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O paradoxo da história: uma situação reacionária numa época revolucionária é possível?

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Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Foi a bela época da sua vida, a época feliz. Era (ou julgava ser) dono do seu pensamento e da sua doutrina. Os primeiros sintomas do movimento revolucionário tornavam-se visíveis ao seu olhar atento. Marx, segundo parece, julgava ainda possível passar sem interrupção da revolução democrática europeia ao socialismo e ao comunismo, por uma “revolução permanente”. Abriam-se perspectivas sem limites. Tinha então 30 anos e encontrava-se em pleno vigor da juventude, do gênio, do amor feliz. (grifo nosso)1
                                                                                                                     Henri Lefebvre
O exemplo dos Fenícios mostra-nos até que ponto, as forças produtivas desenvolvidas mesmo com um comércio relativamente pouco vasto, são susceptíveis de uma destruição total, pois as suas invenções desapareceram na sua maior parte, pelo fato de a nação ser eliminada do comércio e conquistada por Alexandre, o que provocou a sua decadência… a duração das forças produtivas adquiridas só é assegurada quando o comércio adquire uma extensão mundial que tem por base a grande indústria e quando todas as nações são arrastadas para a luta da concorrência. (grifo nosso)2
                                                                                               Karl Marx e Friedrich Engels

Já se disse que a cabeça acompanha o chão que os pés pisam. A pressão de onde se vive e está é muito grande, e determina nossas percepções. Mas o tempo que vivemos, o império do presente, é igualmente, avassalador, o que alimenta impressionismos. Acontece que os tempos da luta política – as etapas, em dimensão mundial, as situações e as conjunturas na escala das nações – oscilam numa escala distinta da perspectiva histórica. 

Neste grau de análise das temporalidades – as longas durações – a régua de aferição do “relógio” das mudanças econômicas, sociais e políticas é outra. Ao longo de uma mesma época podem se alternar situações contrarrevolucionárias, reacionárias, de estabilidade, pré-revolucionárias ou revolucionárias em diferentes continentes, regiões e, até com maior frequência, em distintos países. Na história não há sincronia entre o sentido de uma época, que deve ser avaliada na medida dos séculos, portanto, em grau muito elevado de abstração, e das etapas políticas que se mantém por décadas, e ainda menos das situações que variam em anos. 

Vivemos numa época histórica de crise do capitalismo. Revoluções socialistas triunfaram a partir da experiência pioneira da revolução de outubro na Rússia. Mas os processos de transição ao socialismo foram interrompidos. Esta inversão abriu uma etapa reacionárias, mas não autoriza concluir a inversão do sentido da época. Não foi assim, porque não é previsível um período longo de prosperidade do capitalismo. Não serão bastante as inovações em microchips, nanotecnologias, biotecnologias, novas energias e outras. Uma inversão de época só seria possível diante de uma derrota histórica de proporções colossais. Hipoteticamente, não seria impossível. Mas não aconteceu.

Um exemplo instigante de como Marx estava atento a estas não linearidades do processo histórico, encontramos na epígrafe sobre as regressões históricas. O tema merece atenção porque processos de regressão se estendem em inusitada dramaticidade e insólita velocidade. Mas, segundo Lefebvre, estes dilemas civilizatórios não diminuíram a paixão revolucionária de Marx. O perigo de barbárie é uma ameaça real, talvez, emergencial, e até cenários apocalípticos não podem ser descartados. Mas a luta não termina enquanto não acaba.

O compromisso com a luta pelo socialismo exige, portanto, muita resiliência e grandeza de horizontes. A força necessária para esta luta se alimenta em muitas fontes, mas nada substitui a lucidez estratégica. Esta determinação se alicerça na consciência de que o capitalismo não é invencível, e seus limites históricos são cada vez mais estreitos. 

