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Relato 36: O adolescente sob a tutela do Estado, cujas portas giratórias se abrem e se fecham em vazios de cidadania

Fernanda Severo

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, feminista, militante da Resistência/Campinas e da Coletiva Nacional de Mulheres Antimanicomiais – CONAMAM;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Márcia Caldas, Psicóloga, Assessora Técnica de Saúde Mental e População em Situação de Rua, Promotoria da Infância e Juventude/MPDFT, Integrante do Coletivo Café com Escuta

É fundamental que as histórias a serem narradas sobre jovens que se perderam em diversos espaços de suas trajetórias de vida sejam as que mostram como, frequentemente, o Estado não segura adequadamente nas mãos desses jovens, não caminha junto deles, não atua de forma efetiva para protegê-los e como não proporciona melhorarias e acompanhamento das vidas dessas jovens pessoas; provavelmente, por negligência, imprudência ou imperícia, deixando de recorrer às políticas públicas existentes.

Quando João ou Maria (nomes fictícios), crianças ou adolescentes, têm seus direitos violados em algum momento da vida e a justiça é acionada, ela, provavelmente, decretará medidas protetivas em relação a eles, que passarão a ser responsabilidade do Estado, conforme prevê o art. 98 da Lei nº 8.089 de 13 de julho de 1990 – que Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências:

Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
III – em razão de sua conduta.
Inicialmente, cabe refletir que esses sujeitos necessitam de uma escuta sensível de redes de apoio e proteção, “redes vivas” (Emerson Merhy, 2014), que possam ouvir as violações de quem teve os direitos violados, além de garantir que seus sentimentos e desejos sejam respeitados.

Considerando as dificuldades da rede de saúde, da rede da assistência social, da intersetorialidade, assim como também a falta de profissionais qualificados e em número reduzido nessas redes, muitas vezes observamos diversas ausências e dificuldades no processo de acolhimento desses jovens: de escuta, de articulação de rede, de criminalização da pobreza e outros aspectos que poderão produzir intensos sofrimentos psíquicos na vida de João e Maria. Além dessas violências no acolhimento desses sujeitos, não raro essas crianças e adolescentes são afastados de suas famílias de origem, sendo tutelados pelo Estado, o que constitui mais uma violência.

Muitos Joãos e Marias são retirados do convívio familiar e enviados às Unidades de Acolhimento da Assistência Social. E o que deveria ser um período determinado e curto, como preconiza a legislação das crianças e adolescentes, essas crianças e jovens permanecem muitos anos institucionalizados, sem possibilidades de construção de sua própria autonomia.

Em geral, essas crianças e adolescentes, são pessoas com histórias de vida difíceis, que necessitam do acompanhamento do sistema de garantias e proteção. A rede é falha, com poucos servidores, apesar de muitos serem bons profissionais e terem boa vontade. Predomina ainda uma perspectiva de tutela e assistencialismo dessas crianças e adolescentes. Portanto, necessita-se urgentemente, uma mudança de paradigma na compreensão desse público de crianças e adolescentes, que devem ser considerados sujeitos de direito de suas vidas e não objetos de controle do Estado.

Quando João ou Maria apresentam algum tipo de sofrimento psíquico ou problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, as preocupações se intensificam e o receio do Estado de perder o controle da situação e dos sujeitos se torna maior, perspectiva conservadora e controladora de corpos e não garantidora de direitos.

É necessário refletir sobre algumas dificuldades encontradas para implementação de todos os equipamentos da RAPS, desde a sua criação, previstas pela Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011- que institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras substâncias, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Observa-se a inexistência ou pequena quantidade de Serviços Residenciais Terapêuticos, Unidades de Acolhimento/ UAs Infanto Juvenil e Centros de Convivência que podem ser considerados locais de redução de danos. Diante de uma RAPS ainda precária e de profissionais com dificuldade em reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, apela-se muitas vezes para internação em leitos de hospitais/clínicas psiquiátricas e, inclusive, comunidades terapêuticas, onde o cuidado em liberdade e o acolhimento afetuoso previstos na reforma psiquiátrica antimanicomial não acontecem; o que ocorre é o “suposto tratamento” baseado na hipermedicalização e métodos como privação de liberdade que violam direitos humanos e de forma alguma podem ser considerados cuidado e tratamento.

João ou Maria em sofrimento mental ou que não estão conseguindo se adequar aos padrões exigidos pela instituição na qual estão acolhidos, são internados nesses hospitais/clínicas psiquiátricas e saem, na grande maioria das vezes, sem planejamento de alta, sem suporte emocional/afetivo e sem elaboração de Projeto Terapêutico Singular -PTS – ( previsto na Portaria 3088/11 do Ministério da Saúde, que trata sobre projeto terapêutico singular para pessoas com transtorno mental e problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas no SUS, em seu art. 2º: Constituem-se diretrizes para o funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial, inciso: XII – desenvolvimento da lógica do cuidado para pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, tendo como eixo central a construção do projeto terapêutico singular).

