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“O dia que durou 21 anos” e o caráter anti-nacional do golpe de 1964

Demian Melo e Rejane Hoeveler

Após 49 anos do golpe que depôs o governo João Goulart em 1964, surge mais uma contribuição cinematográfica ao quente debate sobre a ditadura militar brasileira. O dia que durou 21 anos foi dirigido por Claudio Tavares, filho do jornalista Flávio Tavares. Também co-roteirista, Flávio é um dos 15 presos políticos que foram trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick, no sequestro organizado pela ALN e pelo MR-8 em 1969.[1]

Trata-se de uma versão modificada do documentário de mesmo título que foi exibido em 2011 pela TV Brasil em três episódios (do qual extraímos o trecho abaixo). Soma-se a outros lançamentos recentes sobre a ditadura militar no Brasil, desde o aclamado Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski (2009), que aborda as íntimas relações entre o mundo dos negócios e o mundo da tortura, ou o longa documental “Dossiê Jango”, exibido no último Festival do Rio (2012) e com estréia prevista para julho deste ano, que traz à tona uma série de evidências do assassinato de Goulart pela Operação Condor – a qual é também tema de recentíssima série que está sendo exibida pelo Discovery Channel.

O filme dos Tavares vai na linha dos thriller documentary, isto é, uma narrativa em forma de investigação. Seu ponto forte é mesmo o rico material de arquivo coletado, que inclui gravações de áudio, vídeo, fotos e diversos outros documentos, entre eles ofícios da CIA recentemente desclassificados, entrecruzado com a opinião de historiadores. Além disso, conta com ótima trilha sonora, um bom ritmo e uma equilibrada dose de arte gráfica, embora da metade pro final a edição deixe um pouco a desejar. O filme também conta com entrevistas com militares que apoiavam João Goulart, como Capitão Ivan Proença e o Brigadeiro Rui Moreira Lima, e também com “personagens” como o Ministro Jarbas Passarinho, o General Newton Cruz e o Almirante Bierrenbach, responsáveis por cenas verdadeiramente cômicas no filme.

São apresentadas pérolas históricas como um incrível programa de televisão produzido pela CBS em 1961, que claramente procurava disseminar na opinião pública norte-americana o medo de que o Brasil se tornasse uma Cuba gigante; ou o áudio do embaixador Lincoln Gordon solicitando ao presidente Kennedy verbas para enviar ao IPES.

Os bastidores da já bastante conhecida Operação Brother Sam, objeto de alguns importantes estudos acadêmicos desde os anos 1970, embasam aquilo que é o argumento central do filme, que é a intervenção americana direta no golpe de 1964 – que culmina no envio de uma nada desprezível esquadra contendo um porta-aviões, quatro destroyers, cruzadores de apoio e mais 110 toneladas de munição, armas leves e gás lacrimogênio em direção ao litoral paulista. Segundo Peter Kornbluh, do National Security Archives, a ideia de Gordon era que não fosse uma operação secreta, mas sim aberta, para ser de fato uma ameaça a Goulart e uma pressão psicológica sobre seus apoiadores, ao mesmo tempo dando confiança aos conspiradores. Robert Bentley, então assessor de Gordon, é quem proporciona mais um passagem hilária no filme, quando nega ter ouvido falar (até hoje) da Operação Brother Sam. “Operação o quê?”, foi a cínica-cômica resposta de Bentley.

Gordon teve papel fundamental na articulação do apoio americano ao golpe, mas foi o General Vernon Walters, adido militar estadunidense, que travou contato mais direto com os militares brasileiros e que por fim jogou suas fichas no general Castelo Branco (seu amigo pessoal), que passou então a ser o homem de confiança para salvaguardar os interesses norte-americanos (leia-se, interesses das empresas americanas) no Brasil.

Aliás, acrescentaríamos, foi o cientista político René Dreifuss quem primeiro demonstrou a enorme imbricação entre a conspiração capitaneada pelo IPES, a Embaixada dos EUA no Rio de Janeiro e a própria CIA (DREIFUSS, 1981). Através do IPES, ainda segundo esse autor, existiu uma relação orgânica entre o grande empresariado brasileiro e o imperialismo americano (SPOHR, 2012), o que nos afasta da falsa problemática de “agentes internos” versus “agentes externos”.

