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TEORIA

Congresso Internacional sobre Drogas-2013: conferência de abertura

Henrique Carneiro

O que se esperar de um Congresso sobre Drogas?

A primeira expectativa do senso comum é que venha a tratar das drogas ilícitas, no entanto, drogas são tanto as substâncias ilícitas como as lícitas, tanto os produtos da indústria farmacêutica quanto as drogas legais como tabaco, bebidas alcoólicas, café, chá, chimarrão, guaraná, etc.

O conceito de droga aparece na história cultural contemporânea ao mesmo tempo como um fantasma do mal e um emblema da saúde1. Como fantasmagoria encarna bodes expiatórios, obsessões patologizantes, medos irracionais. Mas é também o veículo da salvação e da cura, como pílula mágica e panaceia para todos os males.

Qual é o valor específico da droga?

Qual a natureza desse fantasma que unifica no singular de um objeto abstrato, o pânico moral da “droga” e em conjuntos variados de centenas de moléculas e vegetais os remédios para males cada vez mais abrangentes da vida cotidiana?

Numa narrativa, a droga é a esfera da maior tentação e da maior queda, espécie de armadilha à espreita de curiosos para fisgá-los no pior dos vícios. Em outro registro, no entanto, a droga é o remédio, magia e milagre em pílulas, o paraíso num frasco, a cura da alma e do corpo, o consolo anestésico da dor, e assim seus usos se multiplicam na mesma medida que a nosografia oficial dos males da alma e a indústria mais florescente da época é a que fabrica estes fármacos2.

Antidepressivos ou sedativos, ansiolíticos ou estimulantes, remédios ou bebidas, fumaça, líquido ou sólido, seus empreendedores florescem. A maior empresa do Brasil é comerciante de bebidas alcoólicas. O maior exportador de tabaco do mundo também é brasileiro. Somos global-players desse mercado psicoativo, desse “capitalismo límbico” da revolução psicoativa, nas palavras de David T. Courtwright.

Consumidores de drogas: essa é a condição humana eterna que foi potencializada na era mercantil e industrial e alcança hoje a dimensão não só das panaceias como das pílulas da felicidade. Drogas para trabalhar, para dormir, para fazer sexo, para vencer a tristeza, o cansaço, o tédio, o esquecimento, a desmotivação. Cada vez mais a modelação e a modulação química da subjetividade se tornam determinantes não só na economia estrito senso das sociedades, mas nas economias psíquicas.

Todos somos drogados, mas se define pouco explicitamente a natureza comum de tomar remédios psicoativos, bebidas alcoólicas, tabaco e café, e substâncias ilícitas, separados por cargas simbólicas altamente significativas decorrentes de seus diferentes regimes de normatização. Essa produção química da subjetividade se inscreveu como o motor da modernidade, expandindo globalmente as drogas, incorporando os excitantes às exigências de desempenho fabril e militar, mas também às demandas de uma cultura burguesa da estimulação intelectual. Por isso o café se tornou uma das maiores commodities do mundo e especializou países como o Brasil na sua produção.

As drogas são um dos repertórios mais importantes de todas as culturas e, particularmente em nossa época, a farmacologia oferece possibilidades enormes de intervenção sobre a mente e o corpo, permitindo enfrentar o sofrimento humano. Teremos oportunidade de debater aqui neste congresso com grandes especialistas da Medicina e da Neurociência que vão nos esclarecer sobre estes aspectos.

A importância das drogas na cultura humana só é comparável aos alimentos e, em muitos aspectos, são até mais importantes. É a cornucópia da natureza para sanar nossos males e melhorar nossa existência. Muitas drogas são também alimentos-drogas, como o vinho, a cerveja e mesmo o açúcar.

Desde a Pré-História que são identificados vestígios do uso de drogas psicoativas. Brian Inglis, em sua “História da Medicina”, menciona ao menos o ópio, a coca, a quina, a efedra, o café e a rawolfia. Os especialistas em pinturas rupestres, como o francês Jean Clottes e o sul-africano David Lewis-Williams escreveram um livro chamado “Os Xamãs da Pré-História”, onde apontam a motivação de alteração do estado de consciência, possivelmente com uso de plantas psicoativas, para as pinturas de cerca de 35 mil anos atrás em cavernas como a de Chauvet, filmada recentemente pelo cineasta Werner Herzog.

