Em 1917, num país inesperado, o mundo se prepara a bascular
A revolução dita de Outubro foi prevista e preparada pelos bolcheviques, a fração mais decidida do então Partido social-democratico russo (POSDR), constituído de mencheviques (menchii = minoritários, em russo, grosso modo, os reformistas) e dos bolcheviques (majoritários). Os mencheviques tinham subgrupos ou tendências, menos evidentes entre os bolcheviques, cujos membros podiam certamente exprimir posições divergentes, predominando a posição daqueles que, após uma livre discussão, formavam uma maioria em um ponto importante da política em curso. O direito a constituir tendências era assegurado.
O Partido foi o instrumento da revolução, encabeçado por V. Lenin que, com L. Trotski, recentemente aderido à tendência bolchevique, dirigiu a tomada do poder e os primeiros anos de luta contra a reação interna, apoiada por tropas intervencionistas de mais de 20 países, até 1924-1925.
Muitos livros, escritos por participantes e/ou historiadores comprometidos, relatam e interpretam estes acontecimentos do ponto de vista marxista. Resumi-los aqui tem pouco sentido e escolhi um outro enfoque, o de manter o contexto histórico, e relatar e comentar aspectos do processo de avanço e recuo do movimento revolucionário naqueles dias. Entenda-se que toda história política, inclusive a escolha dos parâmetros da cronologia, depende do ponto de vista do autor. Relatar o nascimento de uma doutrina política, religiosa ou de uma descoberta científica, envolve de fato um ponto de vista.
Um aspecto essencial das lutas que precederam a tomada do poder em Novembro de 1917, foi o polêmico retorno de Lenin, de Zurich, Suiça, à Rússia em Abril de 1917, após 12 anos de exílio, compartilhado com 7.000 (!) súditos russos. Este exílio parecia terminar após a revolução dita “democratico-burguesa”, que em Fevereiro 1917 derrubou o czarismo, substituído por uma coalizão burguesa, liderada pelo advogado Alexandre Kerenski. Dado essencial para entender o que ocorreria, haviam-se formado espontaneamente comitês formados por camponeses e soldados eleitos por seus companheiros. Eram os Soviets, já presentes quando da revolução de 1905, embora em menor número, e que representavam um duplo poder, ainda paralelo, senão inferior, ao governo burguês “legitimo”. Trotski havia presidido o primeiro dos Soviets, o de 1905, em São Petersburgo (= Petrogrado).
Desde 1914, um enorme exército russo enfrentava as tropas alemãs, neste terceiro ano da 1a. Guerra Mundial. A grande preocupação da coalizão imperialista anti-germânica, formada pela Grã-Bretanha, França e Rússia, era que esta, expurgada do militarismo monárquico pela Revolução de Fevereiro, negociasse uma paz separada com o bloco germânico, liberando um enorme contingente de tropas alemãs que reforçariam a frente ocidental.
Em Zurich, sem meios de intervenção, o exilado Lenin sentia cruelmente os eventos, com a capitulação dos mencheviques à patriotada guerreira, ao custo do sangue dos soldados-camponeses. Grave pelas suas consequências, em Março, dois membros da direção bolchevique, Kamenev e Stalin, retornaram da deportação na Sibéria e reorientaram a política partidária ao que denominaram “defensivo revolucionário” e propuseram a fusão do Partido com a ala esquerda dos mencheviques. “Bela” demonstração do internacionalismo proletário e traição à revolução alemã em curso (o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht por milicianos ligados à social-democracia dirigida por Ebert (1), Noske e Scheidemann, ocorreu nos inícios de 1919).
