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BRASIL

O que fazer diante das mobilizações nas forças armadas

Desfile cívico do dia 7 de setembro das forças armadas na Av. Presidente Vargas, centro do Rio (Tomaz Silva/Agência Brasil)

Por: Juary Chagas, de Natal, RN

Em função da situação de crise, dos baixos salários e do ataque geral às condições de vida dos servidores públicos, nas últimas semanas alguns estados brasileiros (Espírito Santo e, em menor medida, Rio de Janeiro) foram tomados por movimentos reivindicatórios no seio das corporações da polícia militar.

Com um método de organização inusitado (uma vez que a legislação militar vigente impede a sindicalização e o direito de greve das tropas), manifestações de esposas e mães dos policiais bloquearam as saídas dos quartéis, criando o impasse entre governos e policiais.

Na esquerda socialista o tema não fugiu à regra de polêmica. Organizações de esquerda se posicionaram em apoio às mobilizações e uma outra parte se perfilou contra as greves policiais.

Uma posição em particular merece destaque na polêmica, não simplesmente pelo fato de que a considero equivocada, mas porque parte de uma afirmação categórica, absoluta. Trata-se do artigo assinado por Simone Ishibashi, que invoca uma posição que não dá margem a nenhuma outra no campo do marxismo: “Porque se pretender marxista e defender a greve policial é impossível.”

Cremos que esta é uma forma errada até mesmo de colocar o debate, pois trata de colocar logo de início o selo de “não-marxista” naqueles que defendem outra posição.

O tema me parece importante porque na verdade não somos e nem fomos os únicos marxistas quem pensaram de modo distinto.

O que é mesmo a polícia no Brasil?
O primeiro dos três argumentos utilizados por Simone para sustentar sua posição parte da afirmação de que é um erro afirmar que a “a polícia é parte da classe trabalhadora”.

Nesse argumento há um erro importante não porque a caracterização a respeito da polícia esteja errada, mas porque pelo menos a maior parte das organizações que decidiram apoiar as mobilizações dos policiais não pensa de nenhuma maneira diferente.

De fato, a polícia não é e nunca foi parte da classe trabalhadora. Nem preciso me alongar muito porque o próprio texto da Simone faz classificações e adjetivos sobre a polícia que não precisam ser repetidos. A polícia é um destacamento armado do estado burguês, cujo objetivo é real (envolto pela ideologia de “garantir a segurança”) é o de manter a ordem do capital. Por ser uma estrutura inerente ao estado de classe, ela é não apenas da burguesia, mas é irreformável. A tarefa estratégica dos revolucionários, na medida em que tem no horizonte a destruição deste estado para por outro (operário) em seu lugar, leva a uma condição inseparável de igualmente destruição desse destacamento, para por em seu lugar uma outra força da classe trabalhadora. Levanta-se, portanto, uma polêmica inexistente para conferir à própria posição como “a única marxista”.

Contudo, dito isto, se há acordo de que a polícia é uma instituição da burguesia e não da classe trabalhadora, porque há diferenças entre as organizações quando a discussão é apoiar ou não as greves policiais?

Aqui, na minha opinião, é onde entra o debate mais marxista sobre o tema. Porque exige dialética. A discussão não é sobre a natureza inequívoca da polícia, mas se sobre ela atravessam contradições e se estas contradições são possíveis de serem exploradas. Para isto é preciso entender o que é a polícia militar no Brasil.

A PM brasileira é uma força de repressão que guarda mais semelhanças do que diferenças com um outro instituto repressivo: as forças armadas.

As principais diferenças entre o exército e a PM no Brasil se mostram na função institucional e no recrutamento. O exército serve, em tese, para proteger as fronteiras e agir em defesa da nação em caso de guerras, etc. E o serviço militar brasileiro é obrigatório. Todos os homens precisam se alistar quando atingem 18 anos. Na polícia isto não é assim. Sua função formal (não a real) é fazer a segurança pública e não há alistamento obrigatório. Por ter um estatuto de “serviço público”, os aspirantes a policiais prestam esse concurso e ingressam na corporação.

Mas, ate mesmo essas diferenças possui atenuantes. Em primeiro lugar porque a função institucional das forças armadas é uma mera formalidade. Quando ocorre qualquer crise que a polícia sozinha não consegue resolver, imediatamente as forças armadas são colocadas na rua para cumprir o papel que seria da polícia. Nós estamos vendo isso acontecer atualmente.

Em segundo lugar, porque o recrutamento nas forças armadas é obrigatório, mas em tempos de ausência de guerras entre nações, o que existe é uma seleção dos militares que leva em consideração uma série de fatores, inclusive o interesse e a disposição em servir (como no caso dos aspirantes a policiais que prestam concursos).

As demais características são muito semelhantes. Assim como as forças armadas, a PM é uma estrutura hierárquica militarizada. Os treinamentos de ambas as instituições também são muito parecidos: forte conteúdo de alienação ideológica, corporativismo, embrutecimento a base de humilhações e patriotismo de direita.

