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Relato 04: “Pacheco e a PEC que criminaliza qualquer porte de drogas”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Pedro Costa

Na quinta-feira, 14 de setembro de 2023, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) apresentou uma proposta de emenda à Constituição (PEC) para criminalizar o porte e a posse de substância ilícita, independentemente da quantidade1. Segundo o senador, tal iniciativa vem como contraponto à possível decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal2. No momento, o julgamento está paralisado pelo pedido de vistas de André Mendonça, mas com o placar de 5×1 para o não enquadramento da posse de maconha para uso pessoal como argumento suficiente para tipificação de tal porte como crime de tráfico de droga. É preciso apenas mais um voto favorável no STF para que isso ocorra.

Antes de qualquer argumentação, é necessário salientar que a referida PEC se baseia em mitos, ao mesmo tempo que produz outros mitos e, nisso, mistifica aquilo que aborda.

O primeiro mito – que está implícito, apesar de não dito – refere-se à suposta descriminalização das drogas. No caso da decisão do STF ser favorável à descriminalização, por mais que se conteste a inconstitucionalidade do Art. 28 da Lei de Drogas (11.343/2006), não se trata da descriminalização da venda, da distribuição ou do compartilhamento de drogas, e sim do questionamento dos parâmetros pelos quais, atualmente, o Brasil se utiliza para tipificar o que se considera tráfico e o que se considera porte e posse para uso pessoal. Atualmente, cabe ao juiz determinar a partir de contextos sociais, se a pessoa em posse ou porte da droga se configura como traficante. Na prática, isso acentua a seletividade penal. Como argumentado pelo próprio Ministro Alexandre de Morais, uma pessoa branca precisa em média portar 80% mais de maconha do que uma pessoa negra, para ser enquadrada traficante. A descriminalização do porte ou posse de drogas, portanto, significa que a polícia, que o Ministério Público e os procuradores terão que se utilizar de provas mais robustas para comprovar se a pessoa em questão participa do tráfico de drogas antes de prendê-la.

Portanto, na prática, frente à possibilidade de se descriminalizar o porte para uso pessoal de maconha, a referida PEC busca acrescentar o seguinte inciso no Art. 5: “a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Ou seja, busca anular a possível decisão do STF.

O segundo mito seria avaliar o que a PEC consideraria como drogas. Álcool, cigarro, açúcar seriam considerados drogas? As substâncias lícitas citadas anteriormente, comprovadamente, também geram efeitos para quem usa. Trazemos estes exemplos concretos não só por se enquadrarem nas tradicionais conceituações sobre drogas (ou substâncias psicoativas ou psicotrópicas), mas porque são as drogas com maior atrelamento a problemas sociais, de saúde etc. Com isso, não queremos sustentar que a solução seja a proibição de tais drogas, mas refletir, criticamente, sobre o que é considerado drogas, o que está por trás disso, o que se desconsidera neste processo e os respectivos motivos para isso.

Na PEC, o trecho que define drogas com sendo substâncias “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” indica que esta definição se refere às drogas ilegais (ou ilícitas). Contudo, essa definição não demonstra os critérios objetivos para determinar quais drogas devam ser determinadas como legais. Essa falta de explicitação de critérios gera uma enormidade de problemas sociais, de saúde, econômicos etc.

Há ainda uma série de outros riscos no texto da PEC, como, por exemplo: no caso de medicamentos prescritos por médicos(as), se a pessoa se enquadra em uma situação de dependência, se ela faz uso de uma quantidade acima da prescrita/receitada; essa situação de saúde demanda cuidado – será também “tratada com prisão? E se tal reflexão vale para a dependência de substâncias legais, como os medicamentos, consequentemente também deve servir para outras igualmente legais, como álcool e o cigarro.

Além disso, como afirma o próprio texto da PEC, “não há tráfico de drogas se não há interessado em adquiri-las”. Entretanto, o traficante de drogas tem uma renda com a venda das drogas e a utiliza para adquirir armamento e ampliar seu poder dentro de seu território, através da comercialização do produto, ou seja, por meio da venda a um “usuário final”. Ou seja, está implícito no próprio texto que: 1) trata-se de um mercado, com as drogas enquanto mercadorias; e 2) se são produzidas e comercializadas como mercadorias, há trabalho envolvido. Logo, produtores e vendedores de drogas são trabalhadores, que vivem da realização (consumo) de tais substâncias. Caso ainda não tenha ficado claro, sugerimos que substituam tráfico e traficantes por venda, comércio e vendedores, comerciantes.

