O sindicalismo brasileiro e seu contexto de crise recente
No último período, o sindicalismo brasileiro viveu tempos adversos. Os trabalhadores têm se tornado mais refratários ao modelo tradicional de representação em torno da organização sindical, especialmente os jovens. E os sindicatos têm tido dificuldades de dialogar com suas bases. Outros espaços coletivos de apoio, como movimentos sociais identitários e a própria igreja têm se destacado. O recente esvaziamento do ato de 1º de maio das centrais sindicais com a presença do próprio presidente Lula é um termômetro disso. Por outro lado, além da fragmentação dos trabalhadores, cresce o ideário de cariz neoliberal e as saídas individualistas, como a busca pelo empreendedorismo. Transformações ocorridas nas relações de trabalho e na própria gestão das empresas têm contribuído com esse quadro. Vide os vínculos precários do trabalho por aplicativos e plataformas digitais, a chamada uberização do trabalho, para citarmos um exemplo.
Inúmeros autores já se debruçaram acerca do fenômeno do enfraquecimento do sindicalismo fordista nos países centrais (Pialoux; Beaud, 2009; Bihr, 1998). É a própria Organização Internacional do Trabalho que reconhece o enfraquecimento dos sindicatos na contemporaneidade (OIT, 2019). Um dos temas que expressam sintomas da crise contemporânea do sindicalismo é a taxa de densidade sindical (absoluta e relativa) em quase todo o globo. No caso brasileiro, se observarmos os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2023, a taxa de sindicalização entre a população ocupada despencou de 12,5% para 8,4%, comparando-se os anos de 2018 a 2023. Trata-se do menor patamar histórico (IBGE 2024)1.
Nesse ideário, a individualização e a fragmentação na base dos trabalhadores imperam. Os sindicatos em geral tiveram profundas dificuldades (não obstante valorosos esforços em alguns casos) e, porque não dizer, incapacidade de ação unitária para resistirem diante das reformas neoliberais dos últimos anos (Marcelino; Galvão, 2020). Com a queda nas taxas de sindicalização e o fim da arrecadação do imposto sindical – cuja queda foi da ordem de quase 90% se comparado 2018 com 2017 (Dieese, 2018) – muitos sindicatos se viram sem bases de funcionamento.
No caso da filiação sindical no Brasil, observamos alguns fenômenos explicativos em curso que atuam de modo combinado: redução da taxa de formalização (proporção de assalariados com carteira na população ocupada); complexificação do processo de reestruturação produtiva, redução da participação da indústria na economia nacional e do emprego concentrado na área industrial em relação ao emprego total – especialmente os setores de serviços e agricultura (isto é, crise do sindicalismo industrial, nos termos de Visser [1993]) –; dificuldade de filiação de jovens entrantes no mercado de trabalho (sem referência, identidade ou pertencimento ao mundo sindical); aumento do desemprego e precarização laboral (trabalho intermitente, informalidade, formas diferenciadas de trabalho por conta própria, terceirização e rotatividade), avanço da pejotização (contratação desregulamentada de Pessoa Jurídica) e de micro empreendedores individuais (MEI) – cujas relações contratuais camuflam o vínculo de relações de emprego – e distintas modalidades de trabalhadores sob a individualização e a invisibilização de relações trabalhistas, como os trabalhados uberizados e mediados por plataformas digitais. “A individualização, a invisibilização e a eliminação completa dos direitos do trabalho enfeixam o sonho dourado do capital agora que o mundo digital, online, robotizado e automatizado pode conviver com o trabalho aviltado, desvertebrado, desorganizado, isolado, fragmentado e fraturado” (Antunes, 2022, p.27). Somado a tal evidente processo de avanço da individualização, fragmentação e despolitização das relações econômicas e da sociabilidade neoliberal (como e o caso da ideologia do empreendedorismo), adentramos a uma ofensiva reacionária (Torres, 2020). Diante da crise e da queda da densidade sindical, acrescido de mudanças estruturais nas bases de sustentação dos sindicatos no Brasil, é possível apontarmos reflexos de atuação defensiva na arena sindical. Tomemos alguns exemplos a seguir.
No âmbito das relações de classes, observamos maior restrição de acesso à Justiça do Trabalho, após as dificuldades provenientes da Reforma Trabalhista (Lei nº14.367/2017) para que o trabalhador recorra à Justiça do Trabalho (tornando algo oneroso para o empregado, com cobranças de custas processuais e pagamento de custas de provas e honorários advocatícios para a parte vencedora). Entre 2017 e 2020, para se ter um exemplo empírico, a quantidade de ações trabalhistas no Brasil declinou 56,2%, caindo de quase 2,8 milhões de ajuizamentos ao ano para pouco mais de 1,2 milhão. Ou seja, o acesso do trabalhador à Justiça ficou mais restrito e custoso (Souto Maior; Severo, 2017).
