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OPRESSÕES

Os problemas das críticas e defesas do “identitarismo”

Considerações, ainda, não verbalizadas pelos mestres brancos da classe média sobre a crise das práticas de contraviolência

Por Juan Michel Montezuma, professor e mestre em História (UFBA)
Ebony
Seja pacífico, seja cortês, obedeça às leis, respeite a todos;
mas se alguém colocar as mãos em você, mande-o para o cemitério
Malcolm X

O presente texto consiste em uma reflexão sobre as tendências interpretativas presentes no debate identitário atualmente. Logo, não há nele a pretensão de qualificar objetivamente o que seria o tão discutido “identitarismo”, através de uma crítica bibliográfica ou da análise de fatos políticos que possivelmente  viriam constituir essa “cultura política”, carecida, ainda hoje, de estudos que possam delimitar melhor a sua cartografia na História do Pensamento Político nacional e internacional. Então, qual é o objetivo dessa redação? Observar o sentido político geral do debate sobre o identitarismo e especular sobre a possível correlação entre dois elementos, aparentemente nucleares, não abordados na crítica que se faz do identitarismo e nem mesmo suas defesas apaixonadas. Elementos que precisam ser diferenciados com igual estranheza, dirimidos com paciência e identificados com critério, pois, defende-se aqui, senão acabam empobrecendo significativamente o debate público sobre agência política das minorias, ou, ao bem da verdade, maiorias marginalizadas em nosso país. Esses elementos são:  as práticas de interdição discursiva e as práticas de contraviolência.

Ambas, as práticas de contraviolência e as práticas de interdição discursiva, estão entrelaçadas na história política devido às disputas em torno do controle da orientação e ação dos sujeitos históricos marginalizados. Poderíamos dizer, em uma consideração de síntese sobre os debates que marcam a trajetória dos sujeitos marginais e seus adversários, que a interdição discursiva é oriunda das práticas de contraviolência. Algo que líderes como Malcolm X, Frantz Fanon, entre outros, reconheciam em suas respectivas filosofias políticas como práticas cujo o substrato era constituído de um conjunto valores, orientações e ritos fundamentados na noção de que o sujeito histórico marginalizado deve reagir, precisa reagir, a multitude de violências que sofre, se quiser, obviamente, romper com sua condição de subalternidade estrutural nos níveis político, econômico e cultural. Sendo assim, em teoria, todo ato de interdição discursiva é resguardado por um fundamento não apenas político, como também ético, não apenas objetivo, mas também subjetivo. Logo, os sujeitos qualificados como marginalizados combatem os  discursos fundamentados em lógicas violentas, pois não só precisam lutar contra eles, como também assumem o compromisso moral de serem pessoas melhores do que aqueles que sob algum ângulo performam, ou corporificam, os agentes responsáveis pela reprodução global da nossa miséria social, noutras palavras, os brancos, héteros, os homens, ou aqueles que performam dentro da normatividade  continuamente reproduzida por tradições culturais onde essa identidade social é protagonista.

Nessa lógica, o ato de interdição discursiva é virtualmente infalível, pois se configura enquanto uma estratégia política indefensável, afinal o indivíduo praticante da interdição discursiva não apenas discorda das suas ideias, ele é, ou se apresenta, como uma pessoa moralmente superior, alguém cuja a ontologia, a razão de ser, sobrepuja, em muitas virtudes de bom cidadão, o sujeito cuja prática está sendo criticada, ou melhor: cancelada, interditada. Quem lança mão da interdição discursiva é insubmisso, porém ao mesmo tempo mais íntegro do que aquele que corporifica a normatividade em sua performance. A distinção é quase ontológica, ou seja verdadeiramente fantástica, bem familiar as histórias de revista em quadrinho de super heróis mutantes, tão populares entre a classe média. A patologização é tão grande que podemos encontrar aos montes por aí, tanto na esquerda quanto direito, aqueles que acreditam piamente serem o “homo superior” por conta dos predicativos do seu grupo racial, classe ou outra forma de contingente político. Evidentemente, precisamos investir nos cursos de Psicologia, pois não há terapeutas para tantos super-humanos.

De qualquer forma, há um problema mais óbvio e mais sério do que esse, uma limitação incontornável, na prática de interdição discursiva que é a qualidade que ela compartilha com toda e qualquer prática política: ela está em disputa na sociedade. E o que isso quer dizer?

