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TEORIA

Como entender e combater o fascismo

Uma resenha da segunda edição do livro “Fascismo – História e Teoria” de David Renton, lançada pela Usina Editorial

Por Elber Almeida, do ABC (SP)

Muito já foi elaborado teórica e programaticamente sobre o fascismo, afinal, é um fenômeno que não é novo. Portanto, vale um esforço de sistematização do debate político e acadêmico sobre o mesmo e é isto que faz o livro “Fascismo – História e Teoria” de David Renton, recentemente traduzido para o português em sua segunda edição plea Usina Editorial.

Quem ler tal livro não irá se deparar com um esforço contemplativo, mas sim com uma tomada de posição intelectual a favor do combate ao fascismo. Isto implica a busca do autor pelo conjunto teórico que melhor analisa e caracteriza o fenômeno para que daí venha a melhor política para destruí-lo.

A esse conjunto, Renton dá o nome de “teoria dialética” ou “crítica”, em que estariam as elaborações da pioneira Clara Zetkin, além de Gramsci, Thalleimer e Trotski. A característica principal desta linha é a compreensão da particularidade do fascismo em seu equilíbrio e contradição com a dominação burguesa.

De modo mais específico, o fascismo carrega a singularidade de ser um mobilizador de massas. Seja enquanto movimento, partido ou regime, o fascismo organiza setores das classes trabalhadoras, em especial da pequena burguesia e da moderna classe média, mas também, em menor medida, do próprio proletariado. Porém, ao contrário dos socialistas, os fascistas mobilizam em defesa do capitalismo. Nas palavras de Trotski: “o fascismo é um meio específico de mobilizar e organizar a pequena burguesia de acordo com os interesses sociais do capital financeiro”.

Essa elaboração se contrapõe a outros dois conjuntos. A teoria esquerdista e a de direita (social-democrata). A primeira, conhecida também como teoria do social-fascismo, vencedora no VIº Congresso da Internacional Comunista (1928)1 através da famosa tese do Terceiro Período. Esta tese absolutiza o apoio de setores da burguesia ao fascismo e subestima seu caráter de massas, chegando a equipará-lo à social-democracia. Além de ser defendida por Zinoviev, tal teoria tem sua síntese na frase de Stálin: “O fascismo e a social-democracia não são antípodas, mas gêmeos”, uma política evidentemente ultraesquerdista.

Do outro lado estão as teorias dos marxistas mais à direita que ganharam terreno na própria social-democracia. Como exemplo temos a visão de Kautsky, que supunha uma incompatibilidade entre fascismo e capitalismo. O engano era tal que se acreditava que a própria burguesia dispensaria os fascistas do poder. Outra versão dessa teoria foi adotada pela Internacional Comunista, já em seu VIIº congresso (1935), partindo do pressuposto de que apenas os elementos mais reacionários burgueses eram a base social do fascismo, justificando o giro do ultraesquerdismo para o oportunismo das frentes populares, ou seja, alianças entre os comunistas, social-democratas e partidos burgueses para governar, o que supostamente impediria o avanço fascista. Tal política resultou na derrota catastrófica da Revolução Espanhola, a título de exemplo, embora o franquismo não seja caracterizado por Renton como um movimento fascista, mas sim reacionário de massas de um modo mais geral. É importante o apontamento de que ambas as políticas foram aplicadas pelos mesmos quadros dirigentes dos partidos comunistas.

Seja supervalorizando o caráter burguês do fascismo ou seu desenvolvimento no seio das massas em contradição com a democracia liberal, ambas as teorias não enxergaram que tanto a força como a fraqueza desse fenômeno estão na contradição entre sua base de massas pequeno-burguesa e sua natureza imperialista e reacionária. A implicação é que nem a Segunda Internacional dos reformistas e nem a Terceira Internacional já burocratizada no Vº congresso aplicaram a linha recomendada por Zetkin, que era a construção da Frente Única, ou seja, da unidade por baixo e por cima, nas bases e nas direções, das organizações partidárias, sindicais e de diversos outros tipos da classe trabalhadora, o que levou aos resultados catastróficos que conhecemos.

Renton não se detém no debate sobre a tática de Frente Única, embora assinale que a sua versão distorcida de “frente única de baixo pra cima” foi defendida pela Internacional Comunista do terceiro período e que a fórmula de Trotski “marchar separados, golpear juntos” buscava dialogar com a militância comunista influenciada pela política ultraesquerdista da direção burocrata. Porém, por mais que haja essa lacuna no desenvolvimento sobre a polêmica das respostas práticas para além de teóricas, Renton tem uma rica crítica ao incorporar a teoria anticolonial de Aimé Césaire que enxergou o elo fundamental entre fascismo e colonização, sendo a segunda formadora do primeiro. Nesse sentido, porém já em outro trecho do livro, o autor também resgata o prenúncio de Trotski sobre o Holocausto ainda em 1938: “É possível imaginar sem dificuldade o que aguarda os judeus com a simples eclosão da futura guerra mundial. Mas, mesmo sem guerra, o próximo desenvolvimento da reação mundial significa com certeza o extermínio físico dos judeus”

