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Ainda sobre as eleições de 2024: que derrota sofremos? Qual caminho devemos seguir?

Marco Pestana, membro da Coordenação Nacional da Resistência-PSOL, de Niterói (RJ)

Desde a abertura das urnas nas eleições municipais, o amplo campo da esquerda tem estado às voltas com debates acerca dos resultados do pleito e seus significados. É verdade que sob o trato de mãos habilidosas, os números podem frequentemente ser manipulados para sustentar percepções bastante divergentes sobre a realidade. Nesse caso, entretanto, parece não haver ilusionismo capaz de ocultar a derrota do conjunto da esquerda.

Em termos do número de prefeituras conquistadas, MDB e PSD, agremiações tipicamente vinculadas ao fisiologismo de direita, lideraram o páreo, ultrapassando a casa dos 800 governos municipais. Na sequência, PP, União Brasil, PL e Republicanos engrossaram o coro da direita em suas múltiplas facetas (conservadora, bolsonarista, neopentecostal, etc). Alcançando 252 prefeituras, o PT ocupou apenas a nona posição nessa lista, ao passo que o PSOL não elegeu nenhum prefeito. Alterando-se o critério de observação (prefeitos eleitos em capitais ou entre as 103 cidades com mais de 200 mil eleitores, vereadores eleitos, números totais de votos recebidos, total da população que governará), o quadro mantém-se essencialmente o mesmo, com pequenas variações.

A constatação de uma derrota, no entanto, constitui apenas o primeiro passo para que se possa almejar superá-la. Na sequência de sua constatação é preciso compreender sua natureza. No presente texto, defendo a hipótese de que o recente resultado não significou uma inflexão qualitativa no processo político brasileiro tal como esse tem se desenrolado desde 2015-6, mas, sim, mais um passo na mesma e inquietante direção.

A ofensiva burguesa e o tempo das transformações estruturais

Fruto da articulação de setores do Judiciário, da grande mídia empresarial, do Congresso, das Forças Armadas e das principais frações do capital atuantes no país, o golpe de 2015-16 desencadeou uma profunda ofensiva burguesa com o objetivo de alterar o padrão de acumulação capitalista no Brasil, em resposta ao aprofundamento crise internacional iniciada em 2007-8. Em linhas gerais, o novo modelo se fundamenta na agudização da dependência externa do país e na radicalização dos processos de expropriação e exploração das classes subalternas, impondo a elas condições de vida e trabalho mais duras.

Em termos concretos, esse projeto se expressou pelas contrarreformas trabalhista (Temer) e previdenciária (Bolsonaro), pela aceleração das privatizações de bens e recursos públicos, pelo avanço do agronegócio sobre os diversos biomas do país e pela imposição de controles neoliberais mais rígidos ao orçamento público, sobretudo, a partir do chamado Teto de Gastos. Como resultado, não apenas as relações diretas entre as classes assumiram uma dinâmica mais desigual, como o Estado reforçou seu papel como dinamizador da acumulação, em detrimento de sua faceta, já historicamente limitada, de organizador da proteção social.

Para que tal projeto fosse viabilizado, era fundamental que as forças da esquerda ampla em seu conjunto fossem virtualmente eliminadas da disputa política, o que se buscou garantir tanto pela própria operação do golpe, quanto pela prisão de Lula. Na perseguição desse objetivo, as representações políticas burguesas tradicionais (com PSDB e PMDB à frente) lançaram mão do apoio da extrema-direita, até então marginalizada. As expectativas de contenção desse setor após o início da ofensiva se viram rapidamente frustradas e a extrema-direita não apenas ampliou seu espaço, como alcançou a presidência nas eleições de 2018, por meio do neofascista Jair Bolsonaro. Essas operações políticas não se desdobraram sem oposição das organizações e movimentos da esquerda – cabendo destacar a resistência ao golpe, a greve geral de 2017 e o EleNão de 2018, dentre outras iniciativas –, o que modulou a dinâmica do processo, mas não alterou seu sentido.

Ao se estabelecer como uma força política normalizada no cenário nacional, a extrema-direita logrou deslocar para a direita a média da opinião pública e, consequentemente, o próprio sistema partidária. Mais do que isso, sua ação política afirma a violência como chave de mediação das relações sociais e políticas no país, explicitando e fortalecendo um aspecto historicamente subjacente à dominação social no Brasil. Sem dúvida, o exemplo mais visível desse processo é oferecido pelo rápido crescimento das milícias cariocas tanto em sua dimensão de controle territorial armado direto, quanto em sua trajetória de afirmação em espaços institucionais de poder.

