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TEORIA

Seis notas sobre a insurgência no Iraque

 Aldo Cordeiro Sauda

As notas abaixo, redigidas a 10 mil quilômetros de Bagdá, não são, nem pretendem ser, um conjunto de teses ou reflexões acabadas sobre a atual rodada de violência sectária que atinge o Iraque. São, apenas, uma tentativa de desmistificar uma série de confusões, erros e conclusões apressadas sobre a insurgência que tem ocupado as manchetes dos jornais de todo mundo.

Pretende-se aqui, antes de mais nada, contextualizar o avanço militar da organização conhecida em inglês como ISIS (Islamic State of Iraq and Syria, cuja melhor tradução do árabe para o português seria Estado Islâmico do Iraque e da Grande Damasco)[1] relacionando-a a continua agressão imperialista anglo-americana iniciada em 2003. Sem isso, qualquer tentativa de superar o sensacionalismo quase febril da imprensa mundial frente ao tema se perderá nas complexidades do Iraque contemporâneo.

1 – A recente tomada da cidade de Mosul, e de boa parte das províncias da região central do Iraque, pelas forças contrárias ao governo de Bagdá não se reduzem, simplesmente, a um avanço do ISIS. O próprio peso da intervenção militar do ISIS na revolta é desconhecido, devido à dificuldade de acesso à região por observadores independentes, sejam eles iraquianos ou estrangeiros. O que se sabe, apenas, é que o grupo é um dos principais articuladores da insurgência.

A insurreição, de natureza puramente sunita, vem sendo, segundo diversos relatórios, organizada e dirigida por uma frente ampla composta por diferentes vertentes do jihadismo e do islamismo político, lideranças tribais e ex-apoiadores do partido Baath (ligados ao ditador deposto Saddam Hussein) (SALEH, 2014). O levante se expressa, principalmente, com a forma do sectarismo religioso. Consequentemente, ela se dá apenas nas zonas de maioria sunita, não tendo chance alguma de triunfar em Bagdá (hoje, uma cidade essencialmente xiita) ou na região ao norte, o Kurdistão. Especulações sobre uma possível tomada da capital iraquiana pelo ISIS, expressam um alarmismo que pouco contribui para a compreensão da realidade concreta da região.

2 – A atual revolta deve ser interpretada como continuidade da guerra civil iraquiana de 2006-2007, travada durante a ocupação militar norte-americana, na qual os Estados Unidos tiveram participação direta ao lado do governo xiita contra as milicias sunitas. A guerra civil de então, da qual os sunitas saíram derrotados, mudou social e demograficamente a composição política do país, tendo como principal consequência a permanente escalada de tensões sectárias no Iraque e em toda região, principalmente na Síria e no Líbano.

O principal produto da guerra civil de 2006-2007 foram grandes movimentações populacionais que redesenharam o país, basicamente fortalecendo os xiitas em detrimento dos sunitas. Bagdá, até então, era dividida provavelmente meio a meio entre as duas principais confissões religiosas do Iraque. Com a guerra civil, boa parte dos sunitas teve de fugir da capital devido às políticas de limpeza étnica do governo central pro-xiita, apoiado pelos Estados Unidos (COLE, 2007). Em Bagdá, bairros mistos foram eliminados e acentuou-se a divisão sectária geográfica na cidade. Atualmente, há enormes muros no meio da capital que dividem bairros sunitas dos xiitas. A cidade é provavelmente composta hoje por uma maioria de 60% de xiitas, que estão melhores organizados e armados. A guerra civil serviu também para consolidar o controle dos partidos burgueses xiitas sobre o aparelho de Estado, alvo prioritário da insurreição.

A atual insurreição reproduz as alianças politico-militares internacionais de 2006-2007. As milícias xiitas e o exército “nacional” controlado por elas contam com o mesmo apoio norte-americano e iraniano de outrora, e os grupos armados sunitas, que em 2006-2007 atuavam em conjunto à Al Qaeda na Mesopotâmia, agem hoje ao lado do ISIS. A própria ISIS é produto de uma série de divisões e fusões que giraram em torno dos quadros dirigentes da Al Qaeda na Mesopotâmia.

3 – As regiões sunitas do Iraque, hoje co-dirigidas pelo ISIS, testemunharam em 2011, com o início da primavera árabe, e principalmente em fevereiro de 2013, movimentos de natureza altamente progressivos contra o regime político de Bagdá.

É importante notar que apesar da pouca atenção dada pela imprensa internacional em 2011, protestos de massa atingiram o Iraque. As manifestações de então talvez tenham sido as únicas que mobilizaram, com pautas progressivas, todas as comunidades religiosas do país, inclusive as que hoje se insurgem contra o Estado. Suas demandas, principalmente nas zonas sunitas, exigiam o fim das políticas de descriminação religiosa e uma solução para o amplo desemprego que atinge a comunidade (SALEH, 2011).

