“(…) fazendeiro graúdo se reina mandador – todos donos de agregados valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada! Domingos Touro, no Alambiques, Major Urbano no Macaçá, os Silva Salles na Condeúba, no Vau-Vau dona Próspera Blaziana. Simão Avelino na Barra-da-Vaca, Mozar Vieira no São João do Canastrão, o Coronel Camucim nos Arcanjos, comarca de Rio Pardo; e tantos, tantos. Nisto que na extrema de cada fazenda some e surge um camarada, de sentinela, que sobraça o pau-de-fogo e vigia feito onça que come carcaça. Ei. Mesma coisa no barranco do rio, e se descer esse São Francisco, que aprova, cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral, seus jagunços mil ordeiros… (João Guimarães Rosa “Grande Sertão Veredas”, 1976, p.88)
Confira a parte I da série Coronelismo, milícia, terra e voto
O trecho acima é de uma das maiores obras literárias do país e condensa toda uma relação de poder mediada pela jagunçagem, seja para decidir questões políticas, intervir em eleições, liquidar inimigos, intimidar adversários, resolver conflitos de terra, explorar trabalhadores da roça, vigiar propriedades e fazer a segurança dos chefes locais, seja para a resolução de querelas cotidianas, que perpassam pela encomenda, associação, contrato ou “auxílio amigo” dos jagunços.
A jagunçagem é parte estruturante da relação social capitalista no Brasil, e o jagunço era o sujeito que se prestava ao trabalho paramilitar a mando do coronel, de chefes políticos, de grandes proprietários e, em algumas regiões, de empresas colonizadoras1. Esses homens de armas colocavam-se a serviço dos poderosos locais e estabeleciam com eles uma relação de dependência e/ou lealdade. A partir de meados do século XX, os jagunços passaram a ser assim nomeados pelos movimentos sociais do campo como um inimigo comum na luta por terras.
Para além da gestão da violência local, outra atividade mediada pelos jagunços era o o arrendamento sobre a terra e a produção. O arrendo é descrito por vasta bibliografia como uma taxa cobrada sob coerção, pode ser feito em forma de pagamento em espécie, pelo uso da terra apossada e/ou pela apropriação de parte da colheita produzida no lote de terra arrendada.Formas de expropriação que variavam de região a região – erva-mate no Paraná, cacau na Bahia, café em São Paulo, milho em Goiás etc. Grande parte da população do interior ficou sujeita a intervenções da jagunçagem e suas várias formas de rapinagem e esbulho.
Sua relação com a comunidade recaia sobre todos os planos de suas atividades produtivas, e sobre o próprio modo com que a terra era concebida nesse ambiente social. Em síntese, o jagunço podia atuar de múltiplas formas como agente da dominação de classe contra grupos sociais subalternos. O jagunço é o elemento do atraso nas relações capitalistas, garantidor da moderna forma extraeconômica de extração de mais valia relativa e absoluta.
O jagunço é, portanto, um personagem histórico central da relação de apropriação capitalista que congrega uma vasta gama de atividades, ora é capataz, ora é pistoleiro. Além disso, alguns galgaram a confiança do chefe local, tornando-se agente de “proteção”, vistos como seguranças pessoais ou da propriedade . Tal como o miliciano atual, é difícil restringir sua atuação a um mercado ou serviço específico, trata-se de um agente extremamente funcional para a gestão, regularização e expansão das relações capitalistas, um elo que atravessa inúmeras relações de poder. Assim, esses homens de armas tinham inserção tanto nas comunidades em que moravam, quanto naquelas por onde passavam, nos movimentos necessários ao seu serviço de coação, fiscalização, extermínio etc.
O Estado em todas suas fases republicanas no Brasil não pôs fim a jagunçagem, pelo contrário, incorporou-o após 1930 para garantir a transição de um modelo econômico agroexportador para uma hegemonia urbano-industrial, sofisticando-a ao torna-la oficial. O Estado promoveu o recrutamento criando verdadeiras “instituições da jagunçagem” na forma de policiais, milícias e empresas de seguranças privados. Fenômeno que reapareceria sob novas formas na década de 1980, durante a transição democrática, de forma oficial, incorporado como ação policial, atuando nas novas fronteiras agrícolas abertas ou reabertas em todo o território nacional e também nas fileiras do paramilitarismo urbano.
Dentre as novas formas ou faces da “jagunçagem” estariam uma legião de vigias dos latifúndios modernizados – denominados de empresas rurais –, das tecnologias de controle de ponta servidas nas fábricas, além da fina-flor dos “esquadrões da morte” e das tropas de elite e/ou de policiais operacionais. Esse último é – um neologismo criado por uma sociologia “técnica” para se referir às tropas adeptas da política dos autos de resistência, isto é, a sumária execução de civis nas favelas e subúrbios do Rio de Janeiro. Assim, a arcaica jagunçagem não é apenas resíduo do passado, mas um dos modos mais efetivos de dominação no presente e, como tal, corolário do projeto de expansão capitalista em áreas periféricas do país. Como demonstrou Chico de Oliveira, não existe uma cisão dual entre arcaico/moderno como se fossem duas realidades distintas, são parte do mesmo processo dialético – uma unidade de contrários –, no qual o processo histórico real mostra uma simbiose, em que o “moderno” cresce e se alimenta do “atrasado”, ” ao mesmo tempo que o “atraso” se mantém pela necessidade do “moderno”. O que denota a funcionalidade do “arcaico” da violência e da barbárie na constituição do Estado capitalista.
