O fato é que, ao contrário do que acontecia há alguns anos ou décadas atrás, as organizações de esquerda já não se caracterizam pelo trabalho militante em torno de um veículo de comunicação próprio. O mundo está muito mais conectado do que antes e a comunicação de massas cumpre um papel muito mais importante do que o fazia nos tempos do Iskra e do Pravda de Lênin. E no entanto, os jornais partidários quase não existem mais. Há muitos veículos de esquerda, mas, em sua maioria, eles não são a expressão pública de uma corrente específica. Em geral, funcionam como veículos de comunicação per se, onde o jornalismo ativista de esquerda se basta a si mesmo. Muito mais importância adquiriram os perfis, contas, canais e blogs pessoais, que no final das contas acabam cumprindo também o papel de divulgação de posições políticas ligadas a esta ou àquela organização. Além disso, a comunicação se tornou muito rápida e ninguém quer esperar que o veículo oficial de sua organização saia com uma posição ou informação para divulgá-la nas redes. Por que não fazer isso de forma autônoma, a partir de outros meios e com o link para outras fontes?
Marx e Engels, jornalistas
Para aqueles que se engajam na militância agora, pode parecer que a discussão sobre a necessidade de um veículo de comunicação partidária é recente ou está ligada exclusivamente ao desenvolvimento da internet e das redes sociais. No entanto, isso não é assim. Trata-se de um debate muito antigo. Desde Marx e Engels, a palavra escrita plasmada em um jornal sempre foi uma forma prioritária não apenas de divulgação e debate de ideias, mas inclusive de organização partidária. Marx e Engels (mas sobretudo Marx) sempre dedicaram uma parte importante de seu tempo à atividade jornalística. Marx foi correspondente e colaborou com inúmeros jornais, através dos quais buscava popularizar suas concepções mais de fundo e suas análises dos fatos da conjuntura. Aliás, ele se sustentou com a atividade jornalística durante muitos anos, até cessar quase que totalmente a colaboração com os meios de imprensa para se dedicar ao estudo e à redação de O Capital, passando a viver das doações de Engels. É notória sua participação, por exemplo, no Deutsch-Französische Jahrbücher (Anais Franco-Alemães), Rheinische Zeitung (Gazeta Renana) e New York Daily Tribune (Tribuna Diária de Nova Iorque). Desde a fundação de nosso movimento, portanto, nossos mestres e mestras sempre foram, entre outras coisas, comunicadores.
Com o desenvolvimento e barateamento da tecnologia, ainda no século 19, os líderes e as organizações socialistas diminuíram sua colaboração com os jornais liberais e passaram a ter jornais próprios, que eram produzidos por uma equipe especialmente destacada para a tarefa e utilizados pela militância como instrumento cotidiano no trabalho político. É o caso do Die Rote Fahne (A Bandeira Vermelha), jornal fundado em 1918, mas com raízes que remontam ao ano de 1876. Como revista, panfleto ou jornal, ele expressou as posições políticas do Partido Social-Democrata Alemão, da Liga Espartaquista e do Partido Comunista Alemão, respectivamente.
Lenin, o teórico do jornal
Mas foi Lênin quem teorizou sobre o assunto e enquandrou o jornal na concepção geral de partido que desenvolveu a partir do início do século 20.
Desde antes de Lênin, já era tradição que as distintas correntes ou grupos políticos se aglutinassem em torno a determinadas publicações, mais ou menos propagandísticas, mais ou menos agitativas. Mas Lênin foi além. Em Que fazer?, uma de suas mais famosas e importantes obras, o fundador da fração bolchevique desenvolve vários assuntos relacionados à organização partidária, mas reserva o centro e a conclusão do debate para o tema do jornal. Para Lênin, o movimento revolucionário russo estava marcado pela dispersão, desorganização, empirismo, economicismo (sindicalismo) e imediatismo. Cada grupo existente se dedicava à sua própria realidade local, às suas tarefas paroquiais, às suas greves econômicas e lutas parciais. Predominava o que Lênin chamou de “trabalho artesanal”, ou seja, um trabalho reativo, amador, manual, sem projeto, não estruturado sobre um plano geral.
Era necessário, portanto, superar essa dispersão localista e avançar para a unificação de fato de todos os grupos revolucionários russos em base à política nacional. O POSDR (Partido Operário Social-Democrata Russo) deveria deixar de ser um aglomerado de grupos soltos, cada qual reagindo à sua maneira aos desafios da realidade local, e coordenar suas ações em torno do objetivo comum: o socialismo e a luta contra a autocracia tsarista. E o principal instrumento dessa transformação, para Lênin, era o jornal.
Lênin dizia que o jornal deveria funcionar não apenas como um instrumento de propaganda e agitação, mas inclusive (ou sobretudo) como um organizador coletivo. O jornal revolucionário deveria ajudar a superar o localismo ao trazer uma análise marxista dos fatos mais importantes da realidade e propor uma política socialista para ser aplicada por toda a organização, independente de sua localização concreta. Lênin dizia que cada pequeno fato da vida cotidiana dos operários, cada opressão, cada tumulto, cada luta deveria ser usada para mostrar a necessidade do socialismo e organizar as pessoas em torno dessa ideia. Não havia temas desimportantes para o jornal partidário. Tudo poderia ser usado para educar a classe e fomentar seu espírito de luta.
Além de unificar as posições políticas da organização em um país continental e heterogêneo, o trabalho com o jornal deveria resultar na criação de uma rede de correspondentes operários que deveriam fornecer à redação o material vivo (artigos, denúncias) com o qual se faria o jornal. Mais do que isso, as reuniões partidárias deveriam ser pautadas e organizadas em torno dos temas levantados pelo jornal. As denúncias deveriam ser lidas e debatidas nas reuniões para que os operários entendessem que sua vida era igual em toda a Rússia e que todos eles enfrentavam o mesmo inimigo comum: o czarismo, a burguesia, a igreja e os latifundiários.
A concepção de Lênin se mostrou correta e a fração bolchevique acabou se construindo fundamentalmente em torno do trabalho de agitação, propaganda e organização com o jornal. Tanto é assim, que a história das distintas fases do partido antes da Revolução de Outubro pode ser contada por meio dos jornais: e etapa do Iskra (A Centelha – 1901-1905), marcada fundamentalmente pela propaganda e pela tentativa de superar a dispersão política e territorial; a etapa dos jornais agitativos pós-revolução de 1905 (Vperiod [Avante], Proletari [O Proletário], Novaia Jizn [A Nova Vida] etc.); e a etapa do Pravda (A Verdade – 1912-1917), marcada pela agitação de massas e pela luta por influenciar o conjunto da classe operária russa rumo à tomada do poder. Deve-se dizer que o trabalho com o jornal como centro da atividade partidária não era uma exclusividade bolchevique. Mencheviques, socialistas-revolucionários, trudoviques, ativistas independentes e até liberais também se aglutinavam em torno de seus jornais. Trótski, por exemplo, era membro do POSDR, mas não pertencia a nenhuma das frações em luta e sempre se sustentou como jornalista independente. Ao longo de toda sua militância, escreveu para diversos jornais e sua cobertura da Guerra dos Bálcãs, de 1912-1913, chegou a “furar a bolha”, se é que podemos usar essa expressão para a época.
Depois da tomada do poder na Rússia em 1917 e da fundação da III Internacional em 1919, o jornal foi incluído como parte da concepção de partido e se tornou uma característica obrigatória de toda organização que se pretendesse membro da Internacional Comunista. Via de regra, a fundação de um partido comunista em qualquer país do mundo começava com a fundação de um jornal, que poderia ser mais de agitação ou mais de propaganda, a depender do estágio de construção da organização. Em organizações muito pequenas, o jornal era mais um propagandista e formador. Em organizações maiores e mais sólidas, ele era um agitador e organizador. Aqueles grupos fundacionais que não possuíam jornal, eram obrigados a tê-lo, sem o quê não eram aceitos na III Internacional porque se considerava que não faziam trabalho político de fundo.
O jornal socialista revolucionário ao longo do século 20
Assim, a história das organizações revolucionárias ao longo do século 20 se confunde com a história de seus jornais. Para ficar apenas no exemplo brasileiro, temos: o PCB e o jornal A Classe Operária; a oposição trotskista de Mario Pedrosa e o As Lutas de Classes, sucedido mais tarde pelo Vanguarda Socialista; a Frente Única Antifascista de 1933 e seu jornal O Homem Livre; a Organização Revolucionária Marxista de 1961 e seu Política Operária (POLOP); a Organização Socialista Internacionalista e o seu famoso jornal O Trabalho (apelidado carinhosamente de O Balho por toda a ampla vanguarda ativista), já dos anos 1970; a Democracia Socialista e o Em Tempo, que abalou a ditadura com a publicação da lista de torturadores do regime militar; a Convergência Socialista e o Democracia Operária e depois o Convergência Socialista, também nos anos 1970 e 1980. E muitos outros exemplos.
Ao longo dos anos, com a adaptação de muitas organizações revolucionárias (inclusive trotskistas) à democracia burguesa e ao reformismo petista, os jornais foram perdendo espaço no trabalho partidário até deixarem totalmente de ser produzidos. O PSTU mantém um fio de continuidade com o passado, com a publicação do Opinião Socialista, às vezes em papel, às vezes em formato eletrônico. Mas publicações como O Trabalho e o Em Tempo, que cumpriram um papel tão importante na reorganização da esquerda socialista pós-ditadura militar, há muitos anos já não existem mais. Isso foi o reflexo de que essas organizações abandonaram de fato a luta pela consciência, ou seja, a essência da atividade revolucionária. É claro que ter um jornal não é atestado do caráter revolucionário de uma organização. Mas a sua ausência é um sintoma bastante grave e deve lançar dúvidas sobre a estratégia e o programa de uma corrente.