O governo Lula III e o tempo dos rearranjos moleculares

A eleição de Lula em 2022 inaugura uma nova temporalidade nesse processo, sem romper com suas determinações fundamentais, mas inserindo algumas mediações importantes. O caráter excessivamente caótico do governo Bolsonaro (expresso, sobretudo, em sua gestão da resposta à pandemia de Covid-19) deslocou um setor minoritário da burguesia em direção à composição da frente ampla em torno de Lula, tendo o vice-presidente Geraldo Alckmin como seu principal fiador político.

Após o pleito, a estratégia adotada foi reproduzir essa composição de chapa no governo, buscando reeditar a dinâmica conciliatória que caracterizou seus dois primeiros mandatos. Essa orientação se traduziu na opção por atuar de acordo com a moldura geral estabelecida pelo golpe de 2015-16, não questionando as contrarreformas estruturais levadas a cabo, nem enfrentando diretamente a extrema-direita e os setores golpistas no plano ideológico.

A expectativa é de que políticas públicas setoriais e/ou focalizadas ampliem a popularidade do governo junto a segmentos específicos da população. Entretanto, mesmo essa tentativa de reedição rebaixada do pacto social vigente no período em 2003-2013 tem-se mostrado problemática, uma vez que as condições econômicas internacionais são mais desfavoráveis e uma ampla fatia do orçamento federal está sob controle do Congresso, via emendas parlamentares – o que tem imposto ao governo uma dinâmica de tipo semiparlamentarista, conforme indicado por numerosos analistas.

A fragilidade do governo e a relativa inocuidade de suas ações deve, ainda, ser explicada por um terceiro e decisivo fator: a contínua ação da extrema-direita como força política e social. Com efeito, embora momentaneamente desalojada do governo federal, a extrema-direita mantém, além de postos em outras esferas de governo, uma significativa influência sobre um amplo setor da população.

A fragilidade do governo e a relativa inocuidade de suas ações deve, ainda, ser explicada por um terceiro e decisivo fator: a contínua ação da extrema-direita como força política e social. Com efeito, embora momentaneamente desalojada do governo federal, a extrema-direita mantém, além de postos em outras esferas de governo, uma significativa influência sobre um amplo setor da população.

A partir de uma vasta gama de organizações de base – composta por clubes de atiradores, igrejas fundamentalistas neopentecostais e outros espaços –, associada a uma articulada rede de produção e difusão de desinformação por meios virtuais, sua propaganda ideológica encontra caminho fértil para reforçar seu enraizamento e gerar capacidade de mobilização. Tal sucesso nutre-se, ainda, do esforço de sua elaboração ideológica para oferecer respostas diretas aos problemas que emergem da vida concreta de amplos setores da população: assim, por exemplo, à uma classe trabalhadora crescentemente precarizada e atomizada no mercado de trabalho, é oferecida a (aparente) saída da ascensão individual por meio do empreendedorismo, reforçando a lógica competitiva que caracteriza a sociabilidade capitalista. Não à toa, portanto, a extrema-direita se configura, atualmente, como a força política mais dinâmica do país, sendo capaz de pautar a parte mais significativa do debate público. Tal dinâmica, por sua vez, alimenta-se, também, do fortalecimento desse campo político a nível internacional nos últimos anos, conforme reafirmado pela ampla vitória de Donald Trump nas eleições dos EUA.

As eleições de 2024 e o tempo da preparação do próximo embate

As eleições de 2024 foram disputadas nos marcos de algumas mudanças institucionais que impactaram seus resultados. Em primeiro lugar as chamadas “emendas pix”, transferidas diretamente de parlamentares para prefeitos, impulsionaram um elevadíssimo índice de reeleição dos governos municipais, considerando-se o brutal aumento do montante de verbas disponível para emendas parlamentares ao longo dos últimos dez anos. Em segundo lugar, o fundo eleitoral cresceu 145% em relação a 2020, sendo distribuído para os partidos de acordo com o número de parlamentares eleitos em 2022. Incidindo sobre um cenário em que os poderes municipal, estadual e federal traziam composições resultantes da ofensiva burguesa iniciada em 2015-6, esses fatores tiveram um importante papel na reprodução de um cenário de predominância do amplo campo da direita.