Já as mobilizações de fevereiro de 2013 ocorreram exatamente nas zonas atuais da insurreição, tendo como seu centro a cidade de Hawijah, importante bastião sunita do Iraque. O movimento foi surpreendentemente não sectário, tendo como eixo demandas ligadas a direitos políticos e sociais e exigindo a derrubada do primeiro ministro Nuri Al Maleki. As mobilizações, que eram em boa parte pacíficas, envolveram uma ocupação da praça principal da cidade, claramente inspirada nas manifestações da praça Tahrir no Egito. O movimento foi brutalmente reprimido pelo governo de Bagdá, com ao menos 36 mortes no dia da desocupação da praça (COCKBURN, 2013).

A derrota das manifestações de Hawijah se relaciona diretamente aos avanços da ISIS. A derrota de movimentos progressivos no Oriente Médio tem, sistematicamente, aberto o campo para o fundamentalismo jihadista.

4 – O triunfo e enraizamento social do sectarismo religioso no Iraque é de responsabilidade central dos seguidos governos norte-americanos que ocuparam o país. A instauração de um sistema político confessional, no qual os cargos no Estado passaram legalmente a ser divididos entre diferentes grupos étnicos e religiosos, eliminaram a possibilidade de surgirem alternativas políticas de caráter nacional.

O sistema confessional imposto pelas tropas americanas foi a repetição da política colonial francesa para o Líbano durante o período posterior a Primeira Guerra Mundial. No Líbano, os efeitos nefastos da política imperialista francesa permanecem até os nossos dias, condenando-o a uma interminável guerra civil. Ela é a principal barreira para o desenvolvimento de uma consciência de classe que extrapole os limites sectários que dividem o país. Assim como no Líbano, o sectarismo religioso é o principal inimigo ideológico da classe trabalhadora iraquiana.

Assim como o Líbano se mantem um país unificado, mesmo que dentro dos moldes de uma sociedade confessional, a libanização do Iraque pode não levar, necessariamente, a uma fragmentação de jure do país. Porem, o país pode muito bem se fragmentar socialmente a tal ponto que a manutenção legal do Estado-Nação pode tornar-se um tema puramente formal.

5 – Assim como a política confessional norte-americana, o processo de desbaatificação, levado a cabo por Bush II logo após a queda de Bagdá, se encontra no centro da crise política daquele país. A política de desbaatificação consiste na ideia de que todos os filiados ao antigo partido Baath teriam de perder seus cargos nas estruturas do estado iraquiano após a invasão americana. Em um país de partido único, no qual o aparato estatal se fundia ao aparelho partidário, estar no Estado significava, em alguma medida, estar no partido Baath. Consequentemente, a desbaatificação implicou na demissão em massa de centenas de milhares de funcionários públicos que não possuíam relação direta com a política aplicada por Saddam Hussein. A imensa maioria dos demitidos foram trabalhadores sunitas.

A política velada de perseguição aos sunitas, religião do ditador deposto Saddam Hussein, por parte dos americanos e seus aliados, além de desestruturar o Estado iraquiano, negando-o boa parte de seus quadros mais preparados, transformou a população sunita em cidadãos de segunda classe.

6 – A tragédia iraquiana, um processo que já dura 34 anos, que se inicia com a guerra Irã-Iraque (1980-1988), se aprofunda em 1990-1991, com a primeira invasão americana do país, se estende por meio da política de bombardeios aéreos norte-americanos e de sanções supervisionadas pela ONU entre 1991 e 2003 e atinge seu auge com a invasão e ocupação americana (2003-2011) representa, possivelmente, o caso mais grave de agressão imperialista da segunda metade do século XX e início do século XXI.

O efeito nefasto do imperialismo anglo-americano sobre o Iraque é comparável à brutalidade da guerra do imperialismo francês, japonês e norte-americano contra os povos da Indochina. A sociedade iraquiana, em termos de produção cultural, política e científica, ocupou a vanguarda do mundo árabe durante os anos 1960 e 1970. Imaginar o Iraque de então e compara-lo ao de hoje beira o sadismo.

A eliminação do Estado confessional imposto por Washington, e com ela, a eliminação das leis de desbaatificação que seguem vigentes no país, ao lado do pagamento de reparações de guerra (não ajuda financeira, mas reparações indenizatórias pelo crime internacional de agressão) por parte dos responsáveis pela invasão de 2003 são as duas principais pré-condições para uma possível reversão, em longo prazo, da situação política daquele país. Sem isto, parece seguro afirmar que a tragédia iraquiana não terá fim.

Referências bibliográficas:

COCKBURN, Patrick. Dozens die as anger spreads over Iraq army raid on protest camp. The Independent, 23 April 2013. Disponível em: http://ind.pn/VqNVGp

COLE, Juan. Ethnic Cleansing In Battle For Baghdad. Informed Comment. 6 Jan. 2007. Disponível em: http://bit.ly/1pE3kMB

SALEH, Zainab. Iraq and Its Tahrir Square, Jadaliyya 17 Fev. 2011. Dispon;ivel em: http://bit.ly/1mwVbu8

SALEH, Zainab. Quick Thoughts: Zainab Saleh on Iraq. Jadaliyya, 21 Jun. 2014. Disponível em: http://bit.ly/1pE30gA



[1] A “Grande Damasco”, em árabe, Bilad-al-Sham, é a região em que se encontram os estados da Siria, Líbano, Jordânia e Palestina