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2023 o ano que se recusou a terminar

Imagem de rawpixel.com, no Freepik

Gabriel Santos

Gabriel Santos é nascido no nordeste brasileiro. Alagoano, mora em Porto Alegre. Militante do movimento negro e popular. Vascaíno e filho de Oxóssi

Fim de ano chegou. Começaram os preparativos para o réveillon. Clima de festas, listas de realizações para 2024, avaliações sobre os últimos 12 meses, confraternização nas firmas e nos movimentos sociais, e na TV os comerciais de bancos emocionam a todos nós. É hora desse site ficar com textos sobre as tarefas para o próximo período e também de avaliações sobre as lutas que aconteceram (ou deixaram de acontecer) em 2023. Um otimismo irracional tenta tomar conta de nossas mentes, enquanto um pessimismo não só da razão, mas espelho da própria realidade, insiste em prender nossos pés no chão e impedir nossa utopia de bater asas.

Esse não é um texto de perspectivas, nem de balanços. Não é um apontamento sobre os caminhos para a luta de classes de 2024. Não é uma avaliação sobre o que fizemos, onde acertamos, e as dificuldades de nosso campo em 2023. Essas linhas são uma lamentação. Nem tão poéticas, nem tão cheias de fé como as do profeta Jeremias no livro bíblico. São somente algumas lamentações de um jovem negro vivendo no sul do Brasil.

2023 foi um ano que demorou para acabar. Nossa sociedade está cansada. O Brasil é um país fraturado socialmente e politicamente. O adoecimento mental é uma realidade. Vivemos no centro de uma crise ambiental que fez com que esse ano fosse o mais quente dos últimos 125 mil anos, e provavelmente foi também o mais frio dos anos que seguem daqui  pra frente, até que pelo menos chegue o fim da burguesia ou o fim da humanidade, sabe se lá qual disso virá primeiro. O imperialismo norte-americano, em crise e decadente, antes de cair transformará o mundo em campos de batalhas e em um enorme cemitério, exportando e forçando guerras em todos os continentes.

Se 2023 demorou pra acabar, 2022 e seu espírito continuam bem vivos. Bolsonarismo, extrema direita brasileira, o fascismo tropical, a expressão do ethos de nossa burguesia, continua vivo, forte, mobilizado. Mesmo após perder as eleições. Mesmo após falhar na tentativa de Golpe. O campo popular governa, mas não tem o Poder. Na verdade, o Presidente Lula governa, mas não governa. O ditado de boteco “venceu mas não levou” explica bem a situação. O congresso, recheado de lupensburgueses, empresários da fé, viciados em TikTok, reacionários até o talo, impõe um parlamentarismo informal, tentando fazer Lula de refém e derrubar os vetos presidenciais.

Se isso tudo (o peso da extrema direita como fator central da realidade, a chantagem do Congresso e do Senado) é bem verdade, também o é que o governo federal por sua própria composição tem limites estruturais, que o impedem de avançar em pautas centrais, e a isso se some a escolhas do governo de “governar a frio”. 

O calendário eleitoral esmaga a esquerda. Entre 2022, se pensa 2024, se projeta 2026. O trabalho de base se perde entre as datas. Não somente das eleições burguesas (por mais que seja cringe usar esse termo hoje em dia,  ainda acho o mais adequado), mas dentro do próprio movimento estudantil e sindical, dentro de nossos próprios partidos, entre conunes e consol, o calendário eleitoral impõe um peso em nossa lombar, assim como os céus consumiam as costas de Altas.

Poucas são as siglas, correntes e lideranças políticas que sobrevivem no confronto entre a institucionalidade e a luta popular. Não se trata de fazer pouco caso do tema eleitoral, em mim a ira anarquista nunca teve lugar, nem mesmo na adolescência. Também não é sobre por um antagonismo indissociável entre a luta parlamentar, o trabalho de massa e a construção de uma organização de vanguarda. O parlamento é moldado, molda e faz parte da luta de classes, as vezes é ele o principal polo dessa luta. A realidade é contraditória e a contradição entre “gabinetes parlamentares e a rua” pode ser resolvida positivamente. A questão é que são poucos marinheiros que conseguem fazer essa navegação.

Depois de um texto recheado de um ar tão negativo, é possível terminar pela positiva e evocando o sentimento de esperança? Acredito que sim. Afinal, só fazemos festa porque a vida é difícil, e merecemos momentos de lazer e impor a imaginação criativa. Do mesmo modo, só é possível ter esperanças pois temos lamentações. É preciso achar a vida entre as frestas do dia a dia. 

Os rituais, as comemorações são parte de quem somos como seres humanos. Fazem da vida algo menos mecânico do que a ida ao trabalho, o retorno no ônibus e se sentar na mesa para jantar. Comemorações e realizações de festas dos mais diversos tipos. Aniversários, batizados, festas religiosas, comemorações por conta do título do time no brasileirão, ou somente sua permanência no campeonato, um samba numa quinta à noite. 

Registrar e comemorar o fim e início de ciclos sempre fez parte da experiência humana. Os povos antigos comemoravam o início da plantação e o fim da colheita. O nascimento e também o retorno do corpo à terra. Nós comemoramos fim e inícios de anos.

O ano novo e o natal tem esse marcador simbólico, e porque não espiritual, de reflexão sobre o que foi e o que virá, mas também tem seu marcador íntimo, e porque não político. O sentimento de fraternidade (a promessa menos comprida da revolução francesa), de solidariedade com o próximo, de buscar a alegria do outro, de está próximo, de frear o ritmo de correria do dia a dia, de festejar a vida pelo simples fato dela ser vida, de esperançar.

Justamente por isso tudo, por saber que o amanhã não se transforma em um passo de mágica, ou virada de calendário, mas sim por ações de mulheres e homens inseridos na história, que podemos estar alegres. Pois a chegada do amanhã traz esperança de dias melhores, e sem essa esperança, essas mulheres e homens que fazem a história sobre condições que a encontram, não poderão construir o amanhã.  Como disse um velho sábio “sempre haverá o próximo nascer do sol”.

Afinal, o Vasco não foi rebaixo para a segunda divisão e ano que vem teremos Payet nos conduzindo ao título carioca. Afinal, depois de quase quatro anos estamos erguendo um centro cultural no centro da periferia mais populosa de Porto Alegre. Afinal, o Soweto se reuniu para fazer uma turnê especial. Afinal, o governo anunciou 100 novos institutos federais, novos concursos, aumento do salário mínimo, o preço dos alimentos estão caindo… Afinal, a história continua e a luta de classes também. 

Em janeiro, ou depois do carnaval, tudo pode ser diferente. Poderemos cantar mais, poderemos sorrir mais. Poderemos vencer mais as batalhas. Poderemos aproveitar mais rodas de samba. Poderemos ver mais filmes e novelas. Poderemos ser mais humanos. 

Que 2024 nos ajude a se aproximar da máxima de Brizola “igualdade para todos e privilégios apenas para as crianças”. Que os nossos menores sigam brincando, e nós adultos consigamos sorrir e ser amado.

Fé no futuro.

Laroyê