Em função da variedade e da fluidez ideológica dos partidos brasileiros, não é possível indicar precisamente em que medida a vitória eleitoral desse campo se divide entre as diversas forças que o compõem. Não obstante essa dificuldade, alguns fatores permitem afirmar que a extrema-direita ocupou um espaço significativo. Em especial, o ótimo desempenho do PL sinaliza nessa direção, uma vez que foi o partido que aglutinou a maioria das candidaturas diretamente identificadas com o bolsonarismo (diferentemente de 2020, quando o fracasso na criação da Aliança Brasil dispersou suas forças por numerosos partidos). Para além disso, outros candidatos de perfil inequivocamente ligado à extrema-direita também obtiveram bons resultados por outras legendas.

Tal demonstração de força decorre do acúmulo de condições favoráveis ao desenvolvimento da extrema-direita nos últimos anos, seja do ponto de vista objetivo (com as classes subalternas crescentemente precarizadas, atomizadas, acuadas e afastadas da experiência de direitos substantivos), seja do ponto de vista subjetivo (com uma incessante propaganda ideológica articulada em múltiplos espaços e formatos). Nesse cenário, a inelegibilidade de Bolsonaro colocou em marcha uma disputa no interior do próprio campo da direita pela sua liderança e, principalmente, pela posição de seu potencial representante prioritário na eleição para a presidência em 2026.

No que concerne às principais frações do capital atuante no Brasil, o projeto para a ocupação desse espaço passa pela tentativa de construção de uma candidatura alinhada ao grosso do arcabouço ideológico da extrema-direita, mas dotada de uma dinâmica menos disruptiva. Nesse sentido, suas fichas estão majoritariamente depositadas no governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, mas a emergência de novos postulantes não deve ser descartada.

No amplo campo da esquerda, por outro lado, predominou a dificuldade de mobilizar uma fatia mais expressiva do eleitorado e, mesmo, de empolgar decididamente sua base social mais tradicional, indicando tanto o predomínio de um sentimento generalizado de derrota, quanto o enraizamento da lógica institucional e desmobilizadora.

No amplo campo da esquerda, por outro lado, predominou a dificuldade de mobilizar uma fatia mais expressiva do eleitorado e, mesmo, de empolgar decididamente sua base social mais tradicional, indicando tanto o predomínio de um sentimento generalizado de derrota, quanto o enraizamento da lógica institucional e desmobilizadora. Lula, o principal cabo eleitoral potencial, manteve uma postura de evidente distanciamento em relação ao pleito, com pequenas exceções. Sua aposta foi a de evitar melindrar seus aliados do chamado “centrão”, que compõem o governo, na expectativa de reeditar em 2026 a frente ampla que sustentou sua candidatura em 2022.

Trata-se, evidentemente, de aposta bastante arriscada, considerando-se a natureza do “centrão”: um profundo pântano político, caracterizado por altas doses de fisiologismo e por posições ideológicas essencialmente conservadoras. Como expressão mais acabada desse bloco, o PSD de Gilberto Kassab, que elegeu o maior número de prefeitos do país, compõe tanto o ministério de Lula, quanto o secretariado de Tarcísio em São Paulo. O resultado dessa postura foi uma recomposição do PT em relação ao desempenho de 2020 (vitórias em 182 municípios), mas as 252 prefeituras obtidas estão muito distantes das 635 conquistadas em 2012.

O PSOL, por sua vez, teve ligeira queda no número de vereadores eleitos (ainda que mantendo no mesmo patamar sua presença nos grandes centros), não conseguiu levar Edmilson Rodrigues, prefeito de Belém, ao segundo turno e foi derrotado na duríssima disputa de São Paulo, com Guilherme Boulos demonstrando força, mas alcançando o mesmo percentual de votos alcançado em 2020, a despeito de algumas concessões programáticas. Tradicionalmente associado às candidaturas dos grupos oprimidos (mulheres, negras/os, população LGBTQIA+), o partido também viu outras agremiações elegerem parlamentares com esse perfil, como o próprio PT e, mesmo, setores da direita tradicional que recorrem à noção de representatividade para esvaziar o programa de combate às opressões.

O resultado eleitoral, portanto, não alterou no fundamental a dinâmica que vem se reproduzindo desde o golpe de 2015-6 e expectativas muito diversas do que as urnas revelaram, sem dúvida, se lastrearam em avaliações equivocadas do significado da eleição de Lula em 2022. Entretanto, na preparação do tabuleiro para as eleições de 2026 há sinais de que o quadro desfavorável pode se aprofundar, não estando excluída a hipótese de uma inflexão terrivelmente prejudicial às classes subalternas. Em caso de retorno da extrema-direita ao governo federal, as consequências possivelmente serão a aceleração dos ataques às condições de vida e trabalho e o aprofundamento do fechamento do espaço para o dissenso político.