Em síntese, o modelo legislado de relações de trabalho foi afetado com a reforma trabalhista de 2017. De 2018 para cá, o terreno da atuação sindical demonstrou-se intensamente defensivo, isto é, lutas sindicais processadas em situação política adversa (Melleiro, 2022). O próprio setor mais dinâmico e resistente neste período, o funcionalismo público, passou por enormes dificuldades.
Em suma, o cenário econômico e político nos últimos anos no Brasil foi de profundo retrocesso nas pautas democráticas e avanço das pautas de retirada de direitos, num quadro de crise econômica e profunda inflação, sem mencionarmos a tragédia de ausência de gestão pública durante a pandemia (Fiocruz, 2021). Afinal, o trabalho remoto em tempos pandêmicos trouxe inúmeros desafios para a mobilização dos sindicatos junto aos seus trabalhadores. Isso para não mencionarmos a dupla maldade Temer-Bolsonaro. Tudo isso reforça nossa defesa da existência de um quadro bastante desfavorável para o sindicalismo brasileiro.
Até o término do governo Bolsonaro, em 2022, pode-se dizer que tivemos predomínio de um quadro conjuntural de situação reacionária e de lutas defensivas para o sindicalismo. O desafio será, doravante, observarmos as mobilizações sindicais de 2023, primeiro ano do governo de Frente Ampla capitaneado pelo Partido dos Trabalhadores, tendo como presidente Lula da Silva. O que nos dizem os dados oriundos das greves e das lutas sindicais ocorridas durante o ano de 2023?
O registro de greves no primeiro ano do Governo Lula: seria cedo para se falar em retomada de um ciclo grevista no Brasil?
Se entre 1996 e 2002 ocorreu uma relativa queda do movimento grevista no Brasil, de 2003 a 2012 observamos uma retomada do ciclo grevista no país, com crescimento extraordinário de 2013 a 2016 – vale notar que este período foi contemplado o período dos governos de conciliação de classes do Partido dos Trabalhadores, que vai até 2016. Com o golpe de 2016, uma nova situação se impõe às lutas sociais do trabalho. De 2017 a 2020 há nova queda exponencial do registro de greves, apenas com retomada crescente de 2021 a 2023, ainda que não no mesmo patamar. Se tomarmos o ano de 2023, o primeiro ano do governo Lula III, como atuaram os sindicatos em termos de greves em âmbito nacional?
Primeiramente, importante registrar que em 2023 os sindicatos tiveram menos restrições de atuação e maior abertura de negociação direta com o governo do que comparado aos dois governos anteriores. Visualizando o panorama das greves no Brasil ocorridas em 2023, com base no levantamento realizado pelo SAG-DIEESE (2024), foram registradas 1132 greves, sendo mais da metade promovidas pelos trabalhadores do funcionalismo público (51%) – as quais corresponderam a 65% das horas paradas. Trata-se de uma elevação em 6,08% se comparado ao registro de greves em 2022, que por sua vez foi maior do que 2021 e 2020.
Em um primeiro olhar, destaca-se o fato de que a maioria das greves do ano passado ocorreu na esfera pública do trabalho, a principal reivindicação das greves foi reajuste salarial e houve algum êxito na maioria das reinvindicações. Com base em 2023, a maioria do registro são de greves com proposições defensivas (78,1%), seguida das propositivas (49,8%) e aquelas com elementos de protesto (20,1%)2. A maioria se encerrou no mesmo dia em que foram deflagradas (56%) e apenas 12% duraram mais de 10 dias. Quase metade dos registros também foram greves de advertência (47%), isto é, ao contrário de greves deflagradas por tempo indeterminado, as greves de advertência são “mobilizações que têm como plano o anúncio antecipado de seu tempo de duração”, incluindo paralisações em intervalos de algumas horas, ou as de 24 ou 48h.
Se observarmos o caráter das greves, conforme dito, 78,1% foram greves defensivas, ou seja, as pautas de reivindicações não foram propositivas ou por ampliação de direitos, mas pela defesa das condições de trabalho, saúde e segurança existentes, pela manutenção das condições vigentes, tendo a denúncia de descumprimento de direitos representado 52% e greves contra a deflagração de condições vigentes atingido 44% dos registros. No que se refere às reivindicações, do total de greves, reajuste salarial (40%), pagamento do piso (27%) e exigência de pagamento de salários (22%) foram temas que se destacaram. As exigências de melhorias das condições de trabalho representaram 20,9%. Alimentação (18,4%), melhoria dos serviços públicos (17,4%) e Plano de Cargos e Salários 14,7 (%) vêm na sequência. A maioria dos casos analisados pelo DIEESE, 67%, obteve algum êxito no atendimento de suas reivindicações.
