Não se trata de uma subversão completa da ordem mundial imperialista, mas causa incômodo em certas figuras. E isso é bom. Em viagem pela Europa desde o início da semana, Lula tem feito uma série de declarações que vão no sentido de questionar alguns mecanismos e padrões estabelecidos na diplomacia mundial e na relação entre países pobres e ricos, questões ligadas à Guerra da Ucrânia e combate às mudanças climáticas.
A mais contundente e importante declaração de Lula se deu em um comício em Paris na quarta-feira, quando questionou, diante de uma multidão de vários milhares de pessoas, a ideia de que todos os países devem contribuir da mesma forma para o combate à emergência climática. Segundo Lula, diferentes países contribuíram de maneira diferente para o descontrole do clima e não é justo de que se cobre as mesmas obrigações de nações há muito tempo industrializadas e outras ainda em desenvolvimento: “Não foi o povo africano que poluiu o mundo. Não é o povo latino-americano que poluiu o mundo. Na verdade, quem poluiu o planeta nestes últimos 200 anos foram aqueles que fizeram a Revolução Industrial e por isso têm que pagar a dívida histórica que têm com o planeta Terra”, disse o presidente brasileiro diante da Torre Eiffel, em Paris, onde o presidente francês Emmanuel Macron recebe líderes mundiais para discutir as mudanças climáticas e as medidas a serem adotadas pela comunidade internacional.
Mais tarde, ao lado do próprio presidente francês, Lula teceu críticas ao projeto de acordo entre a União Europeia e o Mercosul, chamando de “ameaças” os mecanismos introduzidos pela UE no documento que está em discussão: “Eu estou doido para fazer um acordo com a União Europeia. Mas não é possível, a carta adicional que foi feita pela UE não permite que se faça um acordo. Nós vamos fazer a resposta, e vamos mandar a resposta, mas é preciso que a gente comece a discutir. Não é possível que nós temos uma parceria estratégica, e haja uma carta adicional que faça ameaça a um parceiro estratégico”.
O presidente brasileiro ainda fez uma análise bastante dura do funcionamento das instituições internacionais e defendeu mudanças no sistema mundial de Estados: “As instituições criadas depois da II Guerra Mundial não funcionam mais. Se não mudarmos, a questão climática vai virar uma brincadeira, quem é que vai cumprir as decisões emanadas dos fóruns que nós fazemos?”. A crítica de Lula diz respeito não apenas ao cumprimento das metas de diminuição de emissão dos Gases de Efeito Estufa (GEE), mas também à promessa feita pelos países ricos de repassar US$ 100 bilhões aos países pobres para o combate às mudanças no clima. Apesar da promessa ter sido feito há vários anos, até agora nenhum centavo foi repassado: “Vamos ser francos: quem cumpriu o protocolo de Kioto? Quem cumpriu as decisões da COP15 em Copenhague? O acordo de Paris? Não se cumpre porque não tem governança mundial com força para decidir as coisas”, acrescentou Lula.
Lula se referiu ainda ao fato de que as discussões sobre as mudanças climáticas são feitas nos fóruns internacionais sem levar em consideração a situação social e econômica dos agentes envolvidos, principalmente o problema do desenvolvimento econômico e social e a segurança alimentar das populações: “Não é possível que, entre presidentes de países tão importantes, a palavra desigualdade não apareça. Se não discutirmos a desigualdade e colocar com tanta prioridade quanto a questão climática, podemos ter clima muito bom, mas o povo vai continuar morrendo de fome em vários países”.
O mal-estar aumentou quando Lula ligou o problema da desigualdade social ao tema da Guerra na Ucrânia, defendendo uma mesa de negociações que leve em consideração os interesses de ambos os lados e cesse imediatamente os combates: “É preciso ter os atores numa mesa de negociação, é preciso parar de atirar e procurar soluções pacificas porque o mundo tem 800 milhões de humanos que vão dormir sem ter o que comer e não é justo gastar bilhões de dólares ou euros com uma guerra”.
Lula lembrou ainda que a invasão de países soberanos não é uma exclusividade russa, mas uma prática comum entre os países mais ricos: “É uma moda as pessoas que participam como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU invadirem outros países sem pedir licença a ninguém. Os Estados Unidos invadiram o Iraque, a Inglaterra e a França invadiram a Líbia, e agora o Putin invadiu a Ucrânia”, lembrou o presidente brasileiro.
De um modo geral, desde que assumiu governo, Lula tem demonstrado bastante ousadia no terreno internacional, fazendo declarações e tomando atitudes compatíveis com um país soberano e importante como o Brasil, exatamente o contrário do que fazia Bolsonaro. Essa postura de Lula só pode ser elogiada. Entram nessa conta as declarações sobre o clima e a desigualdade mundial, que tanto desagradaram a Macron, mas também a oposição ao armamento da Ucrânia para a continuidade da guerra e a recepção de Nicolas Maduro no Brasil para uma importante reunião de líderes latino-americanos no final de maio.
O que é preciso agora é afinar melhor o discurso e a prática internacional com as ações internas. Também dentro do país é preciso que Lula e o governo estejam à frente do questionamento da ordem estabelecida, construindo uma nova governabilidade baseada no cumprimento das promessas de campanha e na mobilização popular para a defesa do governo contra os ataques da ultra-direita e do fascismo. Não é coerente se enfrentar com Macron e Biden no terreno internacional e ceder tudo a Lira e ao Centrão nas negociações no Congresso. Até porque a grande força de Lula está aqui dentro, não lá fora. Da mesma forma que é preciso fazer justiça histórica entre os Estados e nações, também é preciso que o Brasil pague sua dívida com o povo pobre, trabalhador e oprimido.
É verdade que a economia nacional teve uma pequena melhora, o que se expressou em índices até bastante razoáveis de apoio ao governo. Mas não nos iludamos. Tudo isso pode virar pó diante da primeira crise. É preciso preparar o embate, entregando ao povo tudo o que foi prometido durante a campanha, o que só pode ser feito num linha de enfrentamento com as elites, a grande imprensa, o Centrão e os militares. É isso que se espera de alguém com a força e a autoridade de Lula.
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