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Arcabouço Fiscal – o mais novo capítulo de uma longa (e dolorosa) história

Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Elaine Behring

Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Foi presidente da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), na gestão 2009-2010 e do Conselho Federal de Serviço Social (1999-2002). É professora associada da UERJ, na Faculdade de Serviço Social, onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS), e o Centro de Estudos Octavio Ianni (CEOI). Tem publicações na área de política social, orçamento público, fundo público e serviço social.

No dia 21 de agosto de 2023, foi aprovada na Câmara dos Deputados a proposta final do arcabouço fiscal (PLP 93/2023), desenhada pela equipe econômica do recém-eleito Governo Lula, sob a liderança de Fernando Haddad. No momento em que escrevo estas linhas, a proposta segue para sanção presidencial. Neste artigo, que retoma a minha coluna no EOL, problematizo a nova “ancoragem” fiscal à luz do que venho caracterizando como um ambiente de ajuste fiscal permanente, em curso no Brasil desde os anos 1990, e que se combinou às contrarreformas do Estado e ao subfinanciamento e/ou desfinanciamento crônicos de políticas públicas e sociais fundamentais ao longo dessas décadas, mesmo com tonalidades e gestões diferentes dos governos de turno.

Com certeza, o momento mais deletério desse período ocorreu sob o Novo Regime Fiscal, após o golpe de novo tipo que tivemos em 2016, e a subsequente aprovação da PEC da Morte ou do Fim do Mundo (EC 95) – o tão perverso como inviável teto de gastos de Michel Temer – dentre outras medidas destinadas a satisfazer a sanha das instituições financeiras, a exemplo da EC 93 que ampliou a Desvinculação de Receitas da União para 30% dos impostos e contribuições, tendo em vista a alocação da maior parte destes recursos para o pagamento de juros, encargos e amortizações da dívida pública todos os anos. Vale chamar atenção: a DRU não está sendo lembrada e segue intocada na nova proposta.

Antes de 2016, obviamente, não estávamos no melhor dos mundos pois sob o tacão do ajuste fiscal permanente (ou estado de urgência econômica, segundo Leda Paulani) vivemos as contrarreformas da previdência (1998, 2003 e 2015) e um subfinanciamento crônico das políticas sociais, ainda que sob governos distintos. O teto de gastos aprovado em 2016, conhecido como Novo Regime Fiscal, nos levou a sair de uma condição de subfinanciamento para o desfinanciamento de políticas públicas decisivas, sendo o maior exemplo disso a saúde, mesmo com o advento da pandemia de Covid 19. Penso que o novo arcabouço fiscal, tudo indica, não nos levará a um modus operandi muito distinto do período anterior ao teto de gastos, pois que se inscreve na lógica do ajuste fiscal permanente de contenção dos gastos primários para cumprir as obrigações financeiras, ainda que traga novidades e apostas que poderão ou não se concretizar.

As perguntas que não querem calar são: estamos diante de mais um momento de concessão à chantagem do mercado, e assistindo a uma espécie de rendição precoce diante das pressões, onde o que busca se mostrar diferente do teto, é uma espécie de engenharia fiscal para continuar constrangendo os gastos primários do Estado brasileiro, enquanto sequer se coloca em questão os gastos financeiros, sempre intocáveis, mesmo sendo o primeiro item de gasto do Orçamento Geral da União? Para que o constrangimento do financiamento das políticas públicas e sociais – com risco de cortes e contingenciamentos frequentes de recursos e direitos – não seja tão significativo, uma Reforma Tributária progressiva e que envolvesse a regulamentação do Imposto sobre as Grandes Fortunas, seria imprescindível: esse Congresso Nacional de maioria ultraneoliberal e conservadora, tomado majoritariamente por predadores das mais variadas espécies seria capaz de aprovar uma reforma tributária digna deste nome? E como se desenharia o financiamento da seguridade social, com a unificação de impostos e contribuições constitucionalmente definidas como suas fontes de recursos? A seguridade social passaria a disputar recursos – hoje já muito diminuídos pelos impactos do ajuste – no bolo do tesouro nacional? O terceiro governo Lula sabota sua própria largada, comprometendo suas promessas mais progressistas ou estaria criando condições político-econômicas para realizá-las num terreno movediço e incerto, ainda marcado pela presença significativa do neofascismo?

