A corrupção, a anticorrupção e o espetáculo

Brasília – Plenário da Câmara segue discutindo outras matérias enquanto aguarda definição sobre a votação das 10 medidas contra a corrupção (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

EDITORIAL 03 DE DEZEMBRO I A Câmara dos Deputados aprovou anteontem a emenda do Projeto de Lei 4850, o pacote originalmente chamado de 10 medidas contra a corrupção.

Substancialmente modificado, o PL que agora se encaminha ao Senado Federal é bastante diferente daquele promovido pelo Ministério Público e a sua coordenação na Operação Lava Jato há mais de um ano. A proposta simboliza a forte crise entre as instituições burguesas, com destaque, entre o Judiciário e o Legislativo.

As forças envolvidas na disputa corporativista de salvar a própria pele demonstram que a instabilidade política não é absolutamente controlável por qualquer uma delas. Além disso, desvenda com mais profundidade o fato de que a corrupção e seu combate se tornam parte de um mesmo espetáculo que alimenta as especulações sobre quais cenários políticos virão nas próximas semanas, incluindo aí o próprio enfraquecimento de Temer na presidência.

Marcelo Odebrecht e outros executivos da empresa, no acordo feito na Operação, poderão imprimir, em breve, uma nova dinâmica no roteiro das disputas.  Enquanto isso, Moro e o Ministério Público ameaçam sair de cena se perderem o protagonismo do papel em que atuaram até agora.

O que foi aprovado na Câmara dos Deputados?
Crime de caixa 2: a não contabilização formal de recursos de campanha eleitoral se torna conduta passível de prisão de dois a cinco anos, além de multa. Essa pena poderá aumentar um terço caso a origem dos recursos não seja permitida pela legislação eleitoral. Atualmente, o caixa 2 é uma infração das normas que regulamentam as eleições, mas não tem punição específica de prisão.

O crime de colarinho branco ganhou contornos novos a partir de 2012, durante o julgamento do mensalão. A polêmica na Câmara, nesses últimos dias, era para anistiar o caixa 2 nos casos das eleições passadas. O frisson se deveu também ao anúncio de que executivos da Odebrecht fecharam acordo de delação premiada com o Ministério Público.

Corrupção como crime hediondo: embora as hipóteses de corrupção já sejam puníveis pelo direito penal brasileiro, os condenados não terão mais direito à fiança e permanecerão em regime fechado de prisão. A corrupção terá pena maior (de 7 a 25 anos), dependendo do valor desviado.

Compra de votos como crime: pagar por voto também já era crime punível com multa, mas agora será penalizado com prisão de 01 a 04 anos.

Limitação do direito ao recurso: ao contrário do que o discurso oficial dos patrocinadores do projeto, a limitação ao direito de recurso no processo judicial será prerrogativa dos juízes, caso considerem, de ofício, que os recursos são feitos para atrasar o andamento do processo.

Abuso de autoridade por juízes e promotores: as autoridades que cometerem abuso de poder, obstruírem o direito à defesa dos acusados ou manipularem a verdade poderão ser processados criminalmente. Essa medida centrou o discurso de Sergio Moro e membros do Ministério Público Federal durante a semana de que deixariam a coordenação da Operação Lava Jato, utilizando a prerrogativa de investigação como barganha para garantias corporativistas, de modo a não equiparar o tratamento criminal geral ao seu próprio.

O que foi retirado do projeto da semana passada?
Confisco de bens: a apropriação pela Justiça de bens dos acusados, sem prova sobre a acusação, está descartada.

Teste de integridade: a proposta de testar servidores públicos, investigados ou não, simulando situações de oferta de vantagens ilícitas, foi excluída da proposta votada.

Responsabilização dos partidos: foi retirada a culpabilidade dos partidos políticos e de dirigentes partidários por corrupção cometida por membros da sigla.

Acordos de leniência: a possibilidade de empresas trocarem a colaboração em investigações do Ministério Público pelo abrandamento de pena por envolvimento em corrupção também foi afastada.

As rédeas do espetáculo precisam ser rompidas
É legítimo o sentimento geral contra a corrupção, contra o roubo sistêmico do dinheiro público, o dinheiro retirado do trabalho de parte esmagadora do povo brasileiro. A trabalhadora e o trabalhador, ao assistirem Jornal Nacional, sentem o peso da indignação que é trabalhar para o sustento da família enquanto os serviços públicos não se revertem de forma alguma para uma qualidade melhor de vida, só para o bolso dos privilegiados representantes do poder.

Pelo contrário, o que ouvem são propagandas dos supostos especialistas da crise que exigem dos trabalhadores sacrifícios pela nação, pela saúde da economia brasileira, enquanto veem a sua própria saúde em xeque com o corte de investimentos sendo aprovado com a PEC 55.

Aqueles que se mantêm no poder sabem que esse sentimento é perigoso para a sua manutenção, baseada no grande e histórico esquema de criarem leis, enevoadas de hipocrisia ética e moral, para em seguida as burlarem. Mais do que isso, sabem que, ao transformar a indignação massiva em espetáculo, conseguem apassivar essa indignação, transformá-la em discurso, publicidade, consumo do espetáculo que dirigem, mesmo que, internamente, estejam se degladiando.

Além disso, devemos nos manter atentos aos prejuízos ao povo pobre e negro que é alvo cativo do encarceramento e da criminalização. A complicação do direito ao recurso, por exemplo, é uma mudança do processo penal geral, não particular dos crimes relativos à corrupção, e por isso poder permanecer atingindo grande parte da população que de fato é presa no Brasil. Essa também é condição para um desfecho autêntico dos interesses dos explorados e oprimidos.

Assumir tanto a defesa de Sérgio Moro, Deltan Dellagnol e a equipe da Lava Jato, quanto de Renan Calheiros e os parlamentares que sustentaram vergonhosamente sua autoanistia, é alimentar o espetáculo em que a classe trabalhadora só está enquanto condição de vítima e, no máximo, espectadora.

A semana que passou nos mostra que o dinheiro roubado pela PEC55 e pela corrupção sistêmica são parte do mesmo jogo conspirativo de aprovações e reprovações legislativas. O palco da burguesia, dos personagens das suas frações, precisa ter suas cortinas fechadas. O povo brasileiro, ao invés do lugar de plateia, deve ser ator principal da decisão do seu próprio roteiro; o emaranhado de cenas, que hoje se aplica à medição de forças entre os segmentos de poder, se alimenta também da confusão de grande parte da população trabalhadora.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil