Na primeira semana de outubro, chegou à Câmara Municipal de São Paulo, enviado pelo prefeito Ricardo Nunes, o projeto de revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS), mais conhecida como Lei de Zoneamento.
A proposta chegou na Casa legislativa após um processo de elaboração vergonhoso por parte do Executivo, que apenas “reciclou” audiências públicas e um diagnóstico de seis anos atrás, quando a cidade era outra e nem sequer havia passado pela pandemia da Covid-19, o que com certeza alterou consideravelmente as dinâmicas urbanas e acirrou ainda mais diversos dos problemas crônicos da cidade de São Paulo.
O projeto enviado pela prefeitura não faz rodeios e trata majoritariamente do que interessa ao mercado imobiliário e financeiro. É uma proposta fraca, cheia de retrocessos e que passa longe de ser apenas uma “adequação legislativa ao novo Plano Diretor”, como afirma o prefeito.
Dentre muitas violações de direitos coletivos, destacamos a seguir cinco pontos críticos dessa primeira versão do PL que não podemos aceitar.
1. O projeto ignora as necessidades das periferias
Como dito, Ricardo Nunes não esconde que esse é um projeto de lei para tratar dos assuntos do mercado e não da população paulistana. Em toda a proposta enviada à Câmara Municipal, não há sequer uma menção a moradia popular e ZEIS (Zona Especial de Interesse Social). Nem parece que se trata de uma lei urbanística para uma cidade que tem um déficit habitacional estimado em 369 mil domicílios.
É sabido que no último período houve uma profusão de construções dadas formalmente como Habitação de Interesse Social, mas que, ao fim e ao cabo, não atenderam à população mais vulnerável da cidade, mas sim às grandes incorporadoras e construtoras que venderam esses imóveis a preços exorbitantes.
Isso significa que porções de terra que deveriam ser destinadas a uma parcela da população foi consumida por outra através de HIS irregulares, gerando, dessa forma, uma dívida do município com milhares de famílias que aguardam na fila de cadastro da Secretária de Habitação e que poderiam ter sido finalmente atendidas. Sendo assim, uma política justa e urgente em relação à moradia popular é a de recuperação de tudo que foi perdido a fim de recompor o estoque de ZEIS na cidade.
Ainda, é preciso tratar também da redução da desigualdade social. Dizer isso no meio urbano é afirmar a necessidade de planos de qualificação dos bairros periféricos, o que está completamente ausente da proposta colocada para debate pelo Executivo municipal. Afinal de contas, o que não é Zona Eixo de Estruturação e Transformação Urbana não recebe atenção da prefeitura, o que nos leva ao próximo ponto.
2. Ampliação dos benefícios ao mercado para muitas regiões da cidade
O aumento das Zonas Eixo de Estruturação e Transformação Urbana (ZEU) é um o ponto central de interesse do governo e, por isso, foi um dos mais debatidos durante a discussão da revisão do Plano Diretor no primeiro semestre deste ano. Os eixos são as vizinhanças das estações de trem, metrô e dos corredores de ônibus, onde há incentivos públicos para a verticalização e supostamente para adensamento populacional – daí o interesse do mercado.
A revisão do Plano Diretor aumentou, sob inúmeros protestos da população, de 600 para 700 metros os raios das zonas de eixo no entorno de estações de metrô e trens. Nos corredores de ônibus, o tamanho desses raios subiu de 300 para 400 metros. Dentro dessas áreas, é muito mais barato construir, além de não existir limite específico de altura para prédios.
O projeto de lei de Ricardo Nunes aplica essa expansão indiscriminadamente, adentrando bairros extremamente consolidados, como Pinheiros, Vila Madalena, Vila Mariana, dentre outros. Usando o falso argumento de criar habitação para quem precisa, está óbvio que o único interesse com essa medida é destruir territórios, expulsar seus atuais moradores e criar produtos imobiliários para especulação com altos preços, os quais 90% da população da cidade não pode comprar.
A proposta da prefeitura agora traz um acréscimo de 22 km² de ZEUs no município. Considerando essa expansão, teremos 48% zonas de eixo ativas a mais do que tínhamos em 2016 (54,9 km²). Em 2024, alcançaria a marca de 81,2 km² de ZEUs na cidade.
Além dessa ampliação, há uma mudança absurda em relação aos eixos previstos, onde os tão desejados incentivos e a permissão para a construção de prédios sem limite de altura já são liberados a partir do início da obra de uma nova estação de metrô ou de um novo corredor de ônibus, e não da sua efetiva instalação e funcionamento.