Observa-se que após os períodos de internações, muitos retornam para às UAs da Assistência Social, estabelecendo-se um ciclo de idas e vindas entre essas unidades de acolhimento e as clínicas/hospitais psiquiátricos, locais em que, geralmente, são hiperdiagnosticados, hipermedicalizados, tutelados e docilizados com táticas que podem violar direitos humanos. Percebe-se que a falta de adequação aos padrões de um cuidado humanizado, exigidos pela legislação, somado ao escasso suporte da rede de apoio e proteção do Estado a esses equipamentos, assim como também a impossibilidade desses sujeitos se encaixarem em regras rígidas estabelecidas e que muitas vezes não fazem sentido. Desse modo, muitas crianças e adolescentes podem buscar refúgio nas ruas, talvez, à procura de laços afetivos e escapes para o sofrimento através do uso de álcool e outras drogas que, em muitas situações, podem substituir afetos perdidos em toda trajetória de vida desse sujeito que, em geral, possui vínculos frágeis. Além disso, muito importante refletir sobre o uso de álcool e outras drogas a partir de uma rede de apoio e proteção à criança e ao adolescente como estratégia de acolhimento, cuidado, redução de danos e não como uma guerra contra esse uso, muito menos uma guerra contra as pessoas que fazem o uso.

Novamente, percebe-se a ausência do Estado em relação à falta e/ou escassez de equipamentos especializados no acolhimento para essas crianças e jovens no momento em que se encontram em situação de rua. É urgente e necessária a implantação dos Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua, para Crianças e Adolescentes, conforme previsto nas Diretrizes Nacionais para o Atendimento a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua-( GT Crianças e Adolescentes em Situação de Rua do CONANDA- Res. 173/2015- CONANDA). É do conhecimento de muitos que, diversas pessoas que estão em situação de rua, envolvem-se em atos infracionais, ingressando no Sistema Socioeducativo, e no momento da saída desses espaços, encontram-se também sem preparo e sem projetos de construção de cidadania. Muitos retornam para as ruas e depois novamente para as UAs, sem chances de fortalecimento de possíveis projetos singulares de vida.

O tempo passa para esses adolescentes. João ou Maria estão quase completando 18 anos e sem perspectivas de vida e de autonomia, com vínculos afetivos fragilizados, cuja existência é, em muitos casos, um grande vazio. Processos de construções de ‘não lugares” vão se acumulando, desde que se “entendem por gente” e o Estado não se apresenta como garantidor de direitos, restando-lhes o retorno para as ruas com a possibilidade de cometerem crimes, onde as portas do Sistema Prisional estarão sempre abertas para eles, que se encontram em uma maior situação de vulnerabilidade.

Existem lacunas nas normativas previstas para acolher egressos que saíram das UAs, quando completam dezoito anos. É urgente o Estado se debruçar em possíveis soluções para essa questão, garantindo-lhes direitos básicos, vida digna e abrindo espaços verdadeiros de construções de cidadania.

As portas para pessoas como João e Maria parecem, em alguns momentos, que se abrem, porém, essas pessoas, rodam, rodam e caem sempre em um lugares que não possibilitam a existência digna e feliz desses sujeitos. Provavelmente, os únicos erros de João e Maria em todo esse processo é não corresponder aos ditames de um Estado que não os protege e que não acredita que esses sujeitos precisam ser escutados no que se refere às suas próprias vidas.

É possível viver diante de regras de um Estado que concebe proteção como controle e muitas vezes não consegue enxergar crianças e adolescentes como sujeitos de direito em suas construções de vida?

A mudança de paradigmas no olhar de quem elabora, implementa, executa e fiscaliza políticas públicas garantidoras de direitos para crianças e adolescentes é necessária. Existindo o desejo e o dever de protegê-las, deve-se oferecer caminhos de construções de cidadania e não portas giratórias que não levam a lugar algum, que apenas perpetuam a miséria, a desassistência, a desigualdade e a falta de direitos.

É necessário jovens que sonhem e que possam construir suas vidas, principalmente levando em consideração o fato de que esses jovens precisam elaborar suas perdas e talvez encontrar estratégias que proporcionem trajetórias mais felizes de viver.

As crianças, os adolescentes e os jovens desejam, necessitam e merecem transformações reais e robustas de um Estado que se mostre presente com portas afetuosas, verdadeiras e resolutivas e que estejam, necessariamente, abertas para todes que se encontram sob sua tutela.

A vida só é bem vivida com sonhos, liberdade, autonomia, dignidade e felicidade.

A luta para todes os Joãos e as Marias é a luta por uma sociedade antimanicomial!