Ao não ver as diferenças radicais entre os dois programas na realidade, as massas trabalhadoras, em especial os camponeses, caem na indiferença. Nessas condições, o fascismo vencerá inevitavelmente, porque a superioridade militar está ao seu lado. Reformas sociais audazes representam a arma mais potente na guerra civil e a condição fundamental da vitória sobre o fascismo.
Leon Trotsky
Queremos, aqui, fazer uma breve análise da situação política brasileira hoje. Como não poderia deixar de ser, começamos avaliando que não há nenhuma desavença, no geral, em dizer que existe uma maior instabilidade no mundo hoje e que o resultado é a polarização esquerda x direita. É, também, reconhecido que não há um equilíbrio entre os pólos, ou seja, o signo geral no momento se caracteriza pela localização da extrema direita na ofensiva.
Por outro lado, dizer que existe uma tendência a uma situação contra-revolucionária é diferente de dizer que a situação não está mais em disputa. Pelo contrário, toda nossa preocupação se dá no sentido de alterar essa tendência, ou seja, colocar a classe na ofensiva novamente. Isso passa pela necessidade da unidade da esquerda em torno de um programa mínimo.
Alguns alegam que precisaríamos defender um programa anticapitalista transitório que seria mais avançado do que estamos sendo capazes de efetivar. Compartilhamos com eles preocupações similares. O grosso da população busca por alternativas à política tradicional, ao status quo, que passam pela construção de um programa que contenha mudanças estruturais relevantes para sociedade brasileira.
A classe média empobreceu e a pequena camada que ascendeu socialmente com os governos do PT e se escolarizou se vê totalmente desvalorizada no mercado de trabalho, tendo que trabalhar fazendo bico (principalmente como Uber) para fechar as contas.
A questão é que o sentimento de insatisfação dessa camada foi capitaneado pela burguesia e os trabalhadores foram alienados pela armadilha neoliberal. O clássico giro à direita das camadas mais abastadas da classe trabalhadora. Ou ainda, culpem os ainda mais pobres e explorados do que você, e não a acumulação da renda nas mãos da burguesia.
Dessa forma, não é porque aderimos à ideia de programa mínimo transicional devido ao caráter ultradefensivo da situação e à necessidade da unidade em torno da mobilização da classe que devemos abaixar todas as nossas bandeiras a ponto de descaracterizar o caráter de transformação radical do nosso programa.
Cabe ressaltar, en passant, que não estamos defendendo a agitação de um programa revolucionário a priori, apenas um programa de mudanças que sejam capazes de atingir minimamente as raízes das contradições que nossa sociedade enfrenta hoje.
A extrema direita ganha posições justamente quando consegue colocar na esquerda moderada a culpa por estes mesmos problemas. Obviamente, fazem isso da maneira mais desprezível possível, em uma lógica invertida da realidade.
Se há algo que a esquerda precisa aprender a fazer, aliás, é produzir diálogos claros e objetivos com a classe trabalhadora no geral, no sentido oposto da lógica da extrema direita. Em outras palavras, se apropriar do há de mais elevado no discurso dos nossos inimigos e subvertê-lo contra eles mesmos, explorando suas próprias contradições. No caso do que aconteceu com o PL 1904, estamos falando da defesa das infâncias e a luta contra a violência sexual.
Ainda sobre o governo Lula, podemos dizer que o programa petista é radical e tem ampla inserção nas camadas populares, mas o erro estratégico do PT de se aliar com a burguesia para governar resulta em recuos sucessivos, ausência de disputa ideológica e esvaziamento das lutas populares.
Pelo que dissemos anteriormente, é possível concluir que, se os dirigentes políticos que defendemos não forem capazes de provocar mudanças significativas no seio da classe trabalhadora, jamais iremos derrotar o fascismo. Estaremos preparando derrotas estratégicas. Daí surge a grande preocupação com um possível recuo programático da esquerda.