O que há, portanto, de distintivo desse ciclo de produção, comercialização e consumo? Que esse ciclo é ilegal. E é ilegal porque determinadas substâncias são consideradas ilícitas. Além disso, conforme já sabemos, a ilicitude de determinadas mercadorias (como as drogas ilícitas) agregam valor a elas e, consequentemente, a todo o seu mercado. Não à toa, o mercado das drogas ilícitas é um dos mais lucrativos do mundo. Assim, parafraseando o texto da PEC: não há tráfico de drogas se não há a proibição. Com efeito, a proibição das drogas aufere renda – utilizada para adquirir armamento e ampliar seu poder dentro de seu território – por meio da comercialização ilícita do produto, ou seja, por meio da venda ilegal a um usuário final.

E o qual o objetivo da PEC? Fortalecer ainda mais o caráter ilícito de tais substâncias e do seu ciclo de produção, comercialização e consumo ao considerar como crime qualquer posse e porte de drogas, independentemente da quantidade.

Longe de negarmos os efeitos nefastos do tráfico de drogas e o sofrimento real em que se encontram algumas pessoas em uso de substâncias, é importante destacar que a ameaça do encarceramento e a escalada da violência policial se constituem como o principal risco à vida, saúde e segurança das pessoas que fazem uso de drogas e de suas famílias. Afinal, é justo que uma mãe seja presa por estar com seu filho usuário de droga dentro de casa? É justo que ela, no legítimo exercício de cuidado ao seu familiar, tenha que responder porque se encontra na sua casa uma parcela de droga?

Ao contrário do que consta no texto da PEC: “Além disso, entendemos que a modificação proposta está em compasso com o tratamento multidisciplinar e interinstitucional necessário para que enfrentemos o abuso de entorpecentes e drogas afins, tema atualmente tão importante para a sociedade brasileira”, a criminalização do porte e da posse, norma em vigor do país, está em descompasso, com o tratamento multidisciplinar e interinstitucional necessário. Essa criminalização retira a questão como sendo um problema da saúde pública, concepção fundamental para as ações de cuidado, e reforça o totalitarismo da segurança pública e seu aparato criminal, punitivista e repressor no campo das drogas. Desde quando criminalização, prisão e mortes são tratamento? Ora, ao se reconhecer a relevância do tratamento para o “abuso de entorpecentes e drogas afinas”, que se reconheça por coerência lógica a sua abordagem enquanto problema de saúde pública – que vai, inclusive, para além do campo da saúde mental, álcool e outras drogas dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), sendo abarcado pelas demais políticas setoriais (assistência social, educação etc.). O cuidado em saúde, impreterivelmente, nos demanda o respeito à singularidade de cada caso. Há pessoas que vão demorar a conseguir interromper o uso de drogas consideradas ilícitas, outras jamais conseguirão, sendo o papel da saúde pública e coletiva prover os cuidados éticos necessários de Redução de Danos para dar a melhor qualidade de vida possível a essa pessoa.

Não se decreta o fim de um problema de saúde pela força da lei. A literatura, inclusive, é farta em evidências sobre como o estigma das drogas, que se torna umas das principais barreiras para a busca e para o desenvolvimento de possíveis tratamentos e cuidados. O estigma se produz e se reproduz, fundamentalmente, no e pelo proibicionismo. Afinal, no caso de consumo de drogas ilícitas, para que ocorra a busca por tratamento por aqueles e aquelas que dele necessitam, eles e elas precisam se apresentar não só como “drogados”, com toda carga pejorativa e desumanizadora que isto traz consigo, mas, também, como “criminosos/as”, pois fazem consumo de uma substância considerada ilícita.

A PEC inicia ressaltando que “saúde é direito de todos e dever do Estado”. Contudo, o que ela propõe é, concretamente, menos saúde – como dever do Estado.

Como desenvolver ações concretas e efetivas de cuidado, com políticas públicas de caráter assistencial sobre algo criminalizado, gerido, por um lado, pelo mercado ilegal, e, por outro, pelo braço repressivo do Estado? Isso mostra que a PEC não é apenas uma revisão do marco legal pelo STF em relação à descriminalização do porte de maconha para uso, mas também fortalece iniciativas de privatização de setor penitenciário em nosso país – inclusive, chancelada pelo governo Lula, nos marcos das políticas de austeridade fiscal e induto às chamadas parcerias público-privadas (PPP). Como garantir o “abastecimento” de tais instituições prisionais privadas regidas pelo princípio do lucro e da acumulação? Endurecendo a lei e prendendo mais pessoas? Ora, quanto mais pessoas criminalizadas e presas (que é o resultado automático, caso a referida PEC seja aprovada e sancionada), maior a lucratividade de tais presídios privados (ou estatais, mas geridos por instituições privadas).