A interdição discursiva não é uma técnica de enunciação de problemas de uso exclusivo dos virtuosos, e demasiadamente idealizados, combatentes das desigualdades sociais sejam eles pretos, brancos, amarelos, indígenas e por aí vai. Ela não é uma propriedade biológica dos corpos e mentes insubmissas em relação aos processos de disciplinarização e os mecanismos sociais de controle comportamental. Não, a interdição discursiva é apenas, pasmem,  uma forma de construção de um discurso contestatório cuja estética, conteúdo e reprodução social pode ser historicamente cartografada. Noutras palavras, devemos e podemos identificar o lugar de raça e classe, entre outros predicativos igualmente importantes, que conformam as condições materiais do desenvolvimento dessas práticas de interdição discursiva. Não podemos naturalizá-las, se cairmos nisso, seremos derrotados, todos sem exceção, juntos, de mãos dadas ou não.

E, justamente por isso, que necessitamos diferenciar melhor as práticas de interdição discursiva das práticas de contraviolência empregadas por atores sociais marginais. Identificando quais instâncias da vida social são responsáveis por lhe dar legitimidade. Noutros termos, devemos questionar: essas práticas de interdição discursiva, empregadas por indivíduo x, y ou z,  são oriundas de instâncias da vida privada? Apenas da moral do indivíduo, ou seja da sua ética particular, dos seus anseios, angústias, ambições, ressentimentos, omissões, ódios e amores? Ou são oriundas de sua vida coletiva? Da insegurança econômica sua e de seus pares, da falta de autonomia política sua e de seus pares, da inexistência, para todos, de um horizonte de possibilidades dentro do conjunto social para viver em plenitude de direitos. Noutros termos, dos predicativos que lhe une com os seus pares, mobilizando-lhe para a luta em nome de uma causa pública? Que é imperativa a todos?

Essa diferenciação é necessária e  ainda não está sendo feita por grande parte dos interlocutores no atual debate sobre identitarismo. Por qual razão isso ocorre? Ou melhor, com qual hipótese podemos trabalhar para tentar explicar esse problema nas críticas e defesas do “identitarismo”?

O debate atual sobre o identitarismo tem seu mote no desgaste das práticas de interdição discursiva. Esse desgaste, por sua vez, é causado pela própria consolidação das práticas de interdição discursiva como via para construção de pautas dentro do debate público. As práticas de interdição discursiva se adequaram com perfectibilidade à indústria cultural, sendo catalisadas em sua difusão pelo espaço social digital, levando à formação de processos de socialização, lugares, grupos, onde a interação social está fundamentada em práticas de interdição discursiva, ou seja, indivíduos passam a congregar não por conta daquilo que concordam, mas sim por conta daquilo que não toleram, não admitem, interditam. Isso propiciou uma virada epistemológica na discussão política, que embora ainda fizesse referências em formas de narrativas pretéritas às “culturas políticas” em prol da defesa da coletividade, passava agora a estar fundamentada no mais puro, diluído e consumível nominalismo. 

Logo, toda possível universalidade das pautas públicas, de fato, se torna um conceito abstrato, as estruturas, as conjunturas, se tornam secundárias nas tomadas de posição, pois todo enunciado político agora é produzido pelo indivíduo em seu domínio particular, ou seja, são enunciados políticos tautológicos, quase que narcísicos, porque sempre dizem respeito ao que esse indivíduo é. Onde ele está, o que faz, quem são seus pares,  sua posição na luta de classes, na configuração institucional do patriarcalismo, do racismo, da homofobia, da transfobia, nada disso mais importa, ou melhor, é secundário, é pretérito, pois o que existe é apenas a identidade em ciclo perpétuo de auto afirmação,, sem projeto, é claro, pois está presa num eterno tempo presente. Em grosso resumo, o “identitarismo” do indivíduo aí seria um filho mimado do presentismo no qual o próprio indivíduo se encontra no invólucro das redes sociais, ou seja,  um produto das formas coletivas de apreensão do tempo social que  foram se tornando hegemônicas desde a segunda metade do século XX e agora se consolidaram como norma, mediante o espaço nuclear que os espaços digitais dirigidos por corporações privadas, que mercantilizar esse tipo de interação, possuem no debate público.

