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Reforma ou revolução: a estratégia dos conselhos e a força da democracia direta

Valério Arcary

“A ausência de uma transição triunfante ao socialismo em um dos países capitalistas avançados é a questão. A debilidade crítica da primeira (posição) é sua dificuldade de demonstrar a plausibilidade de umas conformações de duplo poder em democracias parlamentárias consolidadas: todos os exemplos de soviets ou conselhos até agora surgiram em autocracias decadentes (Russia, Hungría, Austria), regimes militares fracassados (Alemanha), estados fascistas em ascenso ou derrocados (Espanha, Portugal). O ponto débil da segunda, ao contrário, é sua dificuldade de proporcionar uma explicação convincente da posibilidade de um desmantelamento gradual e em paz social de um Estado capitalista construído para a guerra de classe, ou de uma transformação positiva da economia de mercado em seu oposto histórico: todos os exemplos de governos reformadores que existiram até hoje não fizeram mais que adaptar-se ao Estado e à economia capitalista transformando sua própria natureza e seus próprios objetivos no lugar de mudar os da sociedade que governavam (Inglaterra, Noruega, Suécia, Alemanha Ocidental, Áustria).” (Perry Anderson. Teoria, política e história: un debate com E. P. Thompson.)

O marxismo só falou inglês até hoje como um fenômeno essencialmente intelectual. Uma das ironias do século é que o “latim moderno” foi, até hoje, uma língua estranha ao principal movimento social dos últimos cem anos. Ao longo do século XX, tanto na Inglaterra, quanto, em uma medida incomparavelmente maior, nos EUA, apenas setores minoritários da vanguarda do proletariado se organizaram sob as bandeiras do marxismo revolucionário, e a rigor, até mesmo as formas mais moderadas das idéias igualitaristas e socialistas, só conquistaram o apoio da maioria dos trabalhadores na Grã-Bretanha, sob a liderança do Labour Party, quando este já tinha perdido o limitado impulso revolucionário de origem.

Nos EUA, nem sequer a experiência de um partido independente de classe com influência de massas foi ainda realizada. Este processo revela em que medida a influência do marxismo como fenômeno político de massas está estreitamente vinculado aos processos dos tempos da luta de classes. Em nenhuma circunstância histórica as ideias revolucionárias conquistaram uma base social expressiva fora de uma situação revolucionária.

Os EUA e a Inglaterra estão entre os poucos países importantes que não conheceram, nos últimos cem anos, qualquer tipo de situação revolucionária. Foram as fortalezas históricas do capital. Não nos deve surpreender, portanto, que os marxistas acadêmicos nos países de língua inglesa sejam um pouco atraídos pelo cepticismo.

Quando Perry Anderson escreveu as linhas da epígrafe não tinha ainda ocorrido a onda revolucionária da primeira metade dos anos 2000 que atingiu alguns países da América do Sul. Na Argentina, Equador, Bolívia sucederam-se situações revolucionárias contra governos eleitos nos marcos de regimes democrático-liberais que já tinham pelo menos quinze anos, alguns mais, de existência, com alternância eleitoral. Na Venezuela uma onda de mobilização dividiu as Forças Armadas e, pela primeira vez, no continente, derrotou um golpe militar (como já tinha acontecido no Chile, entre 1972/73. Não há mais razão, portanto, para desconsiderar a possibilidade de situações de duplo poder, e a estratégia dos conselhos como projeto revolucionário em países de regimes democráticos.

As principais revoluções do século XX, especialmente as urbanas, conheceram as mais variadas formas de poder popular, em geral, com uma origem inteiramente espontânea. Ao contrário do que pensam muitos intérpretes doutrinários do marxismo, os conselhos, ou outros órgãos de frente única das massas em luta, que expressaram a democracia direta, construídos pela mobilização, não nasceram de uma iniciativa política dos marxistas. Não foram um projeto dos revolucionários. Responderam a uma necessidade da mobilização social das massas que precisam de se organizar. Por isso, a forma dos conselhos foi recorrente. Ainda que o papel dos revolucionários não tenha sido secundário.