Corroborando esta ideia, James Green (professor da Brown University, um dos historiadores entrevistados no filme), menciona que a Câmara de Comércio de São Paulo havia apoiado incondicionalmente o AI-5, o que para ele demonstraria “claramente como as multinacionais no Brasil se alinharam irrestritamente às forças repressivas que estavam torturando cidadãos e violando direitos democráticos”. Também é notável como num certo senso comum da época a participação das grandes empresas americanas estava associada ao golpe, como nas pixações de “Fora Rockefeller”, mostradas no documentário.

É interessante como Dean Rusk, então secretário de Estado norte-americano, demonstrou preocupação com o aspecto legal do golpe, na tentativa de não comprometer a imagem dos EUA: “É altamente desejável que as ações das Forças Armadas sejam legitimadas pelo Congresso brasileiro ou por outros meios que criem um ar de legitimidade”. Articulado o “procedimento legal” (que era o de acusar Jango de ter abandonado a presidência e fugido do país, quando ele ainda se encontrava em sua residência no Rio Grande do Sul), os EUA foram o primeiro país a reconhecer o governo – o que deixou nítido para os olhos do mundo que aquele golpe tinha sido apoiado pelos EUA. E desconcertante é a conversa entre o presidente texano Lyndon Johnson e seu secretário de Defesa, McGeorge Bundy, sobre o teor da mensagem que deveria ser enviada ao novo governo: enquanto Bundy está preocupado com o comprometimento explícito demais a um golpe, Johnson defende contundentemente uma mensagem, em suas palavras, “bastante calorosa”.

Mesmo quando a ditadura aprofundou ainda mais seu caráter repressivo, com o AI-5, em nenhum momento colocou-se em questão o apoio incondicional dos EUA ao regime, e prevaleceu então o chamado golden silence (silêncio de ouro), até pelo menos a eleição de Carter, quando a política norte-americana em relação às ditaduras latino-americanas modifica-se ligeiramente, no sentido de direcionar aqueles regimes para formas “democráticas” mais estáveis.[2]

Um golpe antinacional e pró-imperialista

Além do seu flagrante caráter de classe,[3] o golpe de 1964 possuiu também uma forte característica antinacional, bem ao contrário do que sempre prezou a retórica golpista. Vejamos como a comparação com outros episódios marcantes da modernidade nos ajuda a pensar esse aspecto.

A tentativa de fuga da família real francesa e sua captura em junho de 1791, quando ficou provado que estes conspiravam com outras cabeças coroadas europeias para uma invasão da França e o esmagamento da Revolução, constitui um dos momentos mais emblemáticos no qual se forjou o próprio sentimento nacional francês. Ao lado da aristocracia que havia emigrado, temerosa do desenrolar da Revolução, a monarquia francesa conspirou ao lado da Prússia e da Áustria, numa coligação que posteriormente tentaria invadir o país revolucionário. A dramática vitória dos franceses na Batalha de Valmy (20 de setembro de 1792) levaria à abolição definitiva da monarquia no dia seguinte, e em 21 de janeiro de 1793 o rei seria decapitado na guilhotina. A radicalização do processo revolucionário, àquela altura, identificava a Revolução com a própria Nação, enquanto a Monarquia e seus apoiadores foram anatemizados como traidores capazes de conspirar com uma potência estrangeira contra seu próprio povo.

No século XX, um episódio ocorrido ao longo de outro processo revolucionário guardaria enorme semelhança: a invasão da Baia dos Porcos em Cuba, em abril de 1961. Planejado ainda sob o governo do general Eisenhower, e executado no início da administração Kennedy, através de uma operação orquestrada pela CIA em conjunto com exilados cubanos, a operação tornou esses últimos partícipes de uma tentativa de invasão de seu país por uma potência estrangeira. A alcunha de guzanos (“vermes” em castelhano) aos cubanos de Miami não seria outra coisa senão a evidenciação de que naquele episódio haviam figurado como verdadeiros traidores da pátria, tal como os Bourbons no final do século XVIII. Também em Cuba, no início dos anos 1960, Nação e Revolução se identificaram.