1 Em que consiste o arcabouço fiscal?

Vejamos quais são as linhas centrais da proposta aprovada e quais seus possíveis impactos. Em matéria do jornal O Globo de 2 de junho de 2023, há um caderno especial sobre o arcabouço fiscal, que reproduz um bate-papo no âmbito da Confederação Nacional do Comércio (CNC), e que contou com Simone Tebet (Ministra do Planejamento) e Gabriel Galípolo (Secretário Executivo do Ministério da Fazenda). Ambos buscam tranquilizar o mercado financeiro, enunciando o caráter fiscalista da proposta. Galípolo afirma que o arcabouço é “muito mais apertado do que parece”, e que vai impor um debate sobre a disposição do país de espremer ou não políticas públicas prioritárias. Nos perguntamos se, em nome dos humores do mercado financeiro, especialmente dos credores da dívida pública, políticas públicas prioritárias deveriam ser submetidas mais uma vez a essa lógica. Mas sigamos. Ambos falam de metas audaciosas, porém desafiantes, críveis, flexíveis e sustentáveis, mesmo com as inserções da Câmara na primeira votação, onde houve derrotas importantes para o governo que são minimizadas pelos interlocutores em questão. Mas registram que a proposta, a seu ver, resgataria o papel do Estado e o lugar dos mais pobres no Orçamento, e que não defendem “o mesmo ajuste de sempre”. Evidentemente há algumas apostas centrais para que a proposta não reedite uma espécie de mais do mesmo de antes de 2016. Primeiro, de que a nova regra fiscal aponte para uma queda da taxa de juros, evitando a explosão da dívida pública e o aumento (ainda maior) dos gastos financeiros, que são a gambiarra maior do orçamento público brasileiro, contando com a “sensibilidade” de um COPOM bastante contaminado pela lógica monetarista de Roberto Campos Neto, mais interessado em sabotar o novo governo do que na viabilização de políticas públicas e sociais e do “crescimento econômico”. A decisão de junho/2023 de manter a taxa de juros SELIC em 13,75%, com uma inflação acumulada abaixo da meta, dólar caindo e PIB subindo (1,9%), e com sinalizações ainda mais positivas de crescimento, inclusive de agências internacionais de notação de risco (em que pese nossas críticas a essas instituições) é exemplar da sabotagem. Em julho, após muita pressão, a taxa de juros SELIC caiu 0,50%, ou seja, foi para 13,25%, ainda altíssima diante dos indicadores econômicos. A segunda aposta prevê um aumento da arrecadação nos próximos anos, que seria decorrente do crescimento econômico com controle da inflação; da revisão da renúncia fiscal (gastos tributários) que vem sendo praticada em vários setores, inclusive em detrimento do financiamento das políticas sociais – donde a inconsistência econômica e ecológica dos recentes subsídios aos carros populares e caminhões; e de uma reforma tributária, cujas tendências ainda não estão evidentes, pois que não há um texto definido. Sobre esta última, há uma comissão mista da Câmara e do Senado para unificar projetos de lei que já vinham tramitando no Congresso. Contudo, nada indica um caráter progressivo e efetivamente reformista, que reverta a marca de regressividade da estrutura tributária brasileira por parte deste Congresso. O recente debate sobre a tributação das movimentações das off-shore, retirada pelo governo de medida provisória para viabilizar a correção do salário-mínimo e da tabela do imposto de renda, é expressão barulhenta da localização parlamentar, especialmente da Câmara, seu braço mais reacionário. E, de outro ângulo, preocupa muito a condição do financiamento da seguridade social, núcleo duro da política social (previdência social, saúde, assistência social e alguns programas para os trabalhadores – abono salarial e seguro-desemprego), cujos recursos deverão ser disputados a partir da unificação de impostos e contribuições, a exemplo da COFINS, que hoje constituem suas fontes de financiamento. Essa crítica já fazíamos desde a proposta de Lula de reforma tributária nos governos anteriores.

O argumento falacioso de realizar um ajuste fiscal para estancar a dívida pública é um velho conhecido, repetido à exaustão há décadas e que é novamente reposto no novo arcabouço fiscal. Ele esteve e está no âmago da contrarreforma do Estado no Brasil desde o PDRE/MARE (1995), que venho caracterizando como um documento orientador de período, onde a Constituição de 1988 aparece como “inimiga” da estabilidade fiscal e fiadora da “gastança”. Ao fim e ao cabo, a dívida pública cresceu ao longo dos quase trinta anos de ajuste fiscal permanente, e a economia política brasileira esteve sob a regência da socialização dos custos do pagamento de juros, encargos e amortizações da dívida – volto a sublinhar, o primeiro item de gastos do orçamento público nacional – remunerando regiamente os credores, especialmente com a taxa de juros nas alturas, o que nos mostra a quem servem Campos Neto e a ideia falsa e idílica de “autonomia do Banco Central”. Portanto, se trata fundamentalmente de realizar uma gestão da economia política brasileira que preserve os gastos financeiros do Estado, mesmo que a maioria da população seja penalizada com a ausência/precarização de políticas públicas e sociais que concretizam seus direitos fundamentais. Essa lógica, a meu ver, permanece intocada na engenharia econômica erguida por Haddad e sua equipe, o que pode comprometer a realização das promessas de campanha de Lula e mesmo as apostas antes sinalizadas, opinião que compartilho com as análises críticas e agudas de Evilásio Salvador (economista; Outras Palavras, maio de 2023), David Deccache (assessor parlamentar e economista) e Pedro Rossi, economista1. Observemos mais de perto as medidas propostas.

