Na última terça-feira, o anúncio dado pelo bilionário da tecnologia Mark Zuckerberg caiu como uma bomba no noticiário. Desde então, temos visto várias análises que tentam decifrar as possíveis motivações dessa nova orientação da Meta além dos seus prováveis impactos, medindo o que veremos de imediato e o que isso pode representar em um acumulado, no futuro. Têm sido abordado vários aspectos e feito alguns prognósticos: seria um “efeito Trump”, que pode ser uma associação tática ou estratégica de Zuckerberg; aumentaria o volume e os efeitos das fake news e, assim, representaria uma ameaça para as democracias; e setores oprimidos seriam imediatamente atingidos, como mulheres, LGBTI+, negros e imigrantes, com o crescimento do discurso de ódio.
Este texto tem como objetivo relacionar os aspectos considerados político-econômicos com os elementos culturais, ideológicos e econômico-sexuais da medida, dando destaque pra os temas de sexo e gênero e os impactos dessa nova orientação sobre mulheres e LGBTI+. Partimos da seguinte pergunta: como que fazendo os grupos oprimidos perderem mais, os gigantes da tecnologia ganham em termos de poder político e em aumento de lucros? Seriam essas consequências centrais esperadas do projeto autoritário deles ou apenas efeitos colaterais ou “cortinas de fumaça”?
A nova política de moderação da Meta e a psicologia de massas do projeto fascista da extrema direita
O discurso de Zuckerberg deixou evidente a associação do seu projeto com a ofensiva fascista impulsionada pela nova eleição de Trump. E o texto do seu pronunciamento trata disso explicitamente ao falar de um “novo momento”, de uma nova correlação de forças nos EUA. O sentido político é a associação com o fascismo. Avaliamos que o movimento de Zuckerberg faz parte de uma orientação de classe, mais precisamente dos grupos econômicos financeiros das gigantes da tecnologia, o ramo que mais tem acumulado financeiramente hoje no mercado mundial. Esse mesmo movimento levou com que Elon Musk fosse integrante da campanha de Trump e agora será parte de seu governo, com grande destaque público.
Mark Zuckerberg disse que iria trabalhar com Trump, para, inclusive, se enfrentar com países da Europa e da América Latina em suas tentativas de impor moderação nas suas redes sociais. Isso soou um grande alerta para quem tem preocupação com o futuro das democracias. Sabemos do peso das redes sociais hoje nas decisões políticas em diferentes países, sendo, em muitos casos, definidor para vitórias e derrotas. Particularmente: para crescimento e manutenção da extrema direita fascista e a corrosão dos regimes democrático-liberais em curso.
Além disso, algumas matérias jornalísticas e análises têm alertado para um dos impactos dado como certo: haverá uma explosão na circulação de discursos de ódio contra os grupos oprimidos, como mulheres e LGBTI+. Já se sabe que um dos pontos das novas diretrizes das redes da Meta é permitir publicações que associem transexualidade e homossexualidade a doenças mentais. Isso é um exemplo do sentido da nova política de Zuckerberg. A internet já é hoje um dos principais ambientes do discurso misógino, xenófobo, LGBTfóbico e racista.
O pânico moral, que vimos nas fake news do “kit gay”, “mamadeiras de pirocas”, na agenda anti-trans nos EUA etc., foram fundamentais para as duas eleições de Trump, em 2016 e 2018, e para a eleição de Bolsonaro, em 2018
E nos EUA, assim como no Brasil e em outros países, a agitação de temas ditos de “costumes” tem representado o carro-chefe das campanhas políticas de lideranças de extrema direita. O pânico moral, que vimos nas fake news do “kit gay”, “mamadeiras de pirocas”, na agenda anti-trans nos EUA etc., foram fundamentais para as duas eleições de Trump, em 2016 e 2018, e para a eleição de Bolsonaro, em 2018. E isso continua. Aqui no Brasil, o candidato mais votado nas últimas eleições municipais foi Lucas Pavanato, em São Paulo, com 161.386 votos. Pavanato fez a sua campanha quase exclusivamente com propostas transfóbicas, contra o direito ao processo transexualizador, concentrada em provocar o pânico moral.