O capitalismo atravessa, nesta terceira década do século XXI, uma crise estrutural: assistimos uma tendência de crescimento lento com viés de estagnação, uma disputa no sistema internacional de estados sem desenlace previsível diante da lenta, porém, ininterrupta decadência da supremacia norte-americana e o fortalecimento da China, a precipitação de uma crise ambiental catastrófica, e uma crise do regime democrático-liberal com a ascensão vertiginosa do neofascismo. Em resumo, evolui muito mal.

Mas estas quatro crises não são suficientes para explicar o período aberto em torno de 2015/16, quando da aprovação do Brexit e da primeira eleição de Trump nos EUA. A crise econômica de 2008, a mais grave desde 1929, não culminou com uma depressão profunda como nos anos trinta, em função da estratégia do relaxamento monetário (Quantitative Easing), mas fez da segunda década do século XXI a primeira com estagnação prolongada, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. 

Nesse contexto, as duas ondas revolucionárias do século XXI, na América Latina entre 2001/2005, e no Magreb e mundo árabe entre 2010/12 foram derrotadas, ainda que derrotas de pesos diferentes. Muito mais grave, no entanto, qualitativamente, mais desfavorável é a situação desoladora do movimento socialista no mundo. A imensa maioria da nova geração de trabalhadores não mantém mais referência com o projeto socialista. Ou seja, as sequelas da restauração capitalista e o fim da URSS foram irreversíveis. A rigor estamos em uma etapa internacional até pior que nos anos trinta que teve como desenlace o fortalecimento do nazifascismo e a Segunda Guerra Mundial.

Estamos em uma situação reacionária no Brasil, desde o golpe institucional de 2016. Uma parcela muito importante do ativismo de esquerda chegou à vida adulta depois de 2013. Ou seja, a geração mais jovem despertou para a militância sob o impacto do gigantismo de milhões em movimento nas caóticas “jornadas de junho”, mas nos dez anos seguintes só conheceu conjunturas ruins, umas piores que outras, mas sempre numa correlação de forças desfavorável, o que não é nada animador. Tiveram pouca sorte. Também, por isso, a perspectiva histórica é vital.

O que herdamos da elaboração marxista sobre as transições históricas?

O tema das grandes transições históricas sempre atraiu a atenção dos historiadores marxistas. Na sua maioria concentraram o seu foco de pesquisa na passagem do feudalismo ao capitalismo, mas alguns se interessaram, também, com a mesma paixão, pelo colapso do mundo antigo. Buscavam compreender as condições objetivas desses momentos únicos da história que são as mudanças dos modos de produção

Por séculos, as forças produtivas decaíram, estagnaram, retrocederam, ou seja, a sociedade, de conjunto, regrediu, para somente sob as ruínas do desmoronamento da velha civilização, e após um longo intervalo de barbárie, poder encontrar um caminho de progresso social. 

A formação do mercado mundial, a elevação das forças produtivas das formas artesanais para a manufatura, o aumento na circulação das mercadorias e do dinheiro, vieram a encontrar na estrutura feudal, em seguida, um entrave que precisava ser deslocado, sob pena de bloquear a dinâmica de desenvolvimento das forças produtivas: era necessário eliminar as fronteiras internas; garantir a livre circulação de mercadorias e força de trabalho; erradicar a beligerância endêmica da nobreza. Essas tarefas exigiam deslocar os privilégios sociais e políticos da aristocracia.

Depois de séculos de um processo desigual que assumiu ritmos e formas muito diferentes em cada região da Europa, não foi mais possível adiar a necessidade de destruir o Estado absolutista aonde ele tinha sido historicamente mais poderoso, na França. Quando se produz esse choque entre o impulso das forças produtivas, e as forças de inércia das relações sociais, a sociedade entra em uma época revolucionária, ou seja, uma época em que as lutas de classes assumem o lugar de força de força motriz determinante, um período que pode se estender por uma longa duração, uma época de grandes convulsões e lutas, mais ou menos conscientes, no qual as classes ascendentes lutam contra a velha ordem social.