Ao mesmo tempo, neste aspecto Renton é crítico a Trotski, que não teria conseguido explicar o porquê do racismo ser atraente para parcelas da população alemã de então, sugerindo que seu prenúncio tinha centralmente relação com o fato do mesmo presenciar no passado os pogroms2 da antiga Rússia Czarista. Faltou mencionar que Trotski foi um dos principais polemistas a favor da centralidade da questão racial tanto na Internacional Comunista como na IVª Internacional.3

Renton aponta contribuições de Lukács, Walter Benjamin e outros marxistas que procuraram compreender o fascismo para além de suas características mais diretamente econômicas e institucionais. Com isto, rebate uma caricatura: a de que os marxistas só se preocupam com a economia, embora isso seja verdade para algumas versões do marxismo. Também critica certos pensadores da academia que tratam o fascismo como fenômeno centralmente cultural específico de uma época e localidade. Renton resgata as teorias críticas e dialéticas para assinalar seu caráter internacional e sua ligação com as crises capitalistas, para além de suas particularidades.

Por fim, vale assinalar a caracterização feita no livro do fascismo como movimento de massas reacionário. Assim, é diferenciado o mesmo de outros tipos de regimes reacionários, como ditaduras militares, mas também de outros movimentos de massa do tipo, como o franquismo. Em resumo, apensar de movimento de massas, o componente de repressão estatal é muito mais predominante nos mesmos que não se enquadrariam na categoria fascismo do que a sua característica mobilizadora.

Cabe o seguinte questionamento a essa sistematização: sendo a característica reacionária e de massas comum a tais movimentos, é suficiente uma diferenciação centralmente quantitativa dos mesmos? Por exemplo, vimos que o trumpismo avançou em sua característica mobilizadora de massas com o passar dos anos, seja através de teorias da conspiração como o Qanon ou o MAGA (Make America Great Again), o movimento que tomou a direção do Partido Republicano nos EUA, movimentações que culminaram no assalto ao capitólio, que não foi o único episódio de violência política do trumpismo. Em qual medida podemos entender que se trata ou não de um movimento fascista? Renton não aborda esse tema no livro, e nem parece ser o objetivo do mesmo, porém as implicações práticas deste edifício teórico precisam ser pensadas.

Além do mais, devemos esperar que o fascismo do capitalismo neoliberal tenha características iguais às do mesmo no período fordista e em que havia estados operários por boa parte da superfície terrestre? Apesar de não fazer tal investigação, o livro de Renton contribui para assinalar a singularidade e dinâmica no tempo e espaço do fascismo. Para a militância socialista é uma ótima recomendação de leitura.

No Brasil, enfrentamos uma situação em que a maioria das direções da classe trabalhadora adota a postura derivada de um entendimento semelhante àquele das teorias de direita do fascismo, a saber: a compreensão superficial de que o bolsonarismo, o fascismo que enfrentado hoje no país, seria um fenômeno político e cultural pouco sustentável numa democracia burguesa, apostando que certas instituições do regime setores da classe dominante dariam cabo da sua existência ou ao menos derrotariam o mesmo de forma contundente sem que as classes trabalhadoras precisassem serem mobilizadas para o enfrentamento ao perigo. Há ainda um setor minoritário mas estridente e ultraesquerdista, com opiniões que ecoam principalmente por alguns influenciadores nas redes sociais que adota praticamente a mesma tese que esquerdista da teoria do “social-fascismo”, com diversas nuances aproximando o governo Lula do bolsonarismo, como se fossem perigos equivalentes. Nesse cenário, a teoria dialética do fascismo pode preencher as lacunas que desorganizam a classe trabalhadora, promovendo a construção da Frente Única.

O livro está disponível no site da Usina Editorial, com prefácio do estudioso brasileiro do fascismo e historiador, Demian Melo.

1 Internacional Comunista é o nome recorrente da Terceira Internacional, a terceira organização que organizou partidos revolucionários internacionalmente. No sexto congresso da mesma, a oposição de esquerda soviética de Trotski, Preobrajenski etc., já havia sido perseguida com seus membros presos e exilados.
2 Os pogroms foram movimentos antissemitas que aconteceram na Rússia Czarista, incentivados e organizados pelo estado com apoio de setores de massas, tais movimentos visavam eliminar fisicamente as populações de judeus, sendo um antecedente do fascismo propriamente dito, já analisado por Lênin.
3 Ver, por exemplo, as elaborações de Trotski sobre a questão negra nos EUA em polêmica com os dirigentes do SWP nos anos 30.

 

 

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