Tudo isso em conjunto corporifica os problemas que se qualificam hoje em dia vagamente como “identitarismo”, tal como se o mesmo fosse uma nova corrente de pensamento, como se algo que nega toda e qualquer universalidade, pudesse ter  algum projeto  além do que a própria negação, fragmentação e caos político que as empresas que o vendem propagam. Noutras palavras, como se as práticas identitárias fossem uma forma política do negacionismo propagado não por um bloco político hegemônico, porém sim por grupos, na verdade consumidores dessa forma de produção da política, que são acusados de estar predando todas as “grandes” tradições políticas que nos trouxeram até esse “grande” momento da história humana.  Há, obviamente, um erro de análise aí, que confunde a responsabilidade de agentes reprodutores, meros consumidores, da forma identitária de fazer política, dos agentes financiadores, portanto elaboradores, em última análise responsáveis, pois são donos dos empreendimentos que transformaram as práticas de interdição discursiva, oriundas da práticas de contraviolência, em vias de mercantilização de identidades socioculturais. Estão em dúvida disso? Basta entrar nas redes sociais e observar com o mínimo de criticidade os padrões de interação, como eles estão estruturados e qual é o fim mercadológico, político e cultural disso. Vamos agora a outro ponto.

Entretanto, essa crítica ao identitarismo também está em disputa, novamente devido à própria escala, quase que naturalização promovida pela indústria cultural de massa, das práticas de interdição discursiva hoje em dia. A corrente mais vitoriosa nesse debate, pois consegue concatenar a animosidade tanto da esquerda quanto da direita contra as práticas de interdição discursiva, denuncia o irracionalismo em interditar um discurso político apenas por conta dos predicativos de raça, classe ou gênero, argumentando que a interdição, ou cultura do cancelamento, é uma conduta escusa, covarde e idiota, ou seja particularista, de segmentos que buscam compensar a sua falta de capital cultural,  necessário para a realização de um debate justo, com desonestidade intelectual. E, em certa medida, há uma meia verdade aí, pois, não podemos ser ingênuos, existe, de fato,  muita gente desonesta, tanto na esquerda quanto, muito mais, na direita, fazendo uso indiscriminado de práticas de interdição discursiva, a fim de fidelizar seus públicos, pulverizar moralmente adversários políticos e levar agendas,  com discursos e performances, no mínimo questionáveis, para frente, travestidas de empreendimentos no mercado de bens simbólicos de lutas em prol justiça social.

De fato, não podemos nos enganar, a força dessa argumentação vem justamente do estado de anomia em que as práticas de interdição discursiva deixaram os movimentos sociais. Cada vez mais isolados, pois  extremamente dependentes da interdição discursiva para se afirmarem,  especialmente no espaço digital ou universitário, por exemplo, esses grupos não conseguem construir, sejam eles reformistas ou revolucionários, os caminhos, os acordos, e demais capitais necessários para o avanço das suas causas.  E, isso é extremamente perigoso, porque essas organizações não deixam de ser espaços de congregação de diferentes tipos de atores sociais que indubitavelmente corporificam a tarefa histórica da emancipação das classes subalternas. Ainda sim, a crítica ao identitarismo dentro dessas organizações ou instituições fundamentais, como o partido e a universidade, segue o seu curso, tornando-se cada vez mais forte. Convertendo-se em tópos discursivo comum entre diversos setores da sociedade, inclusive, sendo percebida como via de ataque certeiro para os setores mais conservadores que desejam ver não apenas a interdição discursiva, como uma técnica de produção de enunciado exclusivamente sua, ou seja como um capital exclusivo do mais abjeto bolsonarismo, mais também buscam suprimir qualquer doutrina de contraviolência desenvolvida e aplicada por atores sociais minoritários. E se essa tendência continuar,  podemos até dizer que a extrema-direita capitaneará, se já não está capitaneando, uma revolução na condução do debate público cujo impacto ameaça a existência político-institucional, tal como conhecemos,  de espaços caros ao campo progressista, como a Universidade, novamente, enquanto  exemplo caro.

Do outro lado, na defesa do identitarismo, onde ficam as camisas floridas, os bons amigos dos pobres e todas as cores do arco-íris, que se vê de todos  os lugares do lindo mundo do imaginário político da esquerda, menos da favela, os intelectuais de esquerda, pouco maliciosos ou apenas cansados de não terem nada de concreto para defender, ainda sim bem intencionados e em sua grande maioria temerosos de censurar o seu próprio público, mesmo quando esse nem lê o que eles escrevem, acabam formulando o problema da crítica identitária a partir de uma tese falaciosa: defender as práticas de interdição discursiva representa uma defesa inapelável da integridade dos atores sociais minoritários. 

