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Um reformismo quase sem reformas: o governo Lula dez anos depois

Valerio Arcary


“Quem a si próprio elogia não merece crédito
.” (Sabedoria popular chinesa.)

“Não se deve elogiar o dia antes da noite.” (Sabedoria popular alemã.)

“Se você está em uma mesa de pôker e não sabe quem é o otário, é porque o otário é você.” (Sabedoria popular brasileira.)

A análise crítica do significado do governo Lula é complexa, principalmente, por três razões. Primeiro, porque o governo Lula é história recente, e a ausência de distanciamento dificulta a perspectiva. O governo Lula, apesar do mensalão em 2005, cumpriu dois mandatos, foi capaz de eleger a sua sucessora e, ao final de 2012, uma candidatura do PT apresenta-se como favorita para a sucessão de 2014. Ou seja, eleitoralmente, foi um sucesso. Mas vitórias eleitorais não devem ser confundidas com vitórias políticas. Ser vitorioso nas urnas apropriando-se do programa dos outros é uma armadilha política: o feitiço se voltará, inexoravelmente, contra o feiticeiro. O tempo ajuda a decantar o sentido de experiências históricas novas, e diminuir as pressões da luta política mais imediata.

Segundo, porque a eleição de um líder de origem operária foi uma experiência inusitada na história do Brasil. Embora não tenha sido uma surpresa, foi uma anomalia. Não foi uma surpresa porque, desde 1989, a possível vitória eleitoral do PT era mais do que um dos cenários possíveis: era provável, e tinha sido assimilada pela classe dominante. Ninguém ameaçou mudar para a Florida, como aconteceu em 1989. Ainda assim, foi uma excepcionalidade para a dominação burguesa. Um operário na presidência era algo impensável, ainda nos anos setenta do século XX. Em outra dimensão, o governo da Frente Popular dirigido pelo PT, uma coalizão com partidos burgueses liberais, foi uma anormalidade, porque foi o mais estável dos vinte e cinco anos de regime democrático-eleitoral.

Terceiro, porque o governo Lula se encerrou com elevadíssima popularidade, tanto dentro do país como na esfera internacional, o que foi excepcional na história do Brasil. Sarney, Collor e Fernando Henrique Cardoso estavam desacreditados quando deixaram o Palácio do Planalto, depois de terem gozado, alegremente, de uma popularidade igual, senão maior do que a de Lula, por uns poucos anos. O governo Lula foi muito beneficiado pela conjuntura econômica internacional favorável à exportação de commodities, pela abundância de investimentos externos, pela disponibilidade de crédito internacional a custos baixos, pela quase ausência de uma oposição de direita, e pela fragilidade da oposição de esquerda.

Existem em debate, grosso modo, duas interpretações históricas do significado do governo Lula. A primeira afirma que ele deve ser qualificado pela redução da miséria absoluta e pela diminuição da desigualdade social. Teria sido aberto um novo ciclo de crescimento sustentável da economia brasileira, uma nova inserção mais forte do país no mercado mundial e, portanto, um posicionamento mais soberano no sistema internacional de Estados. Mais importante, teria acontecido a ascensão de uma parcela do proletariado ao padrão de vida de classe média. A hipótese deste texto é que, contrariando a percepção dominante no tempo presente, o trabalho de investigação histórica irá diminuir o balanço do governo Lula, e revelar que houve muito mais continuidades do que rupturas com os governos anteriores.

Se considerarmos a evolução política da América Latina, na primeira metade da última década, parece incontroverso que os regimes democráticos viram as suas instituições questionadas pelas mobilizações de massas, seriamente, pelo menos em alguns dos mais importantes países vizinhos. Dez presidentes não completaram seus mandatos. Entre 2001 e 2005, quatro países da América do Sul estiveram em situações revolucionárias. Os governos cúmplices do ajuste recolonizador na América Latina dos anos noventa se desgastaram até à queda, ao ponto de vários ex-presidentes – Salinas do Mexico, Menem da Argentina, Cubas do Paraguai, Fujimori do Peru, e Gonzalo de Losada da Bolívia, além dos golpistas da Venezuela – terem sido presos, se encontrem foragidos, ou à espera de julgamento.

O governo Lula sucumbiu diante do imperialismo e da burguesia brasileira como produto de uma estratégia política consciente. Lula foi um interlocutor do governo norte-americano para os governos venezuelano, boliviano e equatoriano, elogiado pela sua responsabilidade por ninguém menos do que Bush. Sua influência moderadora sobre Chávez, Evo Moralez e Correa foi reconhecida por Washington, pelos governos europeus e até pelas burguesias locais. O PT beneficiou-se, em 2002, de um crescente mal estar social que vinha se acumulando desde o início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Lula não foi, contudo, um improviso histórico como a eleição de Kirchner na Argentina depois da insurreição de 2001.