Na história, existiram, no entanto, como sabemos, tanto transições de tipo revolucionário, quanto transições de tipo “catastrófico”: as segundas foram, para o fundamental, quase uma regra, até a transição do feudalismo ao capitalismo na Europa.

Mais raramente, ocorreram passagens de tipo reformista. Foram transições negociadas ou controladas em que predominam os acordos, as concessões mútuas, as acomodações de interesses, diante de um perigo maior, quase sempre, como uma consequência de passagens revolucionárias prévias. Mas as transições revolucionárias exigiram, além da caducidade das relações sociais de produção (inerente a qualquer processo de transição histórica), a emergência de um sujeito social, um bloco de classes disposto a lutar. 

Assim, no Mediterrâneo, por exemplo, apesar da longa decadência do império romano não ocorreu uma transição revolucionária impulsionada pelo protagonismo da massa de escravos. E o império veio finalmente a sucumbir sob a pressão das grandes migrações germânicas. O escravismo freou o desenvolvimento das forças produtivas, mas as relações sociais não foram revolucionadas, porque inexistia uma classe capaz de assumir um projeto superior à organização econômica do mundo antigo3. 

Entre os processos mais inverossímeis da história se destaca o efêmero reino dos Vândalos em Cartago. Depois de vagarem pelo sul da Europa durante alguns anos dedicados ao saque e à rapina, como outras tribos germânicas, os Vândalos cruzaram o estreito de Gibraltar e fixaram-se no norte de África onde impuseram o seu domínio feroz, escravizando impiedosamente os conquistados. Foram processos como esse que levaram a maioria dos historiadores marxistas a considerarem que as revoltas de escravos não eram portadoras de qualquer projeto de reorganização da produção econômico-social que fosse muito diferente dos limites históricos do escravismo no Mediterrâneo.  

Esses eram, para Marx, os fatores que, com regularidade histórica, definiam a abertura de uma época revolucionária: a maturidade das forças produtivas, para uma reorganização da vida econômico-social, impulsionada por relações de produção superiores, e a existência de um sujeito social explorado que tenha interesses incompatíveis com a preservação da ordem.

A crise se antecipa necessariamente à formação de uma consciência da crise. Neste processo de construção da teoria, todavia, o conceito de época revolucionária, se refere, tanto à esfera da longa duração e, portanto, da transição histórica, à escala do mercado mundial constituído, como à esfera da curta duração e, portanto, da precipitação de uma onda de crises revolucionárias nos países mais desenvolvidos da Europa Ocidental. 

A aceleração dos tempos históricos

No Manifesto Comunista não pareceria existir uma diferenciação conceitual. Muito possivelmente, Marx e Engels pensavam, ainda nas vésperas de 1848, que a hipótese mais provável, seria que a aceleração dos tempos históricos que o colossal crescimento das forças produtivas tinha conhecido, sob o impulso da revolução industrial, e a acelerada formação do proletariado moderno (as premissas objetivas assinaladas na Ideologia Alemã), abreviassem o intervalo histórico da transição pós-capitalista. Após as derrotas de 1848, pareceria existir uma reavaliação teórico-política dos tempos, prazos e perspectivas4.   

Mas este tortuoso, multifacetado, irregular, e, sobretudo, desigual processo de desenvolvimento histórico não anula a conclusão de que, na longa duração, o desenvolvimento das forças produtivas tem na ciência e na tecnologia, o mais importante fator de impulso histórico. Este impulso, nunca foi, e não é, ainda hoje, exterior ao processo da luta de classes: a usura, a ganância e a cobiça, ou seja, tudo aquilo que faz a vulgaridade e a mesquinhez do capitalismo, definem o “espírito” de uma época, e são parte inseparável das suas convulsões internas e dos seus limites.

A psicologia social das classes em luta importa. É muito conhecido, o exemplo histórico do Império Romano, que, embora tivesse disponível, um imenso volume de conhecimentos, em função da abundância de mão de obra escrava disponível, desprezou boa parte das aplicações tecnológicas, que representariam um importante aumento de produtividade. Ou seja, existem na história, contrafatores (sociais e políticos), que podem anular a tendência ao crescimento das forças produtivas e, por isso, este impulso de progresso não é linear, é muito irregular. 