Por sua vez, Trotski retornou com sua família em 4 de Maio de 1917 de seu exílio, após ter estado preso num campo de concentração no Canadá, ordenado pela polícia britânica, apesar de seus documentos terem sido validados pelo respectivo consulado. Tornou-se logo ator essencial nos acontecimentos que se seguiram. Como mencionei, ao retornar do exílio, Lenin trouxe suas explosivas “Teses de Abril”, repudiadas pela maioria dos dirigentes bolcheviques, como “sectárias”, “ïrrealistas” etc.. Esta proposta de total mudança da política do Partido, banindo uma espécie de “apoio condicional”, ao governo provisório, batizado de “patriótico” e o prosseguimento da guerra (portanto “leal” para com os aliados Grã-Bretanha e França), estourou como um trovão em céu claro.
O ocorrido em Março e Abril de 1917, logo após a revolução de Fevereiro (2), que empoderou a burguesia dita “democrática” (3), foi essencial para o que se seguiria, a vitória socialista de Outubro. A semi-vitoria de Fevereiro, a realeza derrubada e substituída pela democracia burguesa e, em paralelo, o crescimento numérico e político dos Soviets, Comitês de cidadãos eleitos pelos seus pares, tiveram enorme impacto emocional, portanto político. Entretanto, após longos combates, muitos bolcheviques consideravam terem vencido e seus esforços esmoreceram. Apesar disto, em dois meses o número de militantes passou a 79.000, dos quais 15.000 em Petrogrado. Em 5 de Março, o jornal Pravda foi republicado e vendidos 100.000 exemplares de seu segundo número. Era dirigido por Molotov e Chliaonikov, retornados do exílio, sendo o primeiro o futuro cúmplice de Stalin. Kamenev, futura vítima dos expurgos stalinistas de 1936-1938, também retornado, chegou a escrever no Pravda de 28 de Março, uma patriotada belicista afirmando que “o soldado russo permanecerá firme em seu posto, e responderá com balas às balas…” Condenou assim a revolução alemã à derrota, eliminando o apoio que os bolcheviques dela esperavam. A linha reformista e capitulacionista parecia triunfar, mas era sem contar com a capacidade e autoridade de Lenin.
Assim, em 16 de Abril, Lenin conseguiu retornar, após extraordinária negociação com a Alemanha, que lhe permitira gozar, com outros camaradas, de exterritorialidade e assim atravessar seu território num trem afretado, sem necessitar de documentação, que aliás não possuía. Os alemães assim procediam porque necessitavam desesperadamente da paz separada com a Rússia, para transferirem o grosso de suas tropas para a frente ocidental. O posicionamento de Lenin contrariava, ao promover este acordo inédito com o inimigo, o lugar comum pacifista, pois seu objetivo não era a democracia burguesa, mas a “revolução socialista mundial”. A posição de Kamenev, dita “do interior”, era “defensiva” e aparentada à dos mencheviques. Stalin aliás propusera a imediata fusão com uma ala esquerdizante dos mencheviques… Contrariando este posicionamento, em 17 de Abril, Lenin lia para uma sala repleta de bolcheviques suas “Teses de Abril“, escritas durante a viagem de trem, que se opunham à linha da então maioria, explicitando que a guerra continuava imperialista, apesar da mudança política interna. Para ele, ainda etapista na linguagem, mas “permanentista” na prática, a etapa democrático-burguesa estava terminada (etapa histórica bem curta, algumas semanas!) e os revolucionários deveriam passar à etapa socialista (4).
As “Teses de Abril” de fato afirmam: “O que há de original na situação atual na Rússia é a transição da primeira etapa da revolução, que empoderou a burguesia devido ao grau insuficiente de consciência e de organização do proletariado, à segunda etapa, que deverá empoderar o proletariado e as camadas pobres do campesinato“. Curiosamente, esta formulação parece manter a teoria da revolução por etapas, portanto em oposição à formulação de Trotski. Este afirmava que a revolução teria um aspecto “permanente”, o que não significava que ocorreria diariamente, mas que as reivindicações e conquistas de caráter democrático burguês dariam continuidade às tarefas socialistas. Seria impossível decretar, em meio a uma reforma anti-feudal, obtida pelo único método disponível, a revolução, que por decreto não avançaria, obrigando o movimento de massas a se paralisar para satisfazer a teoria etapista. Aliás, vimos bem no Brasil, na China dos anos vinte, na Espanha republicana, na França da Frente Popular que precedeu a 2a Guerra Mundial, enfim em muitos exemplos, as derrotas a que levou a teoria etapista.
