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BRASIL

60 anos depois: a classe trabalhadora e o Golpe de 1964

Fábio José de Queiroz, de Fortaleza (CE)

É pacífico de que não se pode prescindir do exame crítico do passado, sobretudo quando ele nos fustiga a cada passo de nossa caminhada? Parece que não. Ao alcançamos os 60 anos do golpe empresarial-militar de 1964, o presidente Lula, preso e enquadrado na lei de segurança nacional da ditadura, acha que devemos deixar para lá as lembranças desse tempo sombrio.

Aceita essa perspectiva, o que restaria à classe trabalhadora? Apenas conviver com a defesa do legado ditatorial, esgrimida pelo Clube Militar e pelo bolsonarismo ou, quando muito, deixar essa tarefa ao campo acadêmico?

Este artigo parte da compreensão do quanto é grave silenciar sobre esse fato e ressalta a importância decisiva, do ponto de vista da classe trabalhadora, de discutirmos o significado histórico e presente desse longo 1964.

60 aos do Golpe: o militarismo, o bolsonarismo e a classe trabalhadora

Os 60 anos que nos separam do golpe de 1964, afora a possibilidade de compreender uma época permeada de violência política, de tortura, de exílio e de assassinatos, é uma oportunidade de seguir combatendo os ecos da mentalidade autocrática no tempo presente.

No plano da continuidade, a política de ruptura com a democracia política desloca o problema da ditadura para o momento atual. Atentemos, preliminarmente, para as denúncias de tentativas recentes de ações golpistas. Comparadas a 1964, o que muda? Diríamos que as táticas variam, mas o mecanismo de fundo é basicamente o mesmo. É aqui que podemos perceber os vínculos entre o clã Bolsonaro e a história do regime dos generais.

Mais do que negar a ditadura, o bolsonarismo reivindica a violência política que lhe era inerente. Mais do que negar a ditadura, o bolsonarismo faz propaganda dela. Mais do que negar a ditadura, o bolsonarismo busca manipular as consciências, apresentando o sistema de poder ditatorial como a “democracia possível” ante o perigo vermelho. Pior do que tudo isso, o chefe dessa facção política, “O inelegível”, assinala que o único defeito do regime autocrático militar é que ele teria sido moderado.

Por isso, denunciar o que foi a ditadura de 1964 e combater o seu legado estampado no rosto e no programa do bolsonarismo são tão urgentes quanto necessários. Embora aparente ser uma disputa puramente ideológica, a história recente demonstrou que, mais do que isso, essa facção política – aliada a espectros da cúpula militar -, pelo menos por duas vezes, buscou detonar a democracia política e estabelecer um regime de exceção.

Ao olharmos o passado recente, no qual os militares saíram ilesos de 21 anos de tirania, não deveríamos convencionar quanto a necessidade de punir os oficiais golpistas que estiveram juntos do bolsonarismo e de seu projeto golpista? Do mesmo modo, não está nítido o suficiente que, para defender a democracia política e as mudanças sociais, é premente e inadiável julgar e prender Jair Bolsonaro por seus incontáveis delitos?

Não são poucas as vozes, mesmo dentro da esquerda, que defendem uma política de apaziguamento com os generais golpistas e o bolsonarismo. É quase desnecessário dizer que, ao término de mais de duas décadas de sistema de poder militar, a não punição dos golpistas de 1964, em larga medida, explica a desenvoltura daqueles que, por exemplo, promoveram a intentona de 8 de janeiro de 2023. 

Tentar entender o que houve há 60 anos não é apenas um exercício de memória; “para além” disso, trata-se de um exercício de combate. A história não é uma coleção de fatos mortos, como bem sabemos, e as contextualizações rigorosas no trato com o tempo não devem servir de escudo para, ao interpelarmos o passado, não observamos as suas repercussões em nossa época.

Tratando-se do tempo político, defrontamo-nos com o passado em cada esquina enquanto não fazemos um acerto de contas com ele, e esse acerto, presidente Lula, é todo dia, inclusive quando esse passado alcança 60 anos de impunidade.

A questão essencial, seis décadas depois da erupção golpista, é ir além da reflexão lançada. A vigilância precisa ser permanente. Não podemos nos esquecer que os que pousam de democratas – o imperialismo ianque, a cúpula militar, o empresariado, a magistratura, o congresso nacional, a mídia corporativa e até instituições religiosas – estiveram por trás das articulações que redundaram no golpe de primeiro de abril de 1964.

Além do mais, há várias entradas possíveis para as erupções golpistas, conforme testemunhamos aqui mesmo no Brasil, em 2016.

Tanto depois de 1964 como depois de 2016, com efeito, os(as) grandes derrotados(as), os que perderam liberdades e conquistas, foram trabalhadores e trabalhadoras, e cabe às suas organizações empregarem este momento para contribuir para formação política de suas bases. A classe trabalhadora precisa compreender que a memória dos 60 anos do golpe é um modo de defender hoje as liberdades democráticas, e, naturalmente, é também um modo dela se defender da violência política, deixando nítido o quanto é necessário assegurar o velho lema de “ditadura nunca mais”.

Em conclusão

O modelo do silêncio é incompatível com o desenvolvimento de uma prática de superação do despotismo político, que, aliás, tem sido uma das ferramentas históricas empregadas pela burguesia brasileira frente às demandas e manifestações da classe trabalhadora.

Ao longo do tempo, a autocracia, preferencialmente a de corte militar, tem atormentado a sociedade brasileira. Posto isso, 60 anos depois do golpe de Estado que instaurou o mais extenso período de arbítrio na história do Brasil republicano, sem dúvidas, é preciso lembrar esse ato de força e violência. Ser tomado pela amnésia política, principalmente nas condições em que se encontra o país, é abrir caminho para novas erupções golpistas.

Que a classe trabalhadora possa discutir o tema e avançar no plano da sua consciência política, ensejando a formação de uma massa crítica capaz de movê-la rumo à superação política e histórica dessa “página infeliz da nossa história”.