O arcabouço fiscal veio para enterrar a Emenda Constitucional 95, mais conhecida como “do fim do mundo” e “da morte”. Seu caráter ultraneoliberal ficou patente e fez com que as acusações de pedaladas fiscais sobre Dilma Roussef parecessem “café pequeno”, dadas as voltas mirabolantes, na condição de calamidade pública, dadas por Guedes e Bolsonaro. O teto de gastos praticamente se auto extinguiu já na PEC de transição, e que impôs ao novo governo apresentar um projeto de lei de nova âncora fiscal, desconstitucionalizando o tema – o que é muito bem-vindo, pois se trata de desmontar uma artimanha golpista. O caráter supostamente mais flexível da norma aponta para que os gastos públicos primários cresçam entre 0,6% e 2,5% acima da inflação, assumindo um caráter anticíclico: se a economia cresce menos, o governo tem espaço para aumentar despesas e vice-versa. No entanto, a expansão dos gastos entre as bandas acima está atrelada ao aumento da receita, pois que só se pode incrementar o gasto público no equivalente à 70% do incremento real da arrecadação no ano anterior (Ex: entre julho de 2022 e junho de 2023). Se o governo ficar abaixo da meta fiscal, esse patamar de incremento cai para 50%. Se ficar acima, os recursos irão para investimentos.

Quanto às metas fiscais, a proposta parte de uma previsão de déficit fiscal de 1,3% em 2023; persegue o déficit zero em 2024; e aponta um superávit primário de 0,5%, em 2025, e 1%, em 2026 (sobre o PIB), com possíveis oscilações de 0,25% para cima ou para baixo para que se considere a meta cumprida. O arcabouço fiscal aprovado na Câmara diminuiu a proposta do governo de um piso para investimentos no OGU de 75 bilhões, aprovando 0,6 do PIB, ou seja, cerca de 60 bilhões hoje. Este patamar, assim, vai variar e depender de um contexto de crescimento do PIB nos próximos anos e da realização das metas fiscais, como dito acima. É evidente que a maioria da Câmara quis deliberadamente limitar os investimentos do projeto do novo governo eleito e, no conjunto, reduzir e controlar o espaço fiscal do novo governo.

O arcabouço estabelece uma série de “gatilhos” e parâmetros em caso de descumprimento das metas fiscais. Se for por um ano, o governo não pode criar cargos ou funções, alterar carreiras ou elevar auxílios do funcionalismo; e conceder incentivos fiscais às empresas. Por dois anos seguidos, as medidas recrudescem: proibição de aumento salarial ao funcionalismo e de concursos públicos. O Presidente pode enviar mensagem ao Congresso agregada a um projeto de lei propondo aumento de receitas e cortes de gastos frente a este cenário, cuja análise de impacto pode reduzir os gatilhos. E é nítido que os primeiros a serem atingidos em caso de não cumprimento de metas serão os trabalhadores do serviço público, a Geni do ajuste fiscal permanente ao longo de todos esses anos, para os quais não houve nenhum novo gesto político por parte do Congresso. Mas não satisfeitos, os deputados introduziram no projeto que, se as despesas obrigatórias chegarem a 95% dos gastos totais, isso será considerado como descumprimento de meta. E se houver uma previsão de descumprimento da meta, o governo federal pode lançar mão dos conhecidos e trágicos contingenciamentos: de investimentos, custeio da máquina pública e emendas parlamentares. O monitoramento disso será feito por meio de relatórios bimestrais enviados ao Congresso. Por fim, o crime de responsabilidade só será caracterizado em caso de descumprimento da meta sem o acionamento dos gatilhos.

É importante registrar que alguns gastos públicos ficaram fora do cálculo dos limites de gastos do arcabouço fiscal, ainda que sejam computados para verificação do cumprimento das metas. Dentre eles: a participação federal no FUNDEB; e o Fundo Constitucional do Distrito Federal. A proposta do governo federal apontava outras rubricas, sempre buscando maior respiro fiscal, porém o trâmite da proposta no Congresso foi tornando o arcabouço cada vez mais restritivo.