Agora vamos dividir os estratos. No serviço público, cerca de metade das greves foram encerradas no mesmo dia de deflagração, apenas 16% duraram mais de 10 dias. 70% das greves na administração pública foram deflagradas por servidores municipais. O predomínio foram greves de advertência. Dos casos observados, metade das greves conseguiram algum êxito no atendimento de suas reivindicações. Entre os servidores públicos, 53% tiveram como reivindicação a pauta de reajuste salarial e 46% contemplaram a exigência do pagamento do piso salarial.
No setor privado, as greves no setor de serviços foram predominantes (quase 70%), com predomínio de reivindicações de caráter defensivo (83%), como o descumprimento de direitos (64%). Observando a evolução mensal dos setores, importa observar que as greves organizadas no início (janeiro e fevereiro), no meio (julho) e no término do ano (de outubro a dezembro) foram impulsionas em sua maioria por trabalhadores da iniciativa privada. De tal modo, houve o predomínio de greves de curta duração.
Ao que parece, pós-pandemia da Covid 19 e suas consequentes mudanças no mundo do trabalho, como intensificação das terceirizações e privatizações, não foram obstáculos para o crescimento do número de graves no país, tendo em vista a revolta do descumprimento da legislação trabalhista. Não é secundário observar os trabalhadores terceirizados do serviço público e os trabalhadores que atuam em concessionárias privadas de serviços públicos foram responsáveis, em 2023, por 56% das greves no setor privado. Do mesmo modo, mais da metade das greves no setor privado em 2023 (56%) envolveu trabalhadores terceirizados que atuam no serviço público: (enfermeiros, porteiros, recepcionistas, trabalhadores da limpeza, das cozinhas, dos serviços gerais) ou trabalhadores que atuam em concessionárias privadas de serviços públicos (transporte coletivo, varrição e coleta de lixo).
A expansão do mercado de trabalho formalizado tem crescido nos anos recentes. Apesar da Pandemia em 2020 e do aumento da informalidade (sobretudo nos governos de Temer e Bolsonaro), o Brasil registrou 2022 e 2023 um crescimento que não era visto desde 2015, notadamente no setor de serviços e na administração pública. “Brasil bate recorde com 100 milhões de trabalhadores empregados, diz IBGE” é a matéria do UOL Economia, que registra a entrada de 1,1 milhão no mercado de trabalho segundo o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), do Ministério do Trabalho. Segundo a Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), o país registrou, em 2023, 100,7 milhões de trabalhadores ocupados, o maior da série histórica desde 20123. Segundo os dados de que dispomos, 57,6% da população maior de 14 anos e apta para trabalhar encontra-se hoje no mercado de trabalho. A maioria da concentração de empregos encontra-se no setor de serviços e comércio.
A taxa de desemprego fechou 2023 em 7,8% (o menor nível desde 2014). O número de trabalhadores por conta própria registrados no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) é de 25 milhões (excluindo os 4,3 milhões de empregadores nessa condição). Ao mesmo tempo, em 2023, apenas 8,4% dos 100,7 milhões de trabalhadores ocupados são sindicalizados, o equivalente a 8,4 milhão de pessoas, o que representa o menor patamar da série histórica desde 2012 – uma queda de 7,8% em relação ao ano anterior, de 2022. Ou seja, a taxa de sindicalização caiu de 16,1% para 8,4% de 2012 a 2023. Se o número de ocupação cresceu nos últimos anos, a taxa de sindicalização obteve declínio, especialmente a partir de 2017, com a Reforma Trabalhista (Lei 13.567/2017). Curioso notar que a sindicalização cai em todos os níveis de instrução, incluindo entre ocupados com nível superior.
Se compararmos a taxa de sindicalização por atividade econômica entre 2012 e 2023 observaremos queda em todos os setores, especialmente: na indústria (de 21,3% para 10,3%), no ramo de informação, comunicação e atividades financeiras (de 18,7% para 8,8%); transporte, armazenamento e correio (de 20,7% para 7,8%); e na administração pública e serviços sociais (24,5% para 14,4%). A menor queda identificada é encontrada nos serviços domésticos (de 2,7 para 2%)4.