O paramilitarismo, não é um fenômeno recente e nem se limita ao Brasil ou a países periféricos. O marxista sardo Antonio Gramsci ao analisar os grupos paramilitares italianos na década de 1930, descreveu a atuação dos grupos “arditis” percebendo que não havia uma exclusividade coercitiva atribuída aos agentes de Estado, nem um momento de convencimento que seria o atributo único da sociedade civil, mas sua inter-relação constitutiva.
Na história recente da cidade do Rio Janeiro é possível observar trajetórias de milicianos que, entre outras atividades, são profissionais fardados da jagunçagem a mando de clãs poderosos – como é o caso do capitão Adriano da Nóbrega, que ganharia fama internacional após a execução da vereadora Marielle Franco (PSOL). Nóbrega era filho de um capataz do Haras Modelo, propriedade de um dos maiores banqueiros do jogo do bicho, Miro Paes Garcia. Rogério Mesquita, “adminstrador” do Haras e chefe dos capatazes convenceu o bicheiro a formar uma guarda pretoriana para servir ao clã Garcia com os filhos de seus funcionários, incluindo o de José da Nóbrega, Adriano. Quem investigou essa história, que articula grilagem de terra, toda uma rede empresarial da violência e a infiltração de jagunços/ “seguranças” de bicheiros na polícia, foi o jornalista Sérgio Ramalho2.
Segundo o autor, como um faz-tudo do clã Garcia, seu Nóbrega e Mesquita atuariam juntos na grilagem de terras no entorno do Haras, fazendo “a cerca da propriedade andar em noites de lua cheia” e “não raro queimando casebres e expulsando a bala famílias de posseiros pobres”3. Esse processo de expropriação de terras teria duplicado o tamanho da área original adquirida por Miro Paes Garcia na década de 1970. Segundo depoimento de Mesquita, desde jovens, Adriano da Nóbrega e João Martins, filho de outro funcionário que foi recrutado no Haras para serem da “tropa” de Paes Garcia, aprendendo a manejar armas e facas. As informações vieram em depoimento do antigo adminstrador do Haras, e que responde processos por formação de “grupos de extermínios” no munícipio de Guapimirim (RJ)3, a ideia de infiltrar primeiro os jovens na academia de formação de oficiais da Polícia Militar e, posteriormente, na tropa de elite da corporação, o Batalhão de Operações especiais (BOPE). O patriarca teria financiado a entrada dos dois e articulado com aliados da PM a aprovação da dupla, trazendo novos elos da constituição de “instituições da capangagem”, cujo “o objetivo era formar assassinos profissionais usando recursos e estrutura da temida tropa de elite”5. Ramalho levantou a trajetória da dupla nas corporações policiais e concluiu que ambos entraram e estiveram por um grande período juntos como parceiros de turmas na PM e no BOPE, salvo, quando um dos dois era denunciado e transferido de batalhão ou mesmo expulso da corporação.
O clã Paes Garcia teria utilizado a dupla de assassinos especializados e profissionalizados em uma guerra fratricida na eliminação de adversários na disputa por pontos da zona oeste. Adriano da Nóbrega se tornaria coordenador da “tropa da cúpula do bicho”, transformando-se em uma espécie de condottiere. Uma versão carioca dos antigos chefes de tropas mercenárias pagas para garantir o domínio territorial antes da unificação italiana. A história da infiltração de jagunços na estrutura da segurança pública a mando dos capos do bicho, já havia sido denunciada em 1994 pela juíza Denise Frossard, que coordenou operações contra a cúpula do jogo. O que indica como o Estado em diferentes temporalidades republicanas e democráticas é poroso ao empresariamento da segurança e da violência, e logo revela a atuação de uma mão invisível do crime organizado.
Adriano da Nóbrega não prestaria serviços somente aos bicheiros, mas criaria uma holding criminosa, liderando uma tropa mercenária de matadores profissionais e policiais operacionais, formando consórcios com facções de varejo do tráfico de drogas, milicianos, empresários e políticos. Com recursos e fama, o ex-caveira buscou alçar voos maiores, passando a atuar no jogo do bicho e sufocando integrantes “novos” da cúpula, um caso típico de “revolta dos jagunços”, quando o homem de armas busca se emancipar dos coronéis que o empregavam, tornando-se também “coronel”. Esse fenômeno social parece ter ganhado contornos dramáticos com a ascensão bolsonarista, assegurando uma autonomia relativa aos senhores das armas e fardas, e também ao baixo clero político, que ao galgar uma audiência de massas subverte as regras do jogo, da institucionalidade burguesa formal ao submundo do crime – a lupemburguesia vai ao paraíso e salta do porão ao “andar de cima”.
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