Não é incomum que análises históricas se esqueçam do ABC do marxismo, que explica, que, em última análise, é porque agem, na maioria das circunstâncias, apesar dos seus interesses, ou até, contra os seus interesses, que as classes subalternas suportam, ou toleram, as condições brutais de exploração a que estão submetidas, sem se rebelar, ou adiando a rebelião. Não o fazem, é claro, somente porque ignorem quais são os seus interesses, mas porque duvidam se suas próprias forças. E, no entanto, uma das definições mais simples de uma situação revolucionária, é que ela se abre, quando a maioria dominada começa a fazer a transição de uma situação de “classes em si”, para “classe para si”. A tendência “intrínseca” ao desenvolvimento das forças produtivas, deve ser considerada à luz deste enfoque, com muitas mediações: ela também pode ser contra restada por inúmeros fatores.

Este parece ser o ângulo de observação de Marx. E dele decorreria uma primeira classificação: as transições históricas pré-capitalistas, antiguidade clássica e pré-clássica, teriam sido predominantemente de tipo catastrófico, ou “inconscientes” (aquelas em que os fatores exógenos prevalecem, choques de civilizações, “volkerwanderung”, migrações de povos, invasões) em oposição às transições de tipo revolucionárias , ou transições “conscientes” (aquelas que têm como fator de impulso as lutas de classes, um sujeito social com um projeto de sociedade,  portanto, os fatores endógenos) .

Essa “tendência intrínseca” e a “relativa inflexibilidade” das relações sociais e suas expressões superestruturais seria, portanto, a chave de compreensão da abertura de uma época revolucionária. Se o sujeito social está ou não consciente de quais são os seus interesses, se tem ou não confiança em suas próprias forças, se foi capaz ou não de se organizar para lutar por um programa que traduz a sua visão de como a sociedade deve ser transformada, ou seja, se o sujeito social está politicamente maduro para o desafio subjetivo do projeto revolucionário, em uma palavra, os fatores históricos subjetivos, seria, neste nível de abstração, irrelevante para a definição da natureza da época. 

Mas, na mesma medida, os fatores subjetivos seriam crescentemente decisivos e determinantes na escala das situações e conjunturas, ou, em outras palavras, na medida em que análise se desloca tanto para um cenário geograficamente mais definido, quanto para prazos mais delimitados (a escala das décadas, ou mesmo dos anos, e meses). Em outras palavras, a definição de época revolucionária foi feita por Marx em uma escala histórica de longa duração, porque se apoiava no exemplo histórico da transição secular do feudalismo ao capitalismo.

Ainda é possível, porque permanece necessário.

Notas
1 LEFEBVRE, Henri. Para Compreender o Pensamento de Karl Marx. Trad. Laurentino Capela. Lisboa. Edições 70. 1981
2 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Trad. Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Porto, Presença, 1974.  p 66.
3 Entre os inúmeros estudos sobre a questão, merecem destaque os dois trabalhos de Perry Anderson, Passagens da Antiguidade ao Feudalismo e Linhagens do Estado Absolutista, pela original articulação das análises das lutas de classes com as outras causalidades, aplicando a esses períodos os recursos de uma compreensão da história como um desenvolvimento desigual e combinado.
4 A teoria da revolução em Marx e Engels, às vésperas de 1848, ainda estava inspirada na dinâmica interna revelada pela revolução francesa entre 1789/93. Sobre este tema, Marx em 1848, o interessante trabalho de Henri Lefebvre, Para compreender o pensamento de Karl Marx, comenta quando os ventos da revolução já se faziam sentir: “ (grifo nosso) (LEFEBVRE, Henri. Para Compreender o Pensamento de Karl Marx. Trad. Laurentino Capela. Lisboa. Edições 70. 1981).