Importante considerarmos que há desigualdades no interior do mercado de trabalho. Segundo dados do Censo, a maioria da população brasileira se declara parda (45,3%) e, se somarmos negros (pretos, conforme a identificação do IBGE) e pardos, temos um percentual de 55,5% da população. 56,1% das pessoas com idade de trabalhar são negras. A taxa de negros no mercado de trabalho, entre desocupados, representa 65,1%. Também a informalidade pesa mais entre a população negra. Se entre não negros a taxa de informalidade ano passado foi de 34%, entre homens negros o percentual se eleva para 45,8%, e entre mulheres negras, 46,5%. Quase metade deste segmento populacional. Portanto, o recorte de raça/etnia e gênero é fundamental para se compreender as desigualdades no mundo do trabalho.
Em 2023, 8,4 milhões de trabalhadores empregados estavam associados a centrais sindicais (quase a metade se comparado a 2012). Segundo reconhecimento do Ministério do Trabalho, existem 13 centrais sindicais. São elas, na ordem de sua representatividade de filiações sindicais: CUT – Central Única dos Trabalhadores (27,8%); FS – Força Sindical (18,3%); UGT – União Geral dos Trabalhadores (14,1%); NCST – Nova Central Sindical dos Trabalhadores (13,2%); CTB – Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (10,7%); CSB – Central dos Sindicatos Brasileiros (10,1%); seguidas pelas menos representativas a seguir, as quais não estão na ordem de representatividade: CGTB – Central Geral dos Trabalhadores do Brasil; CBDT Nacional – Central do Brasil Democrática de Trabalhadores; CSP Conlutas – Central Sindical e Popular Conlutas; CGTB – Central Geral dos Trabalhadores do Brasil; Intersindical – Central da Classe Trabalhadora; NCST – Nova Central Sindical de Trabalhadores; PÚBLICA- Central do Servidor; UST – União Sindical dos Trabalhadores.
A nosso ver, é no mínimo curioso a existência de mais de uma dezena de centrais sindicais no país, em oposição ao declínio das taxas de sindicalização nacionais. Trata-se de uma evidente fragmentação da cúpula sindical e distanciamento das bases. Urge, dentre a esquerda socialista, um projeto de popularização da luta em defesa da unificação das centrais sindicais, tendo em vista um programa classista, democrático internamente, com independência de classe, disposto a combater efetivamente tanto o ideário neofascista quanto o neoliberal, e aberto para incorporar e inserir-se na heterogênea morfologia da classe trabalhadora e da juventude deste novo (e precário) mundo do trabalho, tendo em vista a imperiosa necessidade dos sindicatos retomarem sua dimensão classista, ao mesmo tempo em que estão desafiados a se reinventarem diante de novos cenários e das clivagens de gênero, raça, etnia e geração, ainda que sem perder o elo de classe que lhes são transversais, as interconectam e inter-relacionam.
A saída é pela esquerda organizada nas mobilizações sociais e populares
Ao fim e ao cabo, ao longo do primeiro ano do governo Lula III, ao mesmo tempo em que tivemos uma retomada do crescimento das greves no país, observamos redução do número de trabalhadores sindicalizados. Se, por um lado, apesar da correlação social de forças entre as classes sociais ser desfavorável e o Parlamento brasileiro ser majoritariamente conservador e reacionário, as expectativas do movimento sindical em um novo governo do Partido dos Trabalhadores e de Lula, um ex-sindicalista, na presidência, em substituição a um governo de coalização de extrema-direita, antidemocrático e antissindical, reanimou o movimento organizado dos trabalhadores desde o início do ano. Ao mesmo tempo, a ampla aliança com setores da direta e do centrão, o qual é base do governo e ocupa ministérios ao mesmo tempo em que na prática faz oposição parlamentar e barganha emendas, por meio de chantagens, em um contexto político de ofensiva do bolsonarismo, traz inúmeras dificuldades para os interesses da classe trabalhadora no Brasil. Os minúsculos resultados econômicos não têm sido suficientes para tranquilizar as condições de vida da classe. O descontentamento e início de uma erosão da base popular governista já se anuncia neste ano de 2024 – vide o exemplo da greve de professores e técnico-administrativos das Universidades e Institutos Federais. A tendência de perda de popularidade do governo também aponta nesse sentido. A política econômica neoliberal, a linha de austeridade em torno do ajuste fiscal e a não implementação do programa eleitoral de bases sociais que elegeu Lula tornam o cenário muito difícil. Quais lições os trabalhadores tirarão deste cenário? Enquanto Lula estiver na defensiva, num governo sob cerco e subordinado às forças neoliberais, o cenário conjuntural é preocupante. Mobilizações sociais à esquerda e com independência de classe que disputem as pautas políticas e econômicas no conjunto da sociedade serão imprescindíveis. Resta saber como atuarão as forças sociais do trabalho e o movimento sindical brasileiro no próximo período. A retomada de greves é um indicador social importante. Mas ainda é cedo para qualquer conclusão precipitada, afinal, a história é um campo aberto de possibilidades.
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