Por Renato Fernandes, de Campinas, SP
Aconteceram no último domingo (22), o primeiro turno das primárias cidadãs, ou primárias da esquerda, que escolherão o candidato a presidente do Partido Socialista (PS). O segundo turno será disputado no próximo domingo (29). As primárias reúnem o PS, o Partido Ecologista, a Frente Democrata e o Partido Radical de Esquerda. Como analisado em outro artigo, o governo do PS de François Hollande está desgastado e as perspectivas eleitorais são sombrias, já que o partido será deslocado da sua tradicional posição de alternativa à direita representada por François Fillon e pelos Republicanos.
A presença nas primárias demonstrou essa debilidade: cerca de 1,6 milhões de eleitores participaram (as primárias são abertas para qualquer eleitor francês votar). Só como comparação, as primárias de 2011, que escolheram François Hollande como candidato, tiveram a participação de 2,6 milhões, enquanto as primárias da direita, organizadas em novembro de 2016, mobilizaram mais de 4 milhões no primeiro turno.
O vencedor do primeiro turno foi Benoît Hamon, com aproximadamente 36% dos votos. Hamon representa a ala esquerda do partido, colocando-se contra a reforma da Lei do Trabalho, aprovada de forma autoritária pelo governo do presidente Hollande e do primeiro-ministro Manuel Valls. Mas sua proposta chave é a adoção de uma “renda universal de existência” que garantiria uma renda mínima para todos os cidadãos franceses. Um projeto importante, mas que não questiona nem um pouco o processo de acumulação e de distribuição de lucros das grandes empresas e que pode servir, como debate o economista Michel Husson, como uma plataforma para o desmonte dos direitos conquistados no chamado Estado de Bem Estar Social – ainda que essa não seja a intenção inicial de Hamon.
Em determinado sentido, o projeto de Hamon é uma contraposição parcial ao neoliberalismo adotado pelos governos da direita francesa e continuado por Hollande. Nesse sentido, representa uma socialdemocracia histórica, que não tem um projeto socialista, mas que quer garantir direitos sociais e trabalhistas para os trabalhadores em conciliação com a burguesia. É por isso que a imprensa francesa, e seu adversário nas primárias, comparam Hamon a Jeremy Corbyn.
Manuel Valls, antigo primeiro-ministro de Hollande entre 2014-2016, será o adversário no segundo turno das primárias. Ele obteve cerca de 31% dos votos. Enquanto primeiro-ministro foi quem aplicou diversas medidas neoliberais e utilizou o dispositivo 49-3 para aprová-los, como na reforma da Lei do Trabalho – esse dispositivo é utilizado para aprovar uma lei sem passar pelo parlamento, que poderá modificá-la apenas posteriormente (dispositivo bastante parecido com as Medidas Provisórias previstas na Constituição brasileira).
Valls representa a ala do PS que abraçou o neoliberalismo. Em determinado sentido, poderíamos aproximá-lo de Tony Blair, ex-primeiro ministro inglês, que caminhou por uma terceira via que combinava a liberalização da economia com projetos sociais, mas não com garantias de direitos. Não é um projeto inconciliável com o de Hamon, mas as divergências são grandes. Não à toa, o discurso de Valls pretende representar uma “esquerda viável” contra uma “esquerda utópica”, sem responsabilidade fiscal, que estaria representada por Hamon.
Muito difícil fazer qualquer previsão, mas poderíamos dizer que Hamon está com uma vantagem por duas coisas: pela vitória inesperada e pelo apoio de Arnaud Montebourg, terceiro colocado com cerca de 17% dos votos, e de Martine Aubry, prefeita de Lille, figura importante no PS e segunda colocada nas primárias presidenciais de 2011, vencidas por Hollande.
Seja qual for o resultado, a divisão no interior do PS é grande. Nenhum analista fala em ruptura, mas um resultado favorável a Hamon pode aprofundar a crise no partido, ainda mais que fora do partido existem candidatos que se aproximam do programa dos dois que disputam as primárias: Valls está muito próximo a Emannuel Macron (ex-ministro de seu governo), enquanto Hamon está muito próximo a Jean-Luc Melénchon (antigo senador do PS). Além disso, uma vitória da “esquerda neoliberal” poderá jogar num beco sem saída os setores de esquerda do PS, após o desastroso governo de Hollande. Balizar Valls significa aprovar o governo de Hollande e a continuidade de um projeto de retirada de direitos e ataques as liberdades democráticas.
Comentários