Essa possibilidade, embora calcada em condições objetivas altamente desfavoráveis, alimenta-se, também, do predomínio de duas posturas marcadamente antagônicas. Enquanto o campo da direita, sob a contínua pressão do seu setor mais extremado, aposta na manutenção do cerco ao governo, radicalizando a disputa ideológica, o campo da esquerda, dirigido por Lula e pelo PT, segue apostando em caminhos institucionais, mantendo uma postura quietista e se abstendo de conduzir um efetivo enfrentamento político e ideológico.

Diante do abismo, o que fazer?

A vitória de Lula em 2022, ao impedir a continuidade de um governo de extrema-direita liderado por um neofascista, foi um instrumento fundamental para bloquear o aprofundamento da implementação do projeto do golpe de 2015-16. Entretanto, vitórias eleitorais não bastam para inverter o sentido dos processos políticos que se desenrolam simultaneamente nos espaços institucionais e extrainstitucionais. Nas atuais circunstâncias, vitórias eleitorais, por si sós, apenas nos permitem ganhar tempo.

É certo que uma eventual mudança de postura de Lula e do governo teriam um impacto muito positivo na correlação de forças. Nesse sentido, um salto de qualidade poderia resultar da articulação da adoção de medidas de enfrentamento a alguns dos principais dispositivos do poder burguês (como o arcabouço fiscal, que bloqueia os investimentos efetivos em serviços públicos), à implementação de políticas públicas capazes de impactar de forma mais profunda a vida cotidiana de amplos setores das classes subalternas (como a criação de um auxílio permanente a todos os trabalhadores informais) e ao desencadeamento de uma forte campanha ideológica.

Entretanto, não há nenhuma indicação concreta de que esse venha a ser o rumo adotado (pelo contrário, o que existe é a possibilidade de que o governo apresente um pacote de redução de direitos sociais no próximo período) e é preciso lembrar que mesmo Lula não tem os meios e a força necessárias para alterar isoladamente a situação. Com efeito, o estabelecimento de um bloqueio mais efetivo e duradouro ao projeto do golpe de 2015-16 depende, necessariamente, da crescente organização e mobilização das classes subalternas.

Tal esquerda deve, evidentemente, cerrar fileiras em torno da defesa do governo Lula contra qualquer ataque da direita e dos golpistas sem, no entanto, abandonar sua independência política, que é financeira, organizativa e programática. Evitando o sectarismo de tipo esquerdista que enxerga o governo como principal inimigo a ser combatido na atual conjuntura, é preciso ultrapassar os limites impostos pela sua composição e sua estratégia, produzindo uma força social capaz, inclusive, de pressionar o próprio governo para a esquerda.

A construção dessa organização e dessa mobilização constitui a tarefa fundamental da esquerda socialista nessa quadra histórica. Tal esquerda deve, evidentemente, cerrar fileiras em torno da defesa do governo Lula contra qualquer ataque da direita e dos golpistas sem, no entanto, abandonar sua independência política, que é financeira, organizativa e programática. Evitando o sectarismo de tipo esquerdista que enxerga o governo como principal inimigo a ser combatido na atual conjuntura, é preciso ultrapassar os limites impostos pela sua composição e sua estratégia, produzindo uma força social capaz, inclusive, de pressionar o próprio governo para a esquerda.

A organização das classes subalternas a partir de seus espaços de moradia, trabalho, lazer, etc precisa ser encarada como um incontornável ponto de partida. É a partir de uma vinculação cotidiana, com uma experiência compartilhada, que é possível avançar na construção de iniciativas que articulem amplos setores e se choquem com as mais duras e sentidas expressões da dominação social burguesa, em termos de condições de trabalho, opressões racial e de gênero, devastação ambiental, etc. Nesse sentido, um exemplo a ser observado com atenção é o do movimento Vida Além do Trabalho (VAT), encabeçado por Rick Azevedo, vereador eleito pelo PSOL no Rio de Janeiro.

Tais iniciativas, por sua vez, precisam encontrar a sua amarração em uma permanente campanha ideológica que apresente tanto uma crítica de fundo à brutalidade constitutiva da sociabilidade do capital, quanto alternativas de organização societária pautadas em outras relações e valores. Se há alguma esperança de escaparmos do atoleiro no qual estamos chafurdando, ela reside na confluência de correta localização política, fortalecimento da força política e social das classes subalternas, ousadia programática e construção de novos horizontes.