Por fim, a composição social e a divisão de tarefas são praticamente idênticas. A maior parte dos soldados e dos policiais são filhos da classe trabalhadora. E as altas patentes do exército, assim como os postos de comando da polícia são majoritariamente de setores privilegiados com forte integração à burguesia e às instituições do Estado.

É possível dividir a polícia ganhando parte dos policiais?
Simone Ishibashi responde categoricamente que não e apóia-se numa citação de Trotsky para sustentar sua posição “O desarmamento dos ‘faraós’ [apelido para a polícia] tornou-se uma palavra de ordem universal. A polícia é o inimigo cruel, implacável, odiado e odioso. Ganhá-los está fora de questão”.i

Há, entretanto, dois problemas na posição dos companheiros. O primeiro é que se trata de uma interpretação descontextualizada do que disse Trotsky em relação à polícia na revolução russa. Antes de qualquer coisa pelo contexto. Trotsky fez essa afirmação não numa situação de crise, em que parte dos policiais cruzaram os braços por reivindicações e se negaram a cumprir sua função repressiva. Naquele momento o que havia era uma guerra entre uma força armada da classe trabalhadora e destacamentos da burguesia. Não seria em nenhum momento aconselhável, no meio de um enfrentamento físico entre essas duas forças, tentar parar a polícia por meio de discursos para que passassem para o lado dos trabalhadores. Seria uma posição no mínimo, infantil. Só que isto é bem diferente de incidir sobre um conflito já instalado no seio da polícia.

O outro problema é que além de descontextualizada, a conclusão extraída da citação é absoluta, esquemática. Dizem: “se a polícia não se unificou aos trabalhadores nem com a grandiosa revolução russa de 1917, nem falar de como defender isso hoje é uma absurdidade”.ii

Isto não está correto. Não é porque em uma situação histórica se estabeleceu um determinado tipo de comportamento, que isto se repetirá para sempre, da mesma forma. Isto é metodologicamente errado do ponto de vista marxista. É preciso tomar as lições do passado, mas não para simplesmente repeti-las e sim tirar delas as lições que são necessárias para os fenômenos presentes, que nem sempre (a maioria das vezes não são) exatamente iguais aos do passado.

Tomada como verdade, esta afirmação não se encaixaria, por exemplo, num fato concreto da realidade brasileira em que alguns policiais, frente às manifestações de servidores públicos no Rio de Janeiro, se negaram a reprimir os trabalhadores em pleno exercício da sua função repressora. É óbvio que este caso aqui citado é um fenômeno de pouca amplitude, não é correto dizer que porque isto ocorreu vivemos uma situação revolucionária e que agora sim vamos dividir a polícia. Mas não é disso que se trata. Trata-se de que se formos nos limitar aos esquemas de “tais coisas nunca acontecem”, seremos espancados pela realidade quando elas vierem a ocorrer.

E não é só devido a esse minoritário caso de deserção que podemos concluir que em algum momento a polícia pode ser dividida. Mas por uma análise concreta dessa instituição e da situação objetiva.

O fato da composição social da polícia ser majoritariamente de filhos da classe trabalhadora é uma contradição que não pode ser ignorada. O fato de que para manter a ordem o estado burguês precisa de uma quantidade de agentes (policiais) que é muito superior ao que seria possível de ter se os selecionassem do seio da sua própria classe, aliado à sua condição de assalariados, é um tema também importante.

Nesta fase do capitalismo em que os Estados necessitam cada vez mais salvar a lucratividade dos capitalistas (e mais ainda nos momentos de crise!), é impossível garantir bons salários e condições de vida aos policiais. Se isto não tivesse nenhuma contradição com a lógica acumulativa do capital, parece óbvio que os policiais jamais precisariam fazer greve. Teriam seus salários aumentados e boas condições de vida garantidos para melhor reprimir. Mas o Estado capitalista não pode fazer isto. E mais ainda quando se trata de gente que originalmente não faz parte da classe burguesa. Esta é uma contradição que se manifestará com conflitos inter-burgueses e dentro da corporação.

A discussão, portanto, é se os socialistas atuam ou não sobre essas fraturas. É preciso analisar objetivamente a situação concreta para concluir se isto é ou não possível.

A história não pode ser apagada
A discussão sobre esse tema não é nova. O debate sobre trabalho revolucionário entre tropas militares, apoio ou não às reivindicações das baixas patentes já foi tema de polêmica entre os marxistas, mas mais do que isso. Foi objeto de intervenção concreta de organizações revolucionárias.

A III Internacional, organização criada pelos bolcheviques (idealizada por Lenin) após a Revolução Russa com o objetivo de travar uma luta internacional pela causa socialista, no seu IV Congresso aprovou uma resolução que, no mínimo, contrasta com a afirmação de “anti-marxismo” de quem defende a greve dos policiais:

8. O Partido empreenderá um trabalho sistemático de penetração comunista no exército. A propaganda antimilitarista deverá diferenciar-se claramente do pacifismo burguês hipócrita e inspirar-se no princípio do armamento do proletariado e no desarmamento da burguesia. Na sua imprensa, no Parlamento, em todas as ocasiões favoráveis, os comunistas apoiarão as reivindicações dos soldados, defenderão o reconhecimento dos direitos políticos destes, etc. Em meio ao chamamento as novas classes das ameaças da guerra, a agitação antimilitarista revolucionária deve ser intensificada. Se fará sob a direção de um órgão do Partido, com participação da juventude comunista.iii

Esta resolução é parte do programa de ação aprovado em novembro de 1922 (para que fique claro que não se trata do período em que a burocracia estalinista dirigia o estado soviético) para o então Partido Comunista Francês.

