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BRASIL

Leiloando prisões: os perigos da privatização de presídios no Brasil

A atualização do Decreto de Temer e a Privatização do presídios no Brasil

Thaíssa Kratochwill, do Rio de Janeiro (RJ)
Patrícia Alves/B3

Em 2016, no início do governo ilegítimo de Michel Temer, foi criado o Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), que entregava diversas áreas administradas pelo Estado à privatização. Ocorre que em abril de 2023, o decreto que já era ruim, ficou ainda pior, pois teve sua redação alterada pelo Decreto Nº 11.498 e passou a incluir, entre outros, incisos relativos à saúde, à educação e à segurança pública e sistema prisional. A assinatura do Decreto por Alckmin e Haddad inclui o Brasil no rol dos países que abrem a administração da segurança pública e o sistema prisional para a iniciativa privada, o que pode tornar a situação da população carcerária nacional ainda mais degradante do que já é. Isto porque a legislação define que os projetos de investimento privado terão autonomia para regular todas as esferas das instituições em que forem aplicados, desde à implantação, ampliação, manutenção, recuperação, adequação ou modernização de empreendimentos em infraestrutura, entre outros.

A partir deste novo decreto, houve anúncio do BNDES de que financiará com R$ 150 milhões um projeto apresentado pelo governador Eduardo Leite para a privatização de um complexo prisional em Erechim/RS1. Este financiamento é o primeiro, que funcionará como uma espécie de teste a ser replicado nos presídios dos demais estados.

Não bastasse a iniciativa de tomar uma decisão como essa com base em decreto, sem divulgação e sem consulta às entidades que trabalham com o tema, no último dia 6 já foi realizado o leilão para a “venda” deste complexo penitenciário, que foi entregue à empresa “Soluções Serviços Terceirizados” única presente no evento, e que já teve serviço vetado no estado do Rio por irregularidades sanitárias na prestação dos serviços.

Mas, independentemente da qualificação das empresas privatizadoras, o próprio projeto de privatização do sistema carcerário é o problema principal, o que pode ser demonstrado observando a realidade mundial em relação à questão. Os EUA, maior exemplo de privatização das penitenciárias que se observa historicamente, tanto pela extensão temporal deste projeto como pelo volume de pessoas afetadas por ele, escancara a relação entre privatização prisional, trabalhos forçados impostos aos condenados, encarceramento em massa e indústria da prisão.

Desde os tempos medievais, as Casas de Correção, eram para onde o país enviava os considerados vagabundos e mendigos para trabalhavam para empregadores privados, confundia-se o cumprimento de pena e a realização de trabalhos forçados para o mercado privado”2. Já na modernidade, criou-se e exportou-se o modelo penitenciário do silent confinement, no qual os presos eram isolados no período noturno e durante o dia eram mantidos em trabalho coletivo, no ritmo das modernas fábricas e ainda mais intenso, considerando que o regime diário de trabalho chegava a atingir as dez horas diárias, durante todos os dias da semana3.

Neste processo, o cumprimento da pena é (como tudo no regime do Capital) transformado em Mercadoria e se torna – como não poderia deixar de ser – alvo da cobiça das empresas, sempre prontas a explorar ou escravizar uma mão-de-obra que não exige a contrapartida da garantia de direitos trabalhistas.

A partir disto, na história mais recente do sistema prisional americano, o mundo acompanhou, além do fracasso e insustentabilidade econômica do modelo privatista, a principal consequência nefasta da privatização dos sistemas prisionais: a tendência ao encarceramento em massa. Isto se dá porque, para além de as prisões serem um estoque de mão-de obra barata ou gratuita que exige pouquíssimo investimento para operar o projeto produtivo empresarial, mas também porque os contratos de privatização prevêem o repasse às empresas pelo Estado de valores adicionais a cada novo preso que ingressa no sistema. Nos contratos firmados com o governo Federal Brasileiro, há a absurda exigência de taxas mínimas de lotação das unidades prisionais, além dos valores adicionais por cada preso4. Assim, não é difícil visualizar a relação concreta entre privatização e superencarceramento, na medida em que, quanto mais presos, mais as empresas que administram os presídios lucram.

Além dos efeitos que já puderam ser observados no contexto internacional, há que se apontar que, em solo brasileiro, a importação deste modelo pode ter efeitos ainda piores, considerando que na realidade carcerária nacional, há um outro tipo de organização que envolve a presença de grupos faccionais, cujos efeitos dentro e fora das prisões não pode ser minimizado. Por um lado, estudos demonstram que, para administrar a sociabilidade no interior do cárcere, arranjos e práticas de corrupção de agentes de segurança e administração penitenciária pelas facções são recorrentes. Por outro, quando medidas drásticas que podem prejudicar o funcionamento das facções são tomadas por agentes governamentais, as respostas faccionais são intensas e violentas, ultrapassando os muros das prisões e atingindo a população como um todo, como temos observado nas revoltas ocorridas nos últimos anos comandadas pelas facções criminais5.

Os problemas do incremento do encarceramento em massa e da violência desencadeada pela insatisfação da população carcerária em relação a estas privatizações são apenas alguns de uma série de outros que, visivelmente acompanhariam este processo. Além de ignorar o fracasso da privatização prisional no país que tanto lhe serve de referência, em relação ao manejo das facções o governo atual afirma ter elaborado uma nova estratégia.

O Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas do Ministério de Flávio Dino

No último dia 2, o Ministério da Justiça realizou uma cerimônia de apresentação do Programa Nacional de enfrentamento das Organizações Criminosas6. Apesar de vangloriar-se por ser uma iniciativa inovadora, que se baseia em dados científicos para “gerar uma visão sistêmica sobre as Organizações Criminosas”, não se define o que seria esta visão sistêmica e o próprio público-alvo do Programa são os agentes do Sistema Único de Segurança Pública – SUSP, o que demonstra o entendimento implícito de que a questão das organizações criminosas pode ser combatida apenas na esfera da segurança pública. Esta evidência, em conjunto com os eixos norteadores do Programa, são clara contradição à afirmação de que o Programa se baseia em estudos científicos, pois os mais sérios deles já apontam, há décadas, o caráter intersetorial das medidas a serem tomadas no trato da questão criminal.

Um exemplo disto é que, durante todos os pronunciamentos da equipe responsável pela criação e condução do Programa aos jornais, se falou que não haveria Intervenção Federal no Rio de Janeiro, mas apenas “cooperação” vinda da esfera nacional, tampouco haveria operações policiais, apenas “incursões policiais pontuais, sem uso exagerado da força”, discurso vazio de significado e inverídico, bastando, para sua constatação, uma mera olhada ao redor nas ruas da cidade (embora os efeitos mais nefastos se verifiquem, como sempre, nas favelas, territórios de moradia da fração mais pobre e negra da classe trabalhadora)7.

Como se não bastasse a série de equívocos e contradições presentes na iniciativa, a mais surpreendente delas é a de que o Programa não existe. Isto mesmo: apesar da cerimônia para apresentação do “Programa”, o mesmo ainda está em fase de elaboração, e seu Plano de Ação deverá ser, efetivamente, apresentado em 60 dias. Até lá, o Ministério seguirá colocando as polícias e forças de guerra nas ruas, fazendo sabe-se lá o que e, ao que tudo demonstra, uma repetição das políticas de confronto, extermínio e violência (tiroteios, prisões, mortes, crianças sem escola, camelôs e imigrantes expulsos de seus locais de trabalho precarizado) em relação à população do Rio de Janeiro, que já não espera mais nada de novo.

Tanto a aposta no novo Decreto assinado por Alckmin como no Novo Programa criado por Flávio Dino são equívocos que ignoram o acúmulo histórico e científico que já se tem acerca das temáticas da segurança pública e das prisões no Brasil. Insistir em aplicar esse tipo de medida neoliberal é chancelar a continuidade do massacre que já está em curso justamente contra as populações que o novo governo diz defender. Que fazer, então diante de tão desoladora conjuntura?

Uma breve contribuição ao debate

Uma resposta às arbitrárias e equivocadas ações do novo governo, somente pode advir das organizações políticas, que devem dar ampla visibilidade ao que vem acontecendo em termos de decisões governamentais e convocar as parcelas populares progressistas a se manifestarem no sentido de fazer recuar os projetos de privatização e de Intervenção Federalem curso, impedindo a superposição de “novas” formas de massacre. Neste sentido, o educador popular Thiago Torres (chavosodausp.02) tem feito um trabalho quase que solitário de conscientização e mobilização.