Lévi-Strauss vai lembrar como as lendas da Árvore da Vida, como Yggdrasil da mitologia germânica, ou da Erva da Imortalidade perpetuaram-se em quase todas as partes. A expulsão de Adão e Eva do Paraíso, por provarem do fruto proibido, é parte dessa tradição do tabu botânico na mitologia judaico-cristã. Da mesma forma, a primeira planta cultivada por Noé após o dilúvio também é a que permite fabricar o vinho, uma das drogas mais importantes e sagradas da cultura ocidental.

Após a expulsão do Paraíso, causada por uma planta, Adão e Eva receberam como consolo as plantas que poderiam amenizar a dor e o sofrimento, como diz um texto médico do século XIX: “dizem que nosso primeiro pai, havendo caido no pecado, experimentou as enfermidades que sofremos os mortais, e em tal estado buscou, escolheu e preparou certas substâncias, particularmente vegetais, que logo proporcionaram o alivio e até mesmo a cura de suas doenças; e eis aqui o nascimento da Farmácia”.

Por isso, François Dagognet, o grande epistemólogo francês da farmácia, escreveu que: “Tal é, efetivamente, a força do remédio: ele não transforma a natureza exterior, mas o próprio homem, ele o retém em vida, o protege, o consola ou o metamorfoseia (…) Os remédios mergulham-nos à vontade no sono, reanimam o coração, restituem as forças e detém a morte: eles são o meio pelo qual o homem age o mais eficazmente e o mais salutarmente sobre o próprio homem, eles definem a mais calorosa e a mais simpática das inter-relações sociais”.

Se a força material e simbólica das drogas é tão grande, acrescenta Dagognet, “A história da formação da farmácia como uma ciência se enraíza em um conjunto de crenças aparentemente bizarras e a farmacologia é uma matéria que busca sempre, mas sem conseguir, conquistar sua independência. Ela visa sem sucesso uma autonomia dedutiva e formal. Ela é um racionalismo impedido, uma razão que se emancipa da magia, mas que não pode, entretanto, emergir de suas brumas”3.

A principal questão referente à farmacologia é, no entanto, a sua pouca objetividade. A não objetividade do fármaco foi estabelecida ao menos desde William Cullen, médico da Ilustração escocesa do século XVIII (ele foi médico pessoal de David Hume e amigo de Adam Smith, entre outros) que incorporou a farmacologia aos princípios do método científico ao escapar do puro empirismo em que a farmácia esteve mergulhada por séculos. Duas foram as condições de relatividade dos fármacos por ele apontadas:

1) a primeira é a dualidade ou ambivalência do efeito, o ópio, p. ex. é sedativo, mas também pode excitar; o álcool excita, mas também pode acalmar.

2) a segunda é o princípio da habituação, o fato de que o consumo continuado cria tolerância altera o efeito.

Além destas duas ambivalências da própria objetividade das drogas enquanto moléculas há ainda outros imponderáveis, que são as idiossincrasias individuais e, acima de tudo, o papel da expectativa, o chamado efeito-placebo.

Podemos assim estabelecer que toda droga é a somatória de três fatores: a materialidade da molécula, a expectativa individual e os sentidos simbólicos coletivamente atribuídos. Ou, nas palavras de Norman Zimberg, a soma da droga, do set e do setting. Ou, nos termos de Lévi-Strauss, o real, o imaginário e o simbólico.

Assim, não há propriamente falando, uma História das Drogas, mas uma História dos Usos das drogas. As drogas em si são inertes, elas só existem socialmente ao interagirem com corpos específicos.

Ao não haver essa determinação estrita do fármaco, seus usos mudam conforme os indivíduos e as culturas. O álcool já foi um remédio, depois uma droga proibida e hoje é uma droga recreacional lícita em quase todo o mundo, à exceção de certos países islâmicos. A maconha já foi um remédio, tornou-se uma droga proibida e hoje volta a ser em diversos países um importante remédio.