Não acho que a história se repita, mas acredito que circunstâncias parecidas podem levar a consequências parecidas. Abro assim um parênteses para comparar os eventos acima a uma parte da história brasileira, quando os acordos que se seguiram à erosão e retirada da ditadura foram negociados pelos Kerenski brasileiros. Isso se deu em ausência de dois elementos essenciais presentes na Rússia: por um lado, a guerra mundial, que assassinou e radicalizou milhões de camponeses, tornados sensíveis à propaganda bolchevista resumida na palavra de ordem “Paz e Terra” e pelo outro, a existência de um partido revolucionário aguerrido, disciplinado e politizado. A única comparação que me vem ao espírito é com os jacobinos (5) da Revolução Francesa (tese sustentada pelo historiador marxizante A. Mathiez (6) ou por Daniel Guérin (7)), que me parece muito interessante e que retomo adiante. Outros exemplos mais recentes são, no ápice do movimento mundialista dos anos 1970, a Frente de Libertação Argelina (FLN) e os movimentos anti-colonialistas de libertação africana.
Estas condições não existiram no Brasil da “abertura”. Mesmo se os vinte anos de ditadura possam conceitualmente representar o papel dos quatro anos de guerra mundial, a inexistência de um forte Partido revolucionário ou organização equivalente impedia avanços coordenados, como aliás faltavam também na Alemanha ao final da 1a guerra mundial. Nesta ocasião, a jovem tendência Spartakus, provinda da social-democracia e que originou o Partido Comunista alemão, nem de longe tinha o preparo equivalente aos bolcheviques, Além disto, o assassinato em 1919 de Rosa Luxemburgo e de Karl Liebnicht pela coligação entre a direção dos social-democratas alemães e as milicias pré-fascistas, os corpos ditos Livres, decapitou o futuro PC alemão.
Voltemos a Abril, na Rússia, em que os dirigentes reformistas e associados, apoiavam plenamente o governo “renovado” e portanto o prosseguimento da guerra imperialista. O governo Kerenski sabotava a volta dos revolucionários exilados e havia mesmo transmitido aos postos de fronteira uma lista de pessoas a serem detidas se chegassem. Temiam, e com razão, o papel corrosivo que desempenhariam os revolucionários retornados. Foi diferente o retorno dos mencheviques favoráveis ao prosseguimento da guerra, já que a “honra da Pátria” estaria em jogo: foram transportados como joias preciosas (e o eram…), sob proteção da marinha de Sua Majestade britânica, pois seriam essenciais para que a coalizão imperialista se mantivesse intacta em seus três componentes nacionais associados, às custas dos trabalhadores mobilizados…
Com circunstâncias bem relatadas, mas sob um formato literário e sem embasamento ideológico e histórico sério, Stefan Zweig descreveu (8) com talento como Lenin, enfrentando as objeções de seus próprios camaradas que temiam a pecha de “traidor”, negociou com os representantes alemães na Suíça a autorização de retorno a São Petersburgo (já Petrograd – “grad” sendo “cidade” em russo e “Petro-, em homenagem ao imperador que fundara a cidade a partir do nada).