Se é bem verdade que a criminalização do porte e do uso, regra atual do país, pelo menos para quem é preto, pobre e periférico, essa criminalização não reduziu o uso da droga, do lucro do tráfico ou da violência. A descriminalização das drogas pode nos apontar caminhos para redução significativa do encarceramento em massa no país, que ultrapassa a marca dos milhões de presos. O encarceramento tem se despontado como um dos principais gastos públicos, drenando recursos de pastas como a saúde, assistência social e educação. É preciso denunciar o ciclo vicioso: quanto mais se gasta com presídios, menos se gasta com outras políticas públicas que poderiam de fato reduzir a violência, mais agravamos violência que gera em mais prisões. Isso nos faz refletir, inclusive, que o mercado belicista, de segurança pública, repressivo, encarcerador e genocida é uma das ramificações ou braços do ciclo ou fluxo das drogas.

A PEC argumenta que reprimir o uso de drogas é a solução para o tráfico de drogas. Entretanto, nenhum país do mundo conseguiu pôr fim ao uso das drogas ilícitas, independentemente da gravidade das punições impostas aos usuários e comerciantes de tais substâncias. Também é importante destacar que mesmo que fosse possível eliminar as drogas da sociedade, através de leis, o crime organizado não apenas sobrevive como se multiplica com a venda desses produtos. Ou seja, a PEC não propõe à eliminação das causas reais (sociais e econômicas) que fazem do crime o destino de milhões de pessoas.

A pessoa brasileira que é presa no Brasil tem cor, gênero e classe. E como também é bastante sabido todo este mercado configura o principal mecanismo de barragem ao negro em nosso país. Como afirmamos anteriormente, a chamada guerra às drogas, que está subjacente à referida PEC, expressa nela e por ela:

constitui um importante aparato de barragem ao negro, desde sua faceta mais evidente, por meio de mecanismos de criminalização, encarceramento e extermínio, até a forma como se atrela a outros mecanismos de barragem econômicos, políticos e ideológicos (sendo conformada por eles e os conformando), corroborando a construção histórica do negro como mau cidadão – neste caso, como traficante3 (Clóvis Moura)

A PEC é, portanto, racista, eugenista e higienista, afinal, caso seja aprovada, perpetuará a criminalização, a prisão e as mortes de pessoas negras – majoritariamente periféricas, pobres e em situação de rua. O saldo já conhecemos: o país ocupa o terceiro lugar mundial em número de pessoas encarceradas, com cerca de dois terços de tal população constituída por pessoas negras, quase 30% oriundas da lei de drogas. Os números anuais de homicídios estão próximos ou são maiores aos de países em guerra civil. Não é suficiente os números abjetos de mortes oriundas de ações policiais, muitas delas atreladas ao proibicionismo e lei de drogas? As ações e operações mais violentas da polícia são justificadas pela lei de drogas e mata indiscriminadamente pessoas das periferias, em vulnerabilização.

Diferente do que a PEC diz, não se trata de uma lei antidrogas, mas sim, de uma lei “anti” determinadas pessoas. Afinal, não há nada mais absurdo e fantasioso do que se imaginar uma guerra contra objetos inanimados. Em nada nos comove assistir uma tonelada de cocaína sendo incinerada. As pessoas que o Estado prende, as pessoas que o Estado mata, as pessoas que o Estado deixa de ofertar condições dignas de existência por usarem drogas, essas sim, são as vítimas.

Se há algo que sabemos fazer no campo das drogas, e temos feito “muito bem” no Brasil até hoje, é aprisionar as pessoas. Aprisionamos porque as consideramos criminosas, mas, também, perigosas, doentes, incapazes, irracionais, pecadoras, desviadas, vagabundas etc. E o que temos conseguido com isso? O que melhorou em nossa realidade? Não está na hora de outras formas de tratar o problema? Não está na hora de algo realmente novo? Ecoando, mais uma vez, Marielle Franco: “Quantos mais terão que morrer antes que esta guerra acabe?”

1 Link para a PEC: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2023/09/14/pec-drogas.pdf
 Trata-se do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659, com repercussão geral (Tema 506).
3 Trecho de “Negro: de bom escravo a traficante”. Contribuições de Clóvis Moura à crítica da Guerra às Drogas no Brasil: https://www.scielo.br/j/se/a/qS545VxdWgG8r8nDZLnDsnn/

Pedro Costa é professor de Psicologia e Militante da Resistência-DF