A cerveja era o sangue dos deuses germânicos, o Kvas que se tornou o hidromel dos homens, assim como a ambrosia e o néctar dos deuses olímpicos. O vinho, o produto que Dioniso e Baco encarnavam, foi incorporado depois à narrativa da eucaristia cristã como o próprio sangue da divindade. A emergência do mercantilismo, no entanto, a partir das grandes navegações dos séculos XV e XVI, levou essas substâncias sagradas se tornarem o que são hoje: mercadorias, commodities preciosas, que serviram para impulsionar o comércio global e estabelecer a base fiscal dos Estados Modernos. Nesse processo adquiriram a denominação hoje usada de “drogas”, palavra vinda do holandês com o sentido de produtos secos.

O processo de expansão das drogas levou as especiarias, o açúcar, o álcool fermentado e destilado, o tabaco, o chá, o café, o ópio a se tornarem algumas das principais mercadorias da era capitalista. Sua condição de bens de consumo não-durável de grande demanda conferiu-lhes a condição de produtos chaves da expansão do lucro do capital. Os princípios ativos puros das drogas, isolados ao longo do século XIX, só aumentaram a disponibilidade das drogas e as empresas que as fabricavam e vendiam se dedicaram a aumentar ao máximo o seu consumo por meio da publicidade, cuja história é intimamente associada a das drogas.

Bebidas que combinavam os dois mais conhecidos excitantes da América e da África, como a Coca-Cola, se somaram a inúmeros tônicos, elixires, revigorantes e estimulantes.

Hoje, o consumo de refrigerantes mata 180 mil pessoas por ano. No México, país onde mais se consome refrigerantes per capita no mundo (180 litrospessoaano), o diabetes passou de nona para a segunda causa de mortalidade.

A revolução industrial nascente também utilizou os excitantes para aumentar o desempenho dos operários. Mas, por outro lado, os usos excessivos do álcool trouxeram um aumento na indisciplina fabril, levando Henry Ford a se somar a grupos puritanos para proporem a proibição do álcool no EUA.

O cristianismo nunca proibira o álcool, pelo contrário, o primeiro milagre de Cristo é multiplicar o vinho, e mesmo os reformadores como Lutero e Calvino admitiam a legitimidade do beber para ficar alegre, condenando apenas a embriaguez. Lutero chegava a fabricar sua própria cerveja doméstica.

Os metodistas de John Wesley, no entanto, alteraram a doutrina cristã e o próprio sentido da palavra temperança, para defenderem a abstinência compulsória como ideal moral.

Essa campanha, associada às exigências de sobriedade durante a Primeira Guerra Mundial, vai ser vitoriosa com a aprovação da Lei Seca, entre 1920 e 1933 nos EUA. Seus resultados forma muito semelhantes ao que ocorre hoje com a Guerra às Drogas: aumento da lucratividade do setor, que passa a ser controlado por máfias criminosas com uso sistemático da violência e da corrupção policial, aumento dos problemas de saúde ligados ao uso de substâncias adulteradas e sem controle sanitário e a transformação de milhões de consumidores em párias criminalizados e encarcerados em massa.

O fim da Lei Seca foi resultado de insatisfação e mobilização social de setores urbanos descontentes com a proibição, mas também da crise de 1929, que obrigou os Estados a aumentarem sua arrecadação para combater o déficit fiscal. Assim, após a vitória de Roosevelt, terminou a proibição.

Começou, entretanto, outra guerra, dessa vez não contra o álcool, mas contra as substâncias identificadas com grupos étnicos minoritários: a maconha com os mexicanos, os opiáceos com os chineses e a cocaína com os negros.

Essa nova guerra às drogas assumiu a dimensão hoje em dia de um Guerra de Cem Anos, iniciada com o Tratado de Haia em 1912. É talvez a guerra mais duradoura, mais cara e com o maior número de prisioneiros da época contemporânea.

De uns anos para cá, evidenciaram-se os sinais de que ela está no fim. Uma mudança de paradigma começou a partir de mobilizações sociais, como as marchas da maconha, obteve alterações profundas com a legalização do uso terapêutico da maconha em 18 estados norte-americanos e no ano passado a legalização plena aprovada por plebiscitos no Colorado e em Washington, e a descriminalização dos consumidores em inúmeros países europeus e latino-americanos. A proposta do governo uruguaio de legalização com controle estatal avançou mais ainda nesse sentido, repetindo o modelo que já existiu em muitos países (como a França, a Espanha e o Japão) de monopólio estatal sobre o tabaco.