Em 3 (portanto, atualmente, 16) de Abril, Lenin desembarcou em Petrograd após atravessar o território alemão. Foi recebido em fanfarra, pelos seus adversários políticos tornados belicistas, e por uma multidão popular, sobretudo soldados/camponeses. Qual não foram o espanto e a decepção dos “patriotas” presentes diante da concisão da intervenção de Lenin, que acentuou a enorme importância do duplo poder, mesmo se a nomeação de Kerenski ao cargo de Primeiro Ministro tivesse tido a aprovação do Soviet. Queria reorientar o Partido, que havia tomado as mencionadas posições “defensivas”, sob a direção temporária de Kamenev e Stalin. Para tanto, leu em duas reuniões de militantes suas “Teses de Abril”. Em uma lista de dez pontos, reafirmou as posições internacionalistas: apoio total à revolução camponesa em curso, reivindicação de “Todo poder aos Soviets” (expressão do duplo poder), a formação de uma nova Internacional, a Segunda se tendo desmoralizado pelas suas posições belicistas, e enfim a mudança do nome do Partido para Partido Comunista. Escreveu Lenin : “O que há de original na situação atual da Rússia é a transição da primeira etapa da revolução, que empoderou a burguesia devido ao grau insuficiente de consciência e de organização do proletariado, à sua segunda etapa, que deverá empoderar o proletariado e as camadas pobres do campesinato”.
Interessante notar que Lenin atribui o empoderamento pela burguesia, quando da queda do czarismo, “ao grau insuficiente de consciência e de organização do proletariado”, duas razões evidentemente essenciais, porém subjetivas. E se “o grau de consciência e de organização do proletariado” fossem suficientes, o etapismo não dominaria? Ve-se bem que os fatores táticos e subjetivos não validam a teoria do etapismo, pois ao contrário, em ausência destas condições subjetivas, teria ocorrido o “desbloqueio” da revolução permanente (9).
Com sua habilidade habitual em associar formulações programáticas rigorosas com a tática para executá-las, Lenin afirmou: “Vista a inegável boa fé de amplas camadas dos partidários do defensismo revolucionário, que somente admitem a guerra por necessidade e não para conquistas, e como são enganadas pela burguesia, é importante esclarecê-las sobre seus erros, com perseverança, paciência e cuidados especiais, explicar-lhes que existe uma relação indissolúvel entre o capital e a guerra imperialista…” Eis um posicionamento essencial: associa a análise marxista (i.e., baseada no conhecimento dos posicionamentos de classe, sem subjetivismo, sem tomar suas ideias como realidade) com o reconhecimento da situação concreta e real, que pode sem bem diferente. Assim, parece-me que uma coisa é reconhecer a realidade concreta do PT, partido reformista e arrivista, permanentemente à procura de aliados reacionários para amenizar a luta de classes (não é preciso procurar muito, basta evocar as duplas Lula e Alckmin ou Boulos e Marta Suplicy), assim como a permanente hesitação do PT em utilizar as presentes dificuldades do bolsonarismo, em troca de aliados incertos. Outra coisa é a realidade, o fato que Lula – gostemos ou não – é o líder inconteste dos trabalhadores brasileiros, com o qual devemos coabitar, para nos aliarmos solidamente a essas massas, expurgando seus posicionamentos reacionários que amarram seus seguidores. Eis a arte de conjugar a tática do dia a dia com a estratégia dos objetivos permanentes.
Segundo Trotski, “Não é de se estranhar que as Teses de Abril tenham sido rejeitadas como sendo “trotskistas”, por transmitirem a ideia que o proletariado da Rússia poderá tomar o poder antes do proletariado ocidental, e que neste caso não poderá se limitar ao quadro da ditadura democrática, mas deverá empreender as primeiras medidas socialistas“.
A oposição verbal e de fundo entre o etapismo da social-democracia e do stalinismo e a concepção dita “trotskista” da revolução permanente tem um aspecto histórico, mas que não impede alianças com os etapistas. Entretanto, na formulação de um programa de transição, que associa reivindicações econômicas ou políticas factíveis no regime capitalista vigente, como o aumento de salários, mudanças progressistas na política fiscal ou fundiária, à sua perenização e associação a medidas socialistas, as coisas mudam.
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