Ao fazer isso, confirmam o caráter problemático, pois personalista, das interdições discursivas como estratégias  políticas idealmente infalíveis. Fazem isso, porque são crentes que essa posição revela uma superioridade moral, algo que é, eles parecem crer em via de assim performarem,  algo oriundo da ordem ontológica. Comportam-se como Jesus, em uma mimese certamente irrefletida, mas em alguma medida harmônica com ethos cultural do Brasil, combatendo os poderosos em nome da absolvição das misérias, também dos pecados inauditos,  que os condenados da Terra podem vir a cometer. Exercício muito nobre, porém inútil, porque não endereça o problema das práticas de interdição discursiva de frente, na verdade, lhe tangencia muito cuidadosamente ao sabor da classe média de esquerda, buscando justificar, de maneira liberalesca, o direito de todos de enunciarem seus problemas políticos como quiserem, a partir de uma narrativa pretérita sobre o que a esfera das lutas no mundo político um dia foi ou sobre o que ela deveria ser hoje. Acabam realizando um gesto paradoxal de defesa do presente estado dos atores sociais minoritários, porque não levam em consideração nem a diacronia desses atores, que não conhecem de fato e nem sequer leem o que escrevem, no movimento do passado para o presente, e tampouco buscam  lhes defender o futuro. E assim parte da esquerda cai em discursos reativos, irrefletidos e fadados à derrota já na sua elaboração. E batem no peito, choram, protagonizam lutas fratricidas, acusam seus pares de transfobia, silenciam convenientemente, aumentando assim seu estado de anomia, de degeneração, de rejeição por aquilo que as classes populares, em sua grande maioria, infelizmente é. Um quadro triste, de fato, onde a parte da esquerda revela suas limitações históricas ao deixarem a posição de classe que consideram no mercado de postos para trabalhadores letrados falar mais alto do que a coerência e a coragem para defender a justeza das ideias até o fim.

Em última instância, o problema que emerge dessas tendências interpretativas sobre identitarismo, sejam elas críticas  ou apologéticas, parece ser, por enquanto, o mesmo: Não há distinção entre as práticas de interdição discursiva, tal como são realizadas hoje, e as práticas de contraviolência das quais elas são oriundas no transcorrer da História política. E a inexistência, por enquanto, dessa distinção por parte da maioria dos interlocutores, produzirá, ou no mínimo contribuirá, talvez, para efeitos geracionais catastróficos ao debate político onde o vasto, fragmentado e sempre tão confuso campo progressista, busca ser um interlocutor relevante. Na média duração, podemos estar caminhando para um cenário cada vez mais reacionário, onde os problemas causados pelas práticas de interdição discursiva levaram à crise das práticas de contraviolência. Tornando cancelável, de maneira muito mais profunda e visceral, toda e qualquer forma de resposta às inúmeras violências que se abatem sobre os grupos subalternos.

Por fim,  por que a questão abordada no presente texto, não parece, ainda, ter sido discutida pelos mestres da classe média branca, ou de espírito branco ? Podemos duvidar que a causa disso seja desonestidade intelectual da maioria deles, afinal acusá-los disso seria cair justamente no problema que rotineiramente atribuem a crítica identitária, ou que acabam performando de maneira personalista ao tentar defendê-la. Portanto, podemos simplesmente especular que o fato  deles não dirimirem bem o que é uma prática de interdição discursiva, e seus problemas, das práticas de contraviolência, seja oriundo os predicativos que constituem o seu “locus de enunciação política”. Ou em termos mais simples, sua posição de classe e o grupo racial ao qual pertencem. Algo  que é indubitavelmente contingente, não se constituído assim como uma falha intrínseca a sua elaboração teórica,  mas, ainda sim, algo do qual precisamos nos lembrar, ficando atentos e fortes. Afinal, quando os brancos discutem sobre o certo e errado, bem e o mal, aceitável ou inaceitável, o que devemos ou não combater, como devemos ou não nos portar, no mundo do poder, somos nós, os não brancos, que, quase sempre, saímos perdendo. Até, porque, apesar das boas intenções, os dilemas dos brancos,  apesar de dialogarem conosco, por conta da humanidade que nos une, nem sempre são os mesmos que os nossos, especialmente quando eles implicam na disputa por lugares institucionais privilegiados em uma sociedade capitalista.