O governo Lula é história recente, ou história do tempo presente, é preciso distinguir o que foi o governo Lula das percepções que ele deixou. A sua popularidade oculta mais do que revela sobre a sua verdadeira natureza. O crescimento econômico entre 2004 e 2008, interrompido em 2009, porém, recuperado com exuberância em 2010, foi inferior à média do crescimento dos países vizinhos, mas a inflação foi, também, menor. A média do crescimento do PIB durante os anos do governo Lula foi de 4% ao ano, inferior ao crescimento da Argentina ou da Venezuela no mesmo período, mas a inflação abaixo dos 5% ao ano foi, também, menor. [1]

O crescimento econômico teve duas dimensões: foi favorecido pelo aumento da demanda mundial de commodities, e pelo aumento interno do consumo. Associado à expansão do crédito, e à recuperação salarial ofereceram ao país uma sensação de alívio.  Esta foi a chave de explicação do sucesso popular do governo Lula: reduziu o desemprego a taxas menores que a metade daquelas que o país conheceu ao longo dos anos noventa; permitiu a recuperação do salário médio que atingiu, finalmente, em 2011, o valor de 1990; aumentou a mobilidade social, tanto a distribuição pessoal quanto a distribuição funcional da renda, ainda que recuperando os patamares de 1990, que eram, escandalosamente, injustos; garantiu uma elevação real do salário mínimo acima da inflação; e permitiu a ampliação dos benefícios do Bolsa-Família. A redução da desigualdade social remete ao tema da mobilidade social.

Consideram-se duas taxas de mobilidade social, a absoluta e a relativa, para avaliar a maior ou menor coesão social em um país. A taxa absoluta compara a última ocupação do pai e a primeira do filho, por exemplo. A taxa de mobilidade relativa confere em que medida os obstáculos de acesso a posições de emprego – ou oportunidades de estudo – que favorecem a ascensão social, puderam ou não ser superados pelos que estavam em posição social inferior. Compara, portanto, jovens de origem social diferentes, mas da mesma geração. O período histórico do pós-guerra (1945/1973) favoreceu a mobilidade social absoluta no Brasil. No entanto, parece ter ficado, irremediavelmente, no passado.[2]

É verdade que a distribuição pessoal da renda é menos desigual do que era no início do governo Lula. Mas este indicador compara somente a renda daqueles que vivem do trabalho. E a redução da desigualdade se explica tanto porque o salário médio do trabalho manual subiu, quanto pela queda do salário médio de escolaridade superior. A evolução da distribuição funcional da renda tampouco é animadora. Embora a participação da massa salarial sobre a riqueza nacional tenha se recuperado, ainda é menor que 50% e atingiu em 2011 o patamar de 1990.

Lula foi muito diferente de Arbenz na Guatemala entre 1951/54, de Siles Suazo e Paz Estenssoro na Bolívia depois da revolução de 1952, dos militares associados a Velasco Alvarado no Peru no início dos anos setenta, de Allende no Chile entre 1970/73. No contexto internacional da guerra fria, todos foram derrubados por golpes de Estado articulados pelas Forças Armadas com apoio do imperialismo. Tampouco é possível a comparação com o governo da Frente Sandinista na Nicarágua, em 1979, que liderou uma revolução, e teve que enfrentar uma invasão militar financiada por Washington e uma guerra devastadora durante anos. Lula teve a vantagem histórica de ter chegado a Brasília dez anos depois da dissolução da União Soviética, mas não fez sequer reformas semelhantes às que a social democracia européia inspirou no pós-guerra, depois de 1945. Não confrontou o rentismo, não enfrentou o latifúndio, não elevou os impostos sobre a riqueza, não cercou a negociata da educação privada, não diminuiu a privatização da saúde, não desafiou as Forças Armadas, não ameaçou os monopólios da mídia, e um longo etc.

Em resumo, é preciso considerar que a classe trabalhadora esperou vinte anos para ver Lula na presidência, e constatar que ele foi muito favorável para o mundo dos negócios. O governo liderado pelo PT foi um governo amigável para os capitalistas. Não surpreendeu, portanto, o generoso financiamento eleitoral que recebeu da classe dominante em 2006, 2010 e 2012. O sistema financeiro, ou seja, os rentistas, como o próprio Lula reivindicou, não tiveram razões para queixas.

Os oito anos do governo Lula se distinguem por terem sido o período de maior estabilização social do regime político que surgiu no Brasil em 1985 com o fim da ditadura militar. O paradoxo é que a forma presidencialista arcaica que a democracia liberal assumiu foi, essencialmente, consolidada durante o governo liderado pelo PT.

Notas:

[1] Os dados mais significativos tanto econômicos como sociais estão disponíveis on line no site do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: http://www.ibge.gov.br/home/. Informações sobre o censo de 2010 podem ser encontrados no site: http://www.ibge.gov.br/censo2010/primeiros_dados_divulgados/index.php. Consulta em novembro 2012

[2] O tema da redução da desigualdade social está envolvido em grande polêmica. Uma excelente referência é Reinaldo Gonçalves do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro): http://www.ie.ufrj.br/hpp/intranet/pdfs/reducao_da_desigualdade_da_renda_governo_lula_analise_comparativa_reinaldo_goncalves_20_junho.pdf. Consulta em novembro de 2012.