Naquela mesma quadra histórica, o golpe de 1964 no Brasil pode ser caracterizado, ao contrário, como uma ação antinacional. Essa afirmação pode embaraçar aqueles apegados ao princípio de que o dever constitucional das Forças Armadas é o de proteger a soberania territorial do país frente a ameaças estrangeiras; ainda mais quando lembramos que a ditadura sempre cultivou o discurso da “defesa da Nação” contra uma suposta “ameaça vermelha”.

Esmiuçada em vários de seus detalhes em O dia que durou 21 anos, a Operação Brother Sam parece ser um ponto de confirmação desta tese. Isso porque, em primeiro lugar, ao contrário do que alegavam aqueles que perpetraram o golpe de Estado, não existe qualquer evidência de que “agentes soviéticos”, ou mesmo “espiões cubanos” estivessem a planejar a “submissão do país à Moscou”, ou que houvesse uma articulação capaz de reproduzir no Brasil um golpe peronista com vistas à constituição de uma “República Sindicalista”. Simplesmente, mesmo depois de mais de vinte anos de perseguição implacável às esquerdas, nunca se provou nada como um suposto plano golpista de Goulart ou algo do gênero. Por outro lado, a conspiração golpista é fartamente documentada, como demonstra o grande volume de pesquisa acadêmica séria neste sentido.

É por isso que o golpe teve também um caráter imperialista, o que não significa que ele tenha sido uma mera intervenção externa (como no Irã em 1953 ou na Guatemala em 1954), e, muito menos, que não tenha sido absolutamente decisiva a participação de brasileiros (militares e “civis”)[4] na operação golpista. O próprio fato de que, ao fim, a intervenção direta de tropas estrangeiras (como estava previsto no plano autorizado pelo presidente Lyndon Johnson) em território brasileiro não tenha sido necessária para o sucesso dos golpistas, não deve obscurecer a que ponto os arquitetos do golpe de 1964 estavam dispostos a chegar para salvaguardar os interesses do capitalismo: conspirar com uma potência estrangeira contra seu próprio povo.

Em síntese, ao contrário de toda a retórica recentemente reafirmada por uma nota conjunta dos Clubes Militar, Naval e da Aeronáutica (28/03/2013),[5] de que a intervenção das Forças Armadas em 1964 serviu para proteger e manter a “integridade da Nação”, aquela foi certamente a mais antinacional e pró-imperialista operação da história recente do Brasil.

Deste modo, é sempre necessário pontuar, e a isso contribui O dia que durou 21 anos, o caráter anti-nacional do golpe; o que não pode, no entanto, secundarizar aquilo que é mais decisivo na caracterização do golpe e da ditadura, seu caráter de classe. Na verdade, uma coisa apenas confirma a outra: foi no interesse do capital mais internacionalizado (e associadamente brasileiro e estrangeiro, como demonstrou Dreifuss) que se instituiu este regime brutal, no qual foram institucionalizados mecanismos de acumulação capitalista que, aliás, permanecem intactos na atual democracia.

Referências bibliográficas:

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil (1961-1964). 8ª edição. São Paulo: Ed.UNESP, 2010.

DREIFUSS, René. 1964, a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.

FICO, Carlos. O Grande Irmão. Da operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

PARKER, Phyllis R. 1964: o papel dos Estados Unidos no Golpe de Estado de 31 de março. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

SPOHR, Martina. O empresariado e as relações Brasil-Estados Unidos no caminho do golpe de 1964. Confluenze, Bolonha, v.4, p.45-62, 2012.

TELLES, Edson; SAFATLE, Vladimir (org.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010.


[1] E ganhador de dois prêmios Jabuti de literatura.

[2] Sobre esse assunto, ver também “Comissão Trilateral: uma Internacional para o Capital”: http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=1180.

[3] Sobre isso, “O golpe de 1964 como uma ação de classe.” http://revistavjm.com.br/artigos/o-golpe-de-1964-como-uma-acao-de-classe/

[4] As aspas servem para lembrar que o termo “civil” presta-se a equívocos caso não sejam estabelecidos os nexos classistas.

[5] “Militares criticam a Comissão da Verdade e homenageiam o golpe de 64.” O Estado de São Paulo, 28 de março de 2013, versão online disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,militares-criticam-comissao-da-verdade-e-homenageiam-golpe-de-64,1014395,0.htm