Com esse sistema de bandas e contrapesos, o governo pretende alcançar um clima de estabilidade e confiança dos agentes econômicos, controlando os humores do mercado. Pretende retomar o protagonismo do Estado, e pôr um freio à chantagem econômica permanente em torno da punção do fundo público. Esse é o discurso, a aposta. Será possível?

2 Para uma crítica de esquerda ao arcabouço fiscal

Mesmo considerando o terreno pantanoso da saída de um processo eleitoral onde a extrema-direita obteve 49,10% dos votos, que temos um Congresso Nacional presidido por Arthur Lira e a força do Centrão, e que as chantagens da Faria Lima longe estão de cessar, é preciso sinalizar os elementos críticos que fizeram com que o PSOL votasse contra a proposta de arcabouço fiscal, bem como produziram a inquietude em algumas hostes do petismo. O arcabouço fiscal tende a ser mais um capítulo do nosso doloroso ajuste fiscal permanente por algumas razões:

  1. Indica um cenário fixo e restritivo de crescimento do gasto público fortemente fiscalista, rebaixado e insuficiente entre 0,6 e 2,5% do crescimento da receita (sobre 70% deste), inclusive frente ao que ocorreu nos governos Lula 1 e 2, quando mesmo com o ajuste houve um crescimento do gasto primário em média de 4%, segundo Pedro Rossi, ou seja, mesmo produzindo superávit primário. A única possibilidade de respiração seria o crescimento do gasto público se aproximar da meta de 2,5%, mas ainda assim isso estaria abaixo dos períodos anteriores.
  2. Nesse contexto, caso a aposta arriscada no crescimento da receita e da economia não se concretize nos patamares esperados, virá o subfinanciamento ou desfinanciamento, contrarreformas, ataques aos pisos da saúde e educação, e ao funcionalismo.
  3. Quadros importantes do Ministério da Fazenda, como Rogério Ceron (Secretário do Tesouro Nacional) vêm flertando com uma proposta de revisão dos pisos da educação e da saúde, considerando um crescimento dos gastos em torno de 1,2 a 1,5% (dentro das bandas fixadas), frente a uma previsão de crescimento da receita de 7%, que a rigor não poderia repercutir diretamente nessas políticas.
  4. Parece remota a possibilidade de uma reforma tributária que incida efetivamente sobre a grande riqueza no Brasil. Se foi interessante incluir jatinhos, lanchas e outros bens de luxo similares na discussão, a inexistência da regulamentação do imposto sobre as grandes fortunas é quase um crime num dos países mais desiguais do mundo. Nesse sentido, também é preocupante a condição da seguridade social, atingida diretamente em suas fontes de financiamento. Hoje a COFINS implica em cerca de 30% do financiamento da seguridade social. Se ela passa a ser um imposto, que salvaguardas terão essas políticas e direitos tão fundamentais para milhões de pessoas?

Pelo exposto até aqui, salta aos olhos que o “antidepressivo” para o mercado “temeroso” frente ao governo de frente amplíssima, diga-se, o arcabouço fiscal é, de fato, mais flexível que a aventura irresponsável e golpista do teto de gastos. No entanto, mantém o país nos trilhos do ajuste fiscal, em novos termos e com apostas arriscadas. Temos o entendimento de que há uma correlação de forças difícil, um terreno instável e movediço. Mas que não nos deve deixar na defensiva a ponto de não pensar para além da cartilha do neoliberalismo requentado e de concessões aos mesmos de sempre. Como se fará a fiscalização da Amazônia e se protegerá os povos indígenas? Como o Estado brasileiro vai assegurar a educação pública e a pesquisa científica? Como garantir a continuidade dos programas de transferência monetária, com valores dignos, e correção do salário-mínimo? A disputa em torno da reforma tributária será central para as lutas sociais no próximo período. Nesse mesmo compasso, devemos colocar em questão os gastos financeiros que permanecem beneficiando apenas os verdadeiros condottieres do capitalismo em crise e decadência, o capital portador de juros e suas ricas instituições financeiras (bancos, fundos de pensão e similares), enquanto as maiorias padecem de fome, violência, pandemia, racismo, machismo, desmatamento, e tantas outras mazelas cotidianas.

1 Conferir o importante debate realizado pela Fórum, disponível em: Arcabouço fiscal: Deccache e Rossi dizem que novas regras deixam aberta porta ao impeachment de Lula