Um consenso intelectual vem se tornando cada vez mais um consenso político, ao menos um consenso ilustrado. Vários ex-estadistas, como FHC, Ernesto Zedillo e Cesar Gaviria, passaram a defender a descriminalização e, recentemente, sete ex-ministros da Justiça do Brasil encaminharam proposta ao STF para considera inconstitucional a penalização do consumo de drogas.

Existe, no entanto, uma pressão conservadora para um retrocesso na política brasileira de drogas, expressa pelo PL do deputado Osmar Terra, que aumenta a repressão e o encarceramento e as verbas públicas para entidades privadas religiosas, cujo relator, deputado Carimbão é inclusive, assim como o infeliz deputado Feliciano, patrocinadores de instituições desse tipo que se servem depois dos seus internos como claques políticas.

Do ponto de vista das consequências danosas para a saúde, o tabaco continua sendo a droga mais perniciosa e do ponto de vista dos comportamentos de risco e de violência, o álcool ainda é de longe o problema de saúde pública mais importante. Mesmo as drogas da indústria farmacêutica continuam sendo causa de usos abusivos e de alta letalidade, o Rivotril é o segundo medicamento vendido no país e a Ritalina tem o segundo mercado mundial também no Brasil com uso em cerca de 1 milhão e meio de crianças. Nos EUA, 10% dos adolescentes são medicados para TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade), num mercado que saltou de quatro bilhões de dólares em 2007 para nove bilhões em 2012.

Mais do que as drogas, vemos os comportamentos compulsivos, estimulados pela publicidade, dominarem a esfera da alimentação, de tal forma que a OMS considera os males devidos à obesidade, diabetes e problemas cardíacos como os mais preocupantes nos países abastados.

Estudo recente do Banco Mundial indica uma triplicação do número de obesos na América Latina, dos 60 milhões de 2005 para a projeção de 191 milhões em 2030.

Adiantaria proibir o álcool e o tabaco? Seria justificável a internação compulsória dos obesos para que parassem de comer tanto?

O vício não é só em drogas. A sociedade contemporânea é cada vez mais aditiva, com uma incitação publicitária permanente ao vício do consumo, ao vício em alimentos, em marcas, TV, Internet, jogos, e até mesmo religião, cuja forma mais típica de vício é o fanatismo.

A manutenção do controle de drogas sob uma política coerciva, que aprisiona em massa e permite à polícia um pretexto de intervenção cotidiana sobre a juventude pobre, só agrava os problemas.

O maior problema hoje da política de drogas são seus efeitos sociais e econômicos perversos, muito maiores do que os problemas decorrentes dos usos problemáticos.

A maconha está sendo legalizada e já é o maior agronegócio da Califórnia e do Canadá. São ao menos cinco milhões de consumidores habituais no Brasil. Se quiserem encarcerar a todos não haverá campos de concentração para tantos cidadãos de bem cujo único crime é o consumo de uma planta milenar.

Este congresso deverá ser um marco numa nova reflexão crítica da comunidade acadêmica e científica brasileira que deverá fazer frente a uma opinião pública desinformada e condicionada pelo discurso do pânico moral de uma aliança entre setores religiosos puritanos e fundamentalistas que ameaçam os fundamentos do Estado Laico e os princípios da autonomia dos cidadãos sobre seus hábitos. Se assim não for, corremos o risco de no futuro realizarmos congressos como esse como se fossemos bruxas ou feiticeiros se reunindo em meio à caça às bruxas ou hereges diante da Inquisição.

Termino citando Voltaire que dizia que “todos os excessos são condenáveis, especialmente os da abstinência”. Quando a abstinência se torna compulsória, os fundamentos da democracia são pervertidos.

Notas:

1 Em “Transformações do significado da palavra droga: das especiarias coloniais ao proibicionismo contemporâneo” (in Venâncio & Carneiro, Álcool e drogas na história do Brasil, Alameda/Editora PUCMinas, São Paulo/B. Horizonte, 2005) analisei as mudanças semânticas ocorridas com esse vocábulo do período moderno ao contemporâneo.

2 Antonio Escohotado em Historia General de las Drogas (1989) destaca essa condição moralmente ambígua da farmácia.

3 François Dagognet, La raison et les remèdes,