E o que é mais interessante dessa resolução é que se trata justamente de um período em que na França não havia sequer nada próximo a um situação revolucionário. Ao contrário, a primeira resolução sobre a França nesse congresso dizia que “A tarefa mais urgente do Partido consiste em organizar a resistência do proletariado diante da ofensiva do capital desenvolvida na França bem como nos demais grandes Estados industriais”iv.

Ou seja, mesmo diante de uma ofensiva burguesa, mesmo com praticamente nenhum trabalho no interior das forças armadas da França, os bolcheviques estavam a favor de fazer propaganda, utilizar sua imprensa e até mesmo espaços no parlamento para apoiar as reivindicações dos soldados e defender seus direitos políticos. E faziam isso não porque vislumbravam uma possibilidade de divisão imediata nas forças armadas, mas porque a propaganda anti-militarista, de quebra da hierarquia, possibilitava a conformação de uma cultura que jogava mais crise para dentro dessas corporações.

Se a PM brasileira possui características tão semelhantes às forças armadas, porque não discutir se é ou não correto apoiar as reivindicações dos agentes, como forma de enfrentar o militarismo burguês?

Se há uma crise econômica que joga os governos burgueses contra os policiais, porque não apoiá-los como forma de aproveitar a instabilidade em prol da luta dos trabalhadores? Caso essa luta que se choca com os governos e a legislação militarista seja vitoriosa, pode servir de exemplo e ânimo para os trabalhadores lutarem também por suas reivindicações?

Frente a elementos regressivos desse movimento e a clara disputa que é feita pela ultra-direita, podemos apoiar esse movimento até quando? Se não for correto prestar nosso apoio, com que argumentos?

Este é o debate que deve ser feito. Encerrar a questão como “nunca se deve apoiar uma greve de policiais” é na verdade o quem se mostra como estranho ao marxismo.

O abstencionismo pode ser mais cômodo, mas é perigoso
Diante de situações políticas complexas pode-se adotar posições certas e erradas. E isto deve ser encarado com a máxima tranqüilidade.

Há uma máxima leninista que diz que “grave não é quando erramos, pois não há aquele que faça política e não erre. Grave é cometer um erro e insistir nele, não corrigindo-o a tempo”v.

Lenin afirmava isto porque os fenômenos da realidade, todos eles, são objetos de intervenção dos socialistas. Nossa tarefa consiste em observar um fenômeno para deve extrair uma política justa, que ajude a levar nossa estratégia de transformação social para adiante. E nessa tarefa, óbvio, podemos cometer erros e acertos.

O que não é parte da tradição marxista é o abstencionismo. Frente situações polêmicas e complexas, optar por não ter uma posição a respeito do tema. Porque ao fazer isso, abrimos espaço para que nossos inimigos tomem posição e, invariavelmente, avancem.

Penso que isto ocorre um pouco na posição de Simone Ishibashi. O texto declara que não está a favor da greve (pelos motivos já expostos no seu artigo), mas por outro lado não diz que está contra a greve dos policiais, que é uma mobilização reacionária e, portanto, precisa ser derrotada. E não faz isto porque se o fizesse estaria se alinhando com o Governo Temer e com os governos estaduais que estão criminalizando esse movimento e tentando derrotá-lo – inclusive agindo de forma reacionária ao colocar o exército nas ruas. Simone diz apenas: “nenhum apoio”.

Esta posição é um problema porque isto simplesmente é o abandono de qualquer disputa progressiva em relação a esse tema. Deixa livre tanto os governos para fazerem toda sua propaganda contra a greve, com argumentos reacionários contra a insubordinação quanto a ultra direita que apóia a greve mas não quer que ela crie qualquer vínculo ou referência com mobilizações da classe trabalhadora. E qualquer um que ganhe essa disputa vai utilizar sua vitória contra os trabalhadores.

Por isso a esquerda não pode se abster. Ainda que não tenha trabalho implantado nas tropas, ainda que isto se limite a declarações e à propaganda. Porque de algum modo há que se posicionar sobre esse tema de maneira a tentar enfraquecer nossos inimigos.

Sou da opinião de que, neste caso, o mais correto é apoiar essa insubordinação, não abandonando a tradição marxista de incidir sobre os conflitos nas forças militares.

i A História da Revolução Russa, volume 1, Leon Trotsky

ii Porque se pretender marxista e defender a greve policial é impossível, Simone Ishibashi

iii Programa de trabalho e de ação do partido comunista francês, Resoluções do IV Congresso da III Internacional

iv Idem.

v Esquerdismo, a doença infantil do comunismo, Lenin

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil