico mobilizou massas humanas cada vez maiores, tornou-se um assunto do povo. Dada sua intensidade – e agora sua magnitude – a ação bélica passou a perfilar paixões, sentimentos e vontades coletivas. Não é pois qualquer ação política que pode ser comparada à guerra, mas apenas a ação política forte, a política absoluta. A guerra é, assim, não apenas uma continuação da política, mas uma intensificação extraordinária desta.

A aproximação é tendencial. Só a guerra absoluta coincide plenamente com a política absoluta. No limite, apenas quando o conflito bélico é também revolução a identidade entre guerra e política se verifica. A revolução nos assuntos militares protagonizada pelos franceses teve como precedente uma revolução na política. A ativa participação do povo nos assuntos do governo, dentre eles a guerra, foi o que elevou a intensidade dos conflitos políticos e militares ou criou as condições para que isso ocorresse. Após a entrada em cena deste novo ator social, pensar a guerra passou a ser, também, pensar a política. O livro de Passos é tem este promissor ponto de partida e a partir dele desenvolve de modo competente as categorias que permitiriam essa reflexão conjunta, trazendo uma contribuição importante para a ciênica política brasileira.

Referências bibliográficas

CLAUSEWITZ, Carl von. Extracts from “Notes on Prussia during the Catastrophe of 1806”. In: JENA CAMPAIGN SOURCEBOOK. Fort Leavenworth: The General Service Schools, Press, 1922, p. 515-611.

CLAUSEWITZ, Carl von. On war: edited and translated by Michael Howard and Peter Paret. Princeton:  Princeton University, 1984.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Hegel, the letters: translated by Clark Butler and Christiane Seiler; with commentary by Clark Butler. Bloomington: Indiana University Press, 1984.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espirito. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. 2v.

KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

PASSOS,  Rodrigo Duarte Fernandes dos. Clausewitz e a política. Ijuí: Unijuí, 2014.

RAPOPORT, Anatol. Introduction. In: CLAUSEWITZ, Carl von. On war. Londres: Penguin, 1968, p. 11-79.

 


[1]   “eles nunca chegaram à desobediência aberta, mas havia uma contradição perpétua suas queixas incessantes como a falta de informação e sua ignorância tornaram naturalmente mais fraco e mais indeciso o comando de um exército muito mal organizado. O Rei, no final, tornou-se desconfiado; o Duque dia-a-dia mais pusilânime. Como resultado não ocorreu uma ação concertada e a irresolução aumentou a passos largos.” (CLAUSEWITZ, 1922, p. 535-536)

[2]   São esses os números a partir dos quais Clausewitz (1922, p. 527-528) construiu seu argumento.

[3]   Sempre que aborda aspectos teóricos, o livro de Keegan é superficial. Sua exposição da teoria marxista, entretanto, se destaca por ser também simplória (Keegan, 2001, p. 34-37).