Uma das maiores debilidades da onda revolucionária que incendiou o Magreb e o Oriente Médio nos países de língua árabe foi a ausência de organismos de duplo poder independentes. As mobilizações no Cairo eram organizadas a partir da saída das mesquitas, nas sextas feiras, ao final dos cultos. Mas não deram origem a assembleias como formas estáveis de debate e decisão dos rumos da luta. Não existiram organismos unitários para organizar a frente única. A esquerda não reuniu força social, ou não quis dividir. Ao temer ficar em minoria, condenou-se a permanecer em minoria. Por isso, na Praça Tahrir, cada força política construiu o seu palco e o seu palanque, uma cacofonia que impediu a disputa dos diferentes programas. Resultado: caiu o governo Mubarak, mas não caiu o regime militar sustentado nas Forças Armadas que tinham mantido no poder por trinta anos. E as diferenças com a Irmandade Muçulmana que aceitou as condições para esta transição ficaram obscuras para dezenas de milhares de ativistas que queriam derrubar a ditadura. O que facilitou o controle da organização mais estruturada, que era a Irmandade Muçulmana, uma organização burguesa.

Já nas mobilizações de rua no Estado Espanhol, como nas concentrações de massa na Puerta Del Sol de Madri, por exemplo, os novos movimentos sociais construíram assembleias, mas privilegiaram a forma de decisão por consenso. As formas consensuais têm a sua importância, mas são insuficientes. E podem originar um perigoso método: decidir por cima, sem reconhecer o direito de votar por baixo, a não ser para referendar o que as lideranças já tinham acordado. Este método estabelece que o denominador comum das posições entre os líderes é o limite do movimento. Essa disputa política foi, porém, a essência da vitalidade da democracia direta. É ela que potencializa a dinâmica revolucionária que permite a existência da frente única dos assalariados, e que a diferencia da unidade na ação. Acontece que o denominador comum será sempre a posição mais moderada. Reconhece-se, portanto, o direito de veto de uma minoria mais moderada. Sem garantir o direito de uma posição minoritária mais radical entre os líderes tentar ganhar pela argumentação a opinião da maioria.

Desde a experiência pioneira da Comuna de Paris em 1871, passando pelo soviet de São Petersburgo em 1905, até os cordões industriais no Chile em 1973, ou as comissões de soldados na revolução portuguesa em 1975, o que definiu as experiências de poder popular foi a emergência das necessidades políticas colocadas pela luta de classes, ou seja, uma organização independente das classes proprietárias, para lutar pela derrubada do governo e do regime de dominação.

Quais foram as suas principais diferenças com os organismos da democracia representativa? Elas podem ser resumidas em cinco traços comuns: (a) a exclusão do direito de voto e representação para as classes proprietárias, portanto, para os seus partidos; (b) a revogabilidade dos mandatos, com a possibilidade permanente de destituição dos representantes pelos representados; (c) a inexistência de uma burocracia de funcionários profissionais e (d) a inexistência de duas câmaras, um Senado e uma Assembleia, ou uma Câmara alta e uma baixa; (e) por último e, talvez, o mais importante, os conselhos foram o espaço em que as massas assalariadas se apresentaram diante da nação como um sujeito social independente, disposto a assumir a responsabilidade do poder, tomando para si o controle dos seus destinos, posicionando-se sobre os temas políticos nacionais mais importantes, para além dos limites defensivos do sindicalismo.

Três foram as principais falsificações históricas sobre os Conselhos: (a) não é verdade que estes organismos de luta eram monolíticos, enquanto os parlamentos seriam politicamente plurais. Ao contrário, os conselhos foram os espaços da polêmica política mais acesa, com propostas moderadas em um extremo, radicais em outro, e inúmeros matizes intermediários entre eles; (b) não é verdade que a experiência histórica teria demonstrado que a democracia direta seria menos democrática que a indireta. Foram formas diferentes de expressão da luta política nas sociedades contemporâneas. Porque os parlamentos foram o espaço da luta política entre as frações burguesas, em que os representantes do mundo assalariado, quando estiveram presentes, estavam reduzidos ao papel de espectadores marginais; (c) não é verdade que os conselhos seriam formas de organização próprias de sociedades atrasadas, ainda rurais, ou em transição para a urbanização, e que a democracia liberal com representação indireta seria uma forma mais civilizada de organização da luta política.