Agora, com a nova proposta, a “ativação” dos eixos – ou seja, a liberação para concessão dos benefícios à iniciativa privada – poderia ocorrer antes mesmo da ordem de serviço para o início das obras de infraestrutura.
3. Retrocessos em políticas ambientais
A proposta do governo autoriza o funcionamento de comércio de alimentos para público de até 500 pessoas em Zonas Especiais de Proteção Ambiental (ZEPAM). Essas zonas são porções do território destinadas a preservação, proteção e recuperação do patrimônio ambiental. Elas abrangem os parques municipais atuais e os previstos no Plano Diretor, o entorno das represas Billings e Guarapiranga e trechos com remanescentes de Mata Atlântica e vegetação nativa em geral.
Atualmente, são permitidos restaurantes, lanchonetes e outros espaços do setor de alimentação de pequeno porte (para até 100 pessoas), apenas em ZEPAM de parques e mediante a avaliação de órgão especializado. Essa restrição vale inclusive em parques grandes e concedidos à iniciativa privada. No Parque do Ibirapuera, por exemplo, o limite de público é de até 100 pessoas para restaurantes, lanchonetes e afins.
Com a revisão do Plano Diretor, grande parte do entorno das represas passou a ser considerada como parque. O trecho que permite esse avanço do comércio de alimentação não especifica quais atividades estariam excluídas da autorização, abrindo uma brecha perigosa para ainda mais degradação desses territórios, os quais deveriam ser preservados e recuperados ao invés de comercializados para gerar lucros a grandes empresas que não têm nenhuma preocupação com a conservação das áreas verdes e águas da cidade.
E não para por aí o retrocesso no tema ambiental. A proposta também apresenta, em seu Quadro 6, um planejamento de obras de drenagem que são completamente contrárias a todos os estudos e orientações atuais para desenvolvimento de cidades resilientes, aquelas que têm a capacidade de lidar e reduzir os efeitos nefastos de desastres naturais.
A nova proposta traz uma variedade de projetos de canalização de rios e construções de piscinões, dentre outras obras que já são comprovadamente prejudiciais à cidade por impermiabilizarem ainda mais o solo, não permitindo que as águas sigam seu curso natural. Isso poderá causar mais enchentes, alagamentos e outras tragédias.
4. Falsa preservação das vilas
As vilas de casinhas que se vê com frequência em várias regiões de São Paulo contam um pouco da história de uma cidade que a capital já foi, dos seus trabalhadores industriais e de um modo de vida que não existe mais. Por isso, são tão reivindicadas como patrimônio cultural e sua preservação tão importante para que o mercado e seus interesses financeiros não apaguem o nosso passado em nome do lucro.
Essa demanda tem sido vocalizada principalmente pelos moradores organizados das vilas que são frequentemente assediados por construtoras e incorporadoras que têm interesse nos terrenos.
O PL de Ricardo Nunes faz uma tentativa de apaziguar essa reivindicação de proteção das vilas sem resolver o problema, falsifica uma solução. Ele indica que o reconhecimento de um conjunto como vila dependerá de uma análise caso a caso por um órgão técnico municipal. Isso é muito parecido com o que já acontece atualmente e completamente diverso do que se busca: uma proteção automática às vilas.
Outro problema é a caracterização das vilas contida no projeto, a qual inclui atividades comerciais e de serviços. Fora isso, a proposta permite o remembramento de lotes das vilas se houver anuência da maioria dos proprietários.
5. Descaso com a proteção do patrimônio cultural
Com o avanço dos interesses da especulação imobiliária sobre a cidade, cresceram exponencialmente as demandas por proteção ao patrimônio histórico-cultural contra a devastação do lucro. Essa é mais uma sonora demanda da população paulistana que não é encontrada no atual projeto de revisão da Lei de Zoneamento.
Há um pequeno avanço presente na proposta, pois ela prevê que todos os bens culturais poderiam ser demarcados como Zona Especial de Preservação Cultural (ZEPEC), porém não há nenhum mapa apontando em quais locais essas zonas seriam marcadas.
Além disso, um golpe certeiro é dado: diversos tombamentos determinados pelo Compresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) não figuram na relação de espaços excluídos dos efeitos dos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana, ficando assim passíveis de toda destruição desenfreada que tomará conta dessas zonas.
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