O programa de governo eleito nos EUA, o Project 2025, de Trump, tem já em sua primeira página uma caracterização sobre quais seriam os problemas do país. Nela, associam problemas de inflação, mortes em decorrência do uso abusivo de drogas, ao que eles chamam de tóxica normalização do “transexualismo”, que estaria afetando sobremaneira crianças, junto com pornografia e drag queens nas bibliotecas de escolas1. Para esse projeto de extrema direita, não se separa questões tidas como exclusivamente econômicas (inflação, desemprego, renda), de questões do sistema de produção e reprodução, ou culturais.
E é também indissociável o projeto de comunicação de massas do fascismo com um conteúdo de ódio, pois é com a ajuda da circulação desse conteúdo que os agitadores de extrema direita mobilizam as suas bases, com alto nível de afetividade, conformando verdadeiros movimentos de massas. E essas turbas, além de atuarem nas redes, estão nas ruas. Os exemplos do 6/janeiro americano e do 8/janeiro brasileiro são categóricos para isso.
Além de ampliar a disseminação de conteúdos falsos, que alimentam discursos de ódio, preconceitos, essa nova medida coloca em risco a segurança e a dignidade das pessoas LGBTI+, de mulheres e outros grupos oprimidos. O fascismo, diferente do liberalismo, não se compromete com a defesa da vida, para ele esse não é um dever do Estado. Mais do que perseguir e restringir, é preciso eliminar. A veiculação desse tipo de conteúdo traz sérios problemas para a saúde mental dos usuários, podendo levar a situações de auto-mutilação, traumas graves, suicídio. Além de estimular casos de ofensas, agressões físicas e assassinatos.
Mulheres e LGBTI+, no Brasil, só muito recentemente conseguiram dispositivos jurídicos para sua proteção. A Lei Maria da Penha e a interpretação da Lei do Racismo feita pelo STF são armas fundamentais para o combate às violências de gênero, raça e LGBTIfóbicas. A ausência de leis de proteção só favorece os violentadores. Mesmo com essas armas jurídicas, só vemos crescer os casos de feminicídio e assassinato por homotransfobia.
Política Sócio-Reprodutiva
Não seria exagero dizer que as medidas anunciadas por Zuckerberg representam uma nova era na internet. Ao se equiparar à política de (des)moderação do X, o dono do Facebook, Instagram e Threads catalisa o processo de vale-tudo no meio digital. Mas não é um vale-tudo para todos. As redes sociais necessitam, para serem funcionais, de alguma moderação. Se não fosse assim, seriam tomadas por spam, pornografia e anúncios. Ou seja, o que está em jogo não é moderação versus “liberdade de expressão”, mas a associação direta, explícita e ofensiva do ramo econômico das big techs com o projeto de poder da extrema direita.
E isso não está distanciado dos interesses de mercado desse setor econômico-financeiro. Hoje, Mark Zuckerberg figura o segundo lugar na lista dos mais ricos do mundo (bloomberg). Isso é um fato inédito para ele, o que representa uma espetacular recuperação e crescimento, considerando o escândalo da Cambridge Analytica, em caso 2018, quando foi revelado que o Facebook havia vendido dados dos seus usuários para ajudar na eleição do Donald Trump, em 2016. Após isso, o dono da Meta foi obrigado a definir algumas medidas de regulação, como o desestímulo à circulação de conteúdo político e o discurso de ódio em suas redes sociais. Também o discurso de Zuckerberg foi claro quanto a isso frente aos seus interesses econômicos. Ele disse com todas as letras que “a realidade tem mostrado que os usuários querem falar e interagir mais com esse conteúdo”, e usou o exemplo da nova eleição de Trump para isso. Ou seja, não se trata apenas de uma escolha política, mas uma política econômica que visa poder e acumulação da capital – mesmo que fictício.
Além de impactar em violências contra grupos oprimidos, a circulação de ideologias racistas, misóginas, xenófobas e LGBTIfóbicas servem a um projeto de superexploração das classes trabalhadoras
Além de impactar em violências contra grupos oprimidos, a circulação de ideologias racistas, misóginas, xenófobas e LGBTIfóbicas servem a um projeto de superexploração das classes trabalhadoras. No capitalismo – como um sistema de produção e reprodução social – o preconceito é subsumido no Capital, através dele taxas maiores de mais-valia são extraídas dos grupos oprimidos da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo que se beneficia do sobretrabalho não pago desenvolvido por esses grupos, na ausência de serviços estatais.
Essas ideologias não se restringem a sua dimensão cultural, moral, de múltiplas identidades. O ódio sustenta desigualdades de salários e localização no mercado de trabalho, como a precarização dos postos de trabalho ocupados por imigrantes, mulheres e pessoas LGBTI+, sobretudo travestis e transexuais. Tal desigualdade no valor da força de trabalho se desdobra em desigualdades que se espraiam em todo o âmbito da vida humana, como local de moradia, acesso a saneamento básico, a transporte público, áreas de lazer, capital cultural.
Esse quadro informa que, além do ganho imediato para o seu projeto político de mobilização de massas, no maior engajamento das suas redes sociais, essas medidas também impactam no fortalecimento de mecanismos que ampliam a extração de mais-valia da classe trabalhadora por meio da superexploração de alguns dos seus setores.
Dominação política, hegemonia e economia libidinal
Pesquisas têm indicado que passamos cada vez mais tempo nas redes sociais, conectados à internet por meio de smartphones. O acesso a filmes, séries, livros, músicas etc. de produções culturais passa pela internet. Assim como o acesso à informações. Esse quadro nos mostra o quão fragilizados estamos diante do controle de meia dúzia de bilionários. Com o avanço na IA, isso tem ficado ainda mais perigoso.
As grandes corporações internacionais de mídias digitais estão entre as corporações mais ricas da história do capitalismo moderno e concentram a maior parte da navegação internacional, que no Brasil chega a cifra de dois bilhões de acessos diários apenas no Youtube e Facebook (Canal Tech, 2020). Também no Brasil, segundo a pesquisadora Rosana Pinheiro Machado, cerca de 25 milhões de brasileiros tentam viver de vendas no Instagram. A arquitetura das redes sociais, que transforma consumidores em produtores, permitiu através do feedback a produção de desejos e conteúdos que os saciem. Ao mesmo tempo que, as decisões de funcionamento, a disseminação de conteúdos, de programação do algoritmo são exclusivas dessas corporações, sem a participação da sociedade civil. Portanto, não se caracterizam por uma maior democratização em relação às mídias tradicionais, longe estão de serem neutros em relação ao poder. Tais grupos são pautados pelos seus próprios interesses políticos e econômicos sem qualquer independência em relação a atual crise de hegemonia. (Finger, 2021)
Os algoritmos e dados que lançamos na internet são capazes de reconhecer nossos padrões de consumo, valores, hábitos sexuais, partidos políticos e manipular necessidades antes mesmo que as tenhamos racionalizadas.
O setor da tecnologia, que um dia já foi identificado com ideias mais progressistas, migrou para a extrema direita. Não se trata apenas do risco do que chamamos de fake news. Eles controlam a maioria do campo simbólico da maioria das populações.
O poder político disso é enorme. O fascismo sustenta uma certa ideia de nação, que determina quem a constroi, quem dela faz parte, e quem deve ser excluído. A colonização de países pode se dar de diferentes formas. Mesmo o fascismo histórico soube reconhecer a importância da construção de uma subjetividade e mentalidades fascistas. A incorporação do vale do silício ao trumpismo pode significar uma mudança em relação à política para o sul global. A partir de agora, com mais facilidade, podem influenciar eleições por que influenciam comportamentos em grau ainda inédito. Constroem apoios, estimulam sentimentos, reinventam desejos, colocam em dúvida instituições e a ciência. A submissão de todos a um líder autoritário exige a construção de uma nova sociabilidade, e para isso as redes sociais são essenciais no século XXI, como meio para uma dominação política para a qual a economia dos desejos é essencial.
Referências:
FINGER, Vinicius. História, Mídia digital e anti-ciência: A quimera narrativa do canal Brasil Paralelo. In: Revista História, Rio Grande. V12, n2, p83-104, 2021.
POGGI, Tatiana. Fascismo à Brasileira. In: O neofascismo no poder (ano I): Análises críticas sobre o governo Bolsonaro. ors: DEMIER, Felipe. FIUZA, Juliana. Rio de Janeiro: Consequência, 2019
1 Do original em inglês: “Look at America under the ruling and cultural elite today: Inflation is ravaging family budgets, drug overdose deaths continue to escalate, and children suffer the toxic normalization of transgenderism with drag queens and pornography invading their school libraries” (Project 2025, p. 1).
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