A presença em situações revolucionárias dos organismos desta democracia direta, mesmo que embrionária, já expressava, subjetivamente, uma disposição política das massas de que não podiam confiar nas instituições do Estado. Surge, assim, uma vontade de que para decidir a sua sorte, devem contar, em primeiro lugar, consigo mesmos. O processo de descrédito das diferentes instituições é, todavia, sempre muito desigual e complexo, e tem os seus ritmos, dependendo de uma experiência política prática, para a qual não existem atalhos.

O tema dos conselhos sempre foi muito polêmico na esquerda mundial, em função da perspectiva estratégica que as suas diversas componentes alimentavam em relação à democracia e à revolução. Claro que, se as principais forças políticas que são reconhecidas pelas massas, como seus porta-vozes, e nas quais os trabalhadores depositam a sua confiança, convocam o povo a confiar nas instituições do regime de dominação, seja porque elogiam a lisura das eleições, e recomendam paciência até ao próximo sufrágio, seja porque defendem os parlamentos, os tribunais, etc., o processo de auto-organização é mais difícil. Nessas circunstâncias, a desconfiança das massas avança, como é óbvio, muito mais lentamente.

Os trabalhadores e as outras classes subalternas em luta, assim como a juventude ficam dependendo, essencialmente, de sua própria experiência para retirar lições sobre as possibilidades de conquistar as mudanças que desejam, pelo voto ou pelas lutas, ou por combinações variadas de mobilizações e eleições. É por isso, que em inúmeras situações revolucionárias, se estabelece uma dualidade de poderes “híbrida”, atípica, se quisermos. Isso porque não tem sido incomum uma quase completa perda da governabilidade sem que, simultaneamente, tenham sido construídos órgãos de frente única, que expressem, materialmente, a nova correlação de forças. Esse instrumento de luta, se nos apoiarmos na experiência histórica são os conselhos.

No entanto, quando as esperanças desmoronam, quando não lhes resta outro caminho senão a sua mobilização, quando se descobrem exasperadas pela impossibilidade de que as instituições resolvam as suas demandas, as massas avançam na construção dos organismos de duplo poder, ou atribuem novas funções às suas organizações pré-existentes.

Esses organismos nascem da urgência de tarefas que não podem ser mais adiadas, ou impulsionadas pela força das reivindicações mais sentidas, e correspondem à necessidade de resolver problemas inadiáveis (desde o abastecimento nos cordões industriais chilenos, por exemplo, até o controle da produção contra o lockout na revolução portuguesa).

Por isso, a experiência com a democracia direta surge como uma resposta das massas ao fracasso da democracia representativa e indireta, e de uma vontade de controlar elas mesmas as decisões que as afetam, assim como de um aprendizado de que é necessário controlar os seus líderes. As massas não procuram a democracia direta e os organismos de auto-organização porque gostam do exercício da política. Mas porque perderam a esperança de que, por alguma outra forma, possam mudar as suas vidas, e conquistar as suas reivindicações. Descobrem sua força coletiva e nela depositam sua confiança.

Tudo isto posto, uma riquíssima experiência histórica, parece até esdrúxulo que a polêmica teórico-política sobre a estratégia gradualista de reformas, e a estratégia dos conselhos tenha regredido tanto, que uma parte da esquerda marxista ainda leve a sério a existência de uma suposta “revolução bolivariana” na Venezuela. Como no México de Cárdenas dos anos 1930, na Argentina de Perón dos anos 1945, no Brasil de Getúlio e Jango dos anos 1950/1960, no Egito de Nasser de 1956, na Argélia da FLN de 1966, a existência de governos nacionalistas pode despertar ilusões nas massas, mas não deveriam embriagar uma análise lúcida da natureza de classe destes processos entre marxistas.

Por último, mereceria ser observado que os processos de transição ao capitalismo não prescindiram, nos países centrais, de uma revolução política, senão de uma guerra civil. Holanda (1580/1648), Grã-Bretanha (1640/1648), França (1789/1793). O que deve chamar a nossa atenção como lição histórica. A questão estratégica da maior gravidade pode ser anunciada de forma simples: se para uma transição histórica entre duas classes proprietárias, a aristocracia e os capitalistas, foi necessária uma ruptura revolucionária, por que deveríamos considerar como plausível que uma transição histórica que pretende abolir a existência de todas as classes proprietárias poderia ser completada com métodos de negociação gradual e concertada?