É preciso clareza ideológica para disputar a consciência das massas. Deixar muito claro quem é o inimigo e qual é o caminho. E o inimigo não é a extrema direita por si só. Diferenciar entre direita moderada e extrema direita é um erro sem precedentes. Precisamos tomar cuidado quando, na nossa política, hierarquizamos a luta em termos de “derrotar a extrema direita”. O projeto de ambas é o mesmo! Muda apenas o discurso, a retórica.
Havemos, portanto, de discutir quais recuos são justificáveis ou não. Podemos, entretanto, pontuar que temos tido atuação incólume, por exemplo, ao lidar com a tragédia que ocorreu no Rio Grande do Sul. Neste caso, podemos dizer que somos o que há de melhor e mais avançado na vanguarda e na luta contra os setores burgueses e da extrema direita. A defesa da Palestina, das mulheres, do povo negro, das LGBTs e a política contra as privatizações são marcas da nossa atuação.
A reorganização da esquerda no Brasil
O desenvolvimento da consciência de classe das massas é desigual. Há, na realidade, dois fenômenos acontecendo ao mesmo tempo: parcelas consideráveis das massas, principalmente da juventude feminista, negra, LGBT e periférica, não se referenciam no lulo-petismo, embora defendam-no contra o bolsonarismo.
Eles não viveram os tempos de “ouro” do governo de conciliação de classes e por isso têm uma postura mais crítica. Entretanto, não fazemos política somente para a juventude. A maior parte dos trabalhadores mais precarizados (principalmente de periferia), se referenciam, sim, em Lula.
Não podemos negar o impacto que as políticas compensatórias mínimas têm para quem estava acostumado a viver na barbárie total. O mesmo vale ser dito sobre Marta Suplicy. Não perceber isso é se auto-boicotar ou pior, tentar disputar base com a extrema direita pois, na atual situação, quem dirige a insatisfação mais ferrenha com o governo é a extrema direita.
Pelo outro lado, mesmo as camadas de mais idade também possuem pensamento crítico. Não são massa de manobra do petismo. Não podemos negligenciar a necessidade de procurar mediações nesse sentido. Críticas ao governo, desde que tenham caráter classista nítido, calibragem e adequação à realidade, são muito bem vindas! As pessoas estão buscando alternativas que sejam melhores que Lula, e não mais do mesmo.
Dessa maneira, retornando ao debate programático, um recuo ao mínimo do mínimo é tão preocupante quanto um programa tão avançado a ponto de se deslocar da realidade. Será que devemos colocar o PT como parâmetro para a nossa disputa programática? Será que não estamos abaixando demais nossas bandeiras sob o pressuposto da Frente Única? Em uma situação como a referida, que moral iremos ter perante a vanguarda mais consciente (ou seja, aqueles que defendem o governo de seus inimigos, mas ainda assim preservam pensamento crítico)? São questões reais a serem discutidas e calibradas de acordo com a realidade.
Por isso, a título de exemplo, nossa política de incidir sobre as identidades deve ser feita no sentido de procurar sínteses com a classe trabalhadora enquanto combatemos o sequestro das mesmas pela burguesia (com as devidas calibragens, obviamente).
Por isso também as reformas urbanas e rurais, de segurança pública, infraestruturais, de modernização dos setores produtivos e com vistas a adequação às mudanças climáticas, associadas a políticas de aumento da produção, do emprego e da renda do trabalho são também urgentes. Não temos dado a atenção devida a estes debates. Parece haver algo de errado, por exemplo, para a esquerda no geral, mas em especial para a esquerda revolucionária, que o movimento pelo fim da escala 6×1 passou por fora de todos os partidos ou correntes de esquerda.
Voltando mais especificamente no assunto das premissas de Trotsky para o giro francês de 1930, não podemos fazer uma leitura anacrônica dos ensinamentos do revolucionário. Não estamos nos anos 30. Vivemos um profundo retrocesso de consciência de classe no qual a alternativa socialista foi derrotada e os revolucionários não têm influência de massas.
Adotar uma postura de oposição ferrenha às direções majoritárias porque os mesmos estão reivindicando a união com a burguesia é o mesmo que tentar tapar o sol com a peneira. Infértil, improdutivo, inútil. Só terá audiência na vanguarda pequeno-burguesa universitária que foi iniciada no marxismo. A consciência da classe trabalhadora não opera na mesma lógica.
Entender isso não significa reivindicar a Frente Ampla, mas sim trabalhar com o real, ou seja, a Frente Ampla poderá se consolidar eventualmente e, sendo assim, teremos somente duas opções: entrar e disputar por dentro ou ficar de fora agitando palavras de ordem deslocadas da realidade e acirrando conflitos não contra a burguesia, mas contra companheiros de luta. Com as devidas ressalvas, e analisando caso a caso, a melhor localização tende a ser a primeira.
Não acreditamos que Trotsky, devido ao seu alto grau de clareza estratégica, adotaria a segunda sem qualquer tipo de mediação. Afinal, a dialética é a arte de se apropriar do que há de mais elevado daquilo que você quer superar e a oposição de esquerda ao governo, por mais que tenham características progressivas evidentes e estejam menos sectários na agitação hoje, certamente não representa o que há de mais elevado na disputa política.
Por outro lado, ressaltamos novamente que um programa retraído, tímido e conciliador também é maléfico. Precisamos de um programa que faça o sentimento de pertencimento (ou identidade) de classe da população aumentar. Se recuarmos demasiadamente, ainda mais evitando tratar de posições efetivamente classistas bem elaboradas, não haverá avanço de consciência algum. Fazer a disputa ideológica contra o avanço neoliberal que está por trás da ascensão da extrema direita no mundo é essencial.
A esquerda deve passar mais tempo elaborando um projeto robusto de futuro para a classe como um todo, com propostas de mudanças estruturais reais. Um projeto de país para a nossa geração. Muito provavelmente, estamos presenciando uma guerra de trincheiras ideológicas. Conquistar posições é muito importante. Um programa defensivo tem o potencial de ser bastante mobilizador, como vimos no caso do PL do Estupro. Mas não se estabelecerá uma ofensiva consistente na classe trabalhadora se os objetivos finais não estiverem minimamente claros.
Sendo pessimistas, podemos caracterizar que o mais provável é que Lula não romperá com a burguesia. O cerco está se fechando sobre ele. Tende a ser impossível fugir do abraço do urso.
O governo está perdendo popularidade principalmente entre as camadas mais precarizadas, as mesmas que o elegeram, uma vez que não estão percebendo diferenças significativas com relação ao governo de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, a pressão da burguesia aumenta ferozmente devido à instabilidade do cenário econômico internacional e o consequente aumento do dólar.
Nesse contexto, certamente, a melhor maneira de efetivar a ideia de independência de classe da esquerda passa pela disputa do PSOL, fazendo avançar o caráter classista, antifascista e anti-burguês do partido e seu enraizamento nas lutas populares. Não devemos recuar do mínimo, como está fazendo o governo.
Vejam, qualquer recuo faz nossas esperanças diminuírem. Afinal, ganhar da extrema direita nas prefeituras para quê? Para entregar resultados tão insatisfatórios quanto nossos maiores inimigos? O programa da unidade PT-PSOL será capaz de colocar a classe em movimento, de fazer avançar sua consciência para si? Quais são as barreiras para que isso de fato aconteça? Onde estão localizadas nossas trincheiras mais promissoras e o que precisamos fazer para fortalecer os frontes de batalha que ainda não estão fortes o suficiente?
Não podemos errar na caracterização, nem transformar caracterização em política. O desenvolvimento da realidade irá dizer até onde conseguiremos ir. Por ora, é partir para as disputas das trincheiras ideológicas.
Todavia, as questões aqui colocadas são dignas de séria preocupação. O que está em jogo é o futuro da nossa geração, que ainda está presa nas decisões estratégicas tomadas pelo PT há três décadas atrás. Que sejamos, portanto, capazes de disputar nosso destino da melhor forma possível.
Comentários