Em termos de análise e de programa, as organizações podem contar com a produção acadêmica nacional que, não obstante ter ficado – em sua maioria – por décadas propondo medidas reformistas e conciliatórias, hoje começa a apresentar estudos criminológicos fundamentais para a radicalização do debate. Um deles é o de Alemany8, que levanta a acertada tese de que o sistema punitivo nacional foi, desde a colonização até os dias atuais, instrumento de contenção e punição de qualquer insurgência ou manifestação popular de interesse da classe trabalhadora. Desde os massacres desempenhados pelas forças policiais nas revoltas populares (Malês, Canudos, etc.) até as duras repressões às greves e manifestações de rua até hoje, fica claro que o sistema punitivo não serve a um objetivo de proteção da população ou de ressocialização da população carcerária, mas sim ao de impedir qualquer insurreição ou exigência por direitos que contrarie a lógica do Capital. A posição ocupada pelo Brasil no sistema subimperialista, que o empurra a esse estado de coisas, impede, por exemplo, a tomada de uma medida muito promissora para a mitigação dos problemas relativos à questão criminal, que é uma política de pleno emprego baseada na autônoma valorização da esfera produtiva nacional, o que exige mudanças estruturais para sua resolução.

Assim, os estudos da criminologia crítica nacional devem ser popularizados e incorporados nas pautas das organizações políticas da esquerda no país, qualificando seu potencial de análise conjuntural e orientando a mobilização popular no sentido de ações estratégicas, rompendo com a tradição de relegação da questão criminal a segundo plano, agora munidas da consciência de que o sistema punitivo é um robusto e bem disfarçado entrave à Revolução e a qualquer luta por uma vida melhor para a classe trabalhadora.

Thaíssa Kratochwill estuda as facções criminais brasileiras, cursa doutorado em Saúde Pública pela Fiocruz-RJ e Pós-Graduação em Direito Penal e Criminologia pelo Introcrim. É psicóloga e militante pelo PSoL-RJ.
1 BRASIL. BNDES. Estado do Rio Grande do Sul relança edital para Complexo Prisional de ErechimData: 25 de abril de 2023. https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/conteudo/rs-relanca-edital-para-complexo-prisional-de-erechim
2 RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia : Revan, 1939. v. 3.
3 ANITUA, G. I. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan : Instituto Carioca de Criminologia, 2008. v. 15.
4 Nota técnica conjunta contra a privatização no sistema prisional e os recentes incentivos do Governo Federal para a transferência da gestão dos presídios à iniciativa privada. Data: 21 de setembro de 2023. Disponível em: https://bit.ly/notatecnicacontraprivatizacao.
5 G1. Entenda o que pode estar por trás do histórico de ataques de facções no RN. Data: 16 de março de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2023/03/16/entenda-o-que-pode-estar-por-tras-do-historico-de-ataques-de-faccoes-no-rn.ghtml.
REVISTA EXAME. Ceará errou declarando fim da divisão de prisão por facção, diz sociólogo. Data: 7 de janeiro de 2019. Disponível em: https://exame.com/brasil/ceara-errou-declarando-fim-da-divisao-de-prisao-por-faccao-diz-sociologo/.
6 Lançamento do Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas. Data: 02/10/2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=5&v=L9iEiT1fmU4&embeds_referring_euri=https%3A%2F%2Fwww.google.com%2Fsearch%3Fq%3Dapresenta%25C3%25A7%25C3%25A3o%2Bprograma%2Bcontra%2Borganiza%25C3%25A7%25C3%25B5es%2Bcriminosas%26rlz%3D1C1FCXM_pt-PTBR989B&source_ve_path=Mjg2NjY&feature=emb_logo
7 G1. Operação no São Carlos para prender criminosos que fugiram da Maré deixa 2 mortos. Data: 03/10/2023. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/10/03/policia-faz-operacao-do-morro-do-sao-carlos.ghtml.
G1. Megaoperação policial em favelas do Rio causa fechamento de 70 escolas e afeta mais de 23 mil alunos. Data: 09/10/2023. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/10/09/megaoperacao-policial-em-favelas-do-rio-causa-fechamento-de-70-escolas-e-afeta-mais-de-23-mil-alunos.ghtml.
UOL. Rio tem segundo dia de operação policial na Maré e Cidade de Deus. Data: 10/10/2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/10/10/segundo-dia-operacao-mare-rio.htm?
8 ALEMANY, Fernando Russano. Punição e estrutura social brasileira. 2019. Dissertação (Mestrado em Direito Penal) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/D.2.2019.tde-02072020-153548. Acesso em: 2023-10-11.