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TEORIA

O socialismo que queremos 2/2

Valério Arcary

“O primeiro ato em que o Estado se manifesta efetivamente como representante de toda a sociedade – a posse dos meios de produção em nome da sociedade – é ao mesmo tempo o seu último ato independente como Estado. A intervenção da autoridade do Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua num campo após outro da vida social e cessará por si mesma. O governo sobre as pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de produção. O Estado não será “abolido”, extingue-se (…). Com efeito, a abolição das classes sociais pressupõe um grau histórico de desenvolvimento tal que (…) a apropriação dos meios de produção e dos produtos e, portanto, do poder político, (…) não só se tornou de fato supérfluo, mas constitui econômica, política e intelectualmente uma barreira levantada ante o progresso. Pois bem, já se chegou a esse ponto.” (Friedrich Engels. Do socialismo utópico ao socialismo científico)

Não são poucos aqueles que argumentam que o socialismo seria uma solução excessivamente radical, e que a desigualdade poderia ser diminuída corrigindo as diferenças da distribuição de renda, sem a destruição da propriedade privada, preservando o capitalismo.

Afinal, nos países centrais a desigualdade social não foi reduzida no pós-guerra? Sim, foi reduzida na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, enquanto aumentava no resto do mundo. Assim como, no final do século XIX, o padrão de vida médio das classes trabalhadoras elevou-se em alguns países europeus. Mas foi uma experiência histórica excepcional e transitória. A história do capitalismo refuta esta possibilidade.

Somente quando estiveram ameaçados seriamente pelo perigo revolucionário – pela Comuna de Paris em 1871, na sequência da revolução de outubro na Rússia, depopis da derrota do nazi-fascismo, por exemplo – o capital aceitou fazer concessões. Nenhuma classe proprietária, em nenhuma experiência histórica, renunciou, voluntariamente, aos seus privilégios. Foi a luta pelas revoluções que abriu o caminho das reformas.

Não obstante, o projeto histórico de reforma do capitalismo tem fracassado repetidas e incontáveis vezes. Todas as experiências de reformas foram passageiras e efêmeras. Assim que o capital conseguiu neutralizar a força social dos trabalhadores, anulou para a geração seguinte as conquistas da geração anterior.

A forma ditatorial burocrática que assumiram os regimes políticos pós-revolucionários com o estalinismo não refuta a premissa de que o socialismo será uma sociedade de transição mais democrática que a mais liberal democracia eleitoral. Confirma somente que a transição ao socialismo não é possível nas condições de pobreza material e atraso cultural das limitadas possibilidades de sociedades de economias agrárias. A transição socialista deverá ser um processo de ininterrupta dissolução do Estado, proporcional à elevação da produtividade do trabalho e satisfação das necessidades humanas mais intensas.

Tampouco a restauração capitalista prova a superioridade histórica do capitalismo. Os liberais contemporâneos têm argumentado – auxiliados, nos últimos 15 anos, por alguns ex-marxistas – que o socialismo teria fracassado. Mas a restauração capitalista não prova a superioridade do capitalismo. Demonstra que a burocracia soviética, liderada por Gorbachev e depois por Ieltsin, e seus mais de 5 milhões de funcionários, em sua ampla maioria membros do PC, tinham maior interesse estratégico no capitalismo, aspirando a se converterem em proprietários, do que no socialismo, quando perderiam seus privilégios.

O regime econômico-social que esteve no poder na União Soviética durante sete décadas não estava em transição ao socialismo. Um critério de aferição muito simples é conclusivo: a desigualdade social não estava diminuindo, ao contrário, já aumentava sob Brejnev, e disparou com a perestroika (reestruturação) de Gorbatchev, encobertada pela glasnost (abertura).

Houve luta e resistência à restauração do capitalismo, mas tamanha a confusão, foi derrotada. Que a União Soviética tenha deixado de existir não significa que a restauração capitalista tenha sido progressiva. Foi reacionária, e a prova irrefutável foi a terrível destruição que ocorreu na Rússia nos anos 1990, uma regressão social só comparável aos efeitos de uma guerra.

Existem incontáveis variáveis para comparar a situação na Rússia antes e depois da restauração: as taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), a distribuição de renda, a expectativa de vida da população, a evolução da escolaridade, a dieta da população, as variações do salário médio, etc. Elas foram todas negativas.

As causas do impasse das transições pós-capitalistas devem ser procuradas, em primeiro lugar, nas condições materiais e culturais que limitaram a União Soviética e no seu isolamento. O impasse não foi diferente no Leste europeu, na China, Coréia, Vietnam, e mesmo em Cuba. As nações que viveram revoluções sociais eram sociedades muito pobres e possuíam pouquíssimos recursos. Não é possível uma transição nacional ao socialismo na época do mercado mundial. Não surpreende que, mesmo tendo diminuído a desigualdade social nos primeiros anos pós-revolucionários, o isolamento nacional tenha favorecido a burocratização. Não deveria surpreender também que se tenham consolidado regimes ditatoriais, considerando-se o terrível cerco contra-revolucionário que estrangulou China, Coréia, Vietnã ou Cuba.

O problema teórico-histórico colocado pela restauração capitalista tampouco é inusitado. A transição do feudalismo ao capitalismo conheceu, também, inflexões reacionárias e reviravoltas políticas. Lisboa foi, no início do século XV, uma cidade comercial burguesa muito dinâmica, aliviada do peso da dinastia medieval dos Borgonhas, deslocados do poder pela dinastia de Avis, em função da aliança da maioria da grande aristocracia com Castela em 1383. Duzentos anos depois, Lisboa era uma cidade sob ocupação castelhana, sob o domínio de Madri, e a fidalguia medieval tinha recuperado seu peso social e político.

Os liberais invocaram a história identificando bolchevismo com stalinismo e denunciando as ditaduras burocráticas na União Soviética e na China como totalitarismo. Acusaram o marxismo de ser uma ideologia autoritária responsável por aberrações como os Processos de Moscou nos anos 1930 e pelo massacre em Pequim em 1989. Esquecem de mencionar, com freqüência, que as vítimas de Vichinski – o promotor encarregado de inventar as acusações ao serviço de Stalin – também eram marxistas: a maioria da velha guarda bolchevique foi condenada à morte a partir de 1936. Esquecem que os estudantes da Praça Tian An Men caíram cantando a Internacional.

Imputar ao marxismo – uma teoria e um programa – as misérias econômico-sociais que foram camufladas pela burocracia em seu nome, como na ex-União Soviética, seria o mesmo que culpar o cristianismo – uma doutrina religiosa e moral – pelos crimes da Inquisição do Vaticano; seria o mesmo que atribuir à biologia evolucionista darwinista a responsabilidade pelos crimes de eugenia do nazismo, ou incriminar a física einsteiniana pelo dolo das armas nucleares. Esse recurso polêmico é obtuso e anacrônico.

Os ensinamentos religiosos, as ideologias políticas, assim como as hipóteses científicas certamente exerceram influência no processo histórico, mas não é sequer razoável conferir-lhes um peso tão grande. As idéias são apropriadas pelos sujeitos políticos arbitrariamente, como as palavras, expressando os conflitos e lutas entre as classes. Assim como não se pode julgar uma época por aquilo que ela pensou sobre si mesma, não se devem julgar as idéias pelos atos dos homens que as reivindicaram.