Os desafios da comunicação partidária no século 21
Nunca é demais lembrar que o surgimento e massificação da internet a partir da segunda metade dos anos 1990 significou uma revolução na comunicação, inclusive na comunicação partidária. Tratou-se de uma mudança de paradigma, similar à popularização dos jornais no século 19, e obrigou todas as organizações de esquerda a se adaptarem à nova realidade. Muitas organizações trataram de diversificar seu aparato de comunicação, criando sites e utilizando sistemas eletrônicos de distribuição, como redes sociais, listas de e-mail e outros mecanismos. Esse foi um passo importante e correto, já que não se deve fetichizar o papel em si. A concepção leninista não reside na mídia específica utilizada, mas no conteúdo: um veículo de comunicação centralizado. Assim, com mais ou menos sucesso, as organizações de esquerda tentaram se adaptar.
Mas a própria internet evoluiu. Por um lado, encerrou-se o período de relativa democracia e liberdade de navegação. As redes abertas e mecanismos não algorítmicos foram substituídos por redes fechadas e mecanismos algorítmicos, com maior controle da informação circulante. Nunca tantas pessoas estiveram conectadas. Ao mesmo, nunca o tráfego de informação foi tão controlado com objetivos principalmente comerciais, mas também políticos.
Ao mesmo tempo, ocorreu a fragmentação comportamental nas redes. Os perfis e canais coletivos e institucionais foram sendo aos poucos substituídos por similares individuais: meu perfil, meu canal, minha conta etc. Nunca tantos militantes produziram tanto conteúdo. Ao mesmo tempo, nunca a comunicação partidária foi tão secundarizada.
Essa nova realidade, evidentemente, lança um desafio para a esquerda socialista que quer disputar corações e mentes: como há 120 anos, surge a pergunta: o que fazer? Abrir mão da comunicação partidária e apostar na fragmentação como forma de chegar às pessoas? Manter um veículo de comunicação único e rígido, em detrimento da iniciativa individual dos militantes?
A questão é complexa e não possui resolução fácil. A princípio, parece-nos que uma organização socialista moderna deve se adaptar à nova realidade da internet e das redes, mas sem abrir mão da luta organizada pela consciência. Logo, é preciso uma solução mediada.
A solução estaria, portanto, em um sistema híbrido de comunicação, com as seguintes características:
1) A organização política deve manter um veículo de comunicação centralizado, adaptado à nova realidade, com ramificações nas mais importantes redes sociais;
2) Ao mesmo tempo, a organização deve incentivar a criatividade e a iniciativa individual de seus militantes, que devem participar ativamente do espaço virtual também com suas próprias contas, perfis e canais. Não deve haver perfis “autorizados” e “desautorizados” pela direção. A produção de conteúdo deve ser o mais livre possível;
3) Deve surgir uma estreita colaboração entre as contas individuais, de mandatos, de figuras públicas, de frentes de atuação e o órgão central da organização. Uma espécie de ecossistema de comunicação, onde o ritmo e o conteúdo da disputa política, no entanto, é dado pelo órgão central, que por sua vez é formado por uma equipe profissional, rápida, com bastante autonomia, dinâmica e atenta à realidade política e aos mecanismos das redes;
4) A colaboração citada acima não implica apenas uma ação unilateral de divulgação, por parte da militância, do que é produzido “em cima”. Não queremos apenas curtidores e compartilhadores de links. É preciso que o órgão central da corrente seja um instrumento de centralização política, mas também de democracia partidária. Assim, é preciso que os militantes escrevam, produzam, façam coberturas jornalísticas, criem memes, se arrisquem no terreno da análise e da política e que tudo isso encontre vazão no órgão central da corrente. Voltar à ideia profundamente leninista da “rede de correspondentes”, mas desta vez adaptada à realidade do século 21. O órgão central da corrente deve ser uma construção verdadeiramente coletiva, não uma imposição desde a direção. Se assim ocorrer, apesar das profundas mudanças na realidade, o órgão central da corrente pode cumprir o papel de “organizador coletivo” do qual falava Lênin.
Ou seja, nem abrir mão da luta política centralizada por um órgão de comunicação, nem inibir a iniciativa individual dos militantes. Parece-nos que essa seria uma adaptação necessária para enfrentar os desafios da luta política neste século 21, período no qual a extrema-direita e o fascismo entraram com tudo para as redes sociais e disputam cada centímetro do terreno ideológico.
Certamente, a tese desenvolvida acima não responde a todas as perguntas, principalmente as de caráter técnico e profissional. Também não leva em consideração as mudanças futuras na internet em geral e nas redes sociais em particular. Tudo isso faz parte do trabalho do conjunto da organização, e principalmente de sua direção: estar atenta às mudanças da realidade e reagir o mais rápido possível, de forma a manter o complexo equilíbrio desse hipotético ecossistema comunicativo.
É preciso manter alguns bons e velhos princípios em termos de organização e construção partidária. Mas é importante também confiar e apostar na militância, sobretudo sua geração mais jovem, mais dinâmica e mais conectada com a realidade atual. Afinal, o futuro pertence a ela.
Comentários