Havia certa semelhança com o cenário utilizado por Juán Domingo Perón, nos anos 1940/50, na Argentina. No início da tarde da segunda, 1º. de maio, o presidente colombiano Gustavo Petro caminhou pelo salão Bolívar do palácio presidencial e dirigiu-se ao púlpito montado no balcão da janela principal, no primeiro andar, em frente à lotada praça de Armas, no centro de Bogotá. Ao se pronunciar contra “as elites e os escravistas” por mais de uma hora, Petro acusou tais setores de não permitirem avanços sociais, como o fortalecimento da saúde pública, a reforma agrária e uma reforma previdenciária que recupere direitos trabalhistas perdidos nas últimas décadas. A cada cinco ou dez minutos, a fala era interrompida por gritos de apoio.
Mais do que aplausos, Petro buscava ali apoio popular diante do terremoto que provocara na institucionalidade na semana anterior (26/04). Diante de votos contrários no Legislativo a projetos oficiais por parte de agremiações que participam do governo, o mandatário virou a mesa. Pediu a renúncia de todos os ministros e trocou sete titulares. A lista inclui José Antonio Ocampo, ex-professor na Universidade de Colúmbia e uma espécie de fiador do governo junto ao mercado internacional. Entre as reformas, a mais sensível é a do sistema de saúde, que visa eliminar intermediários privados nas redes públicas de pronto-atendimento.
Petro coloca seu mandato em risco, numa disputa de poder entre o Estado e grandes interesses privados. Caso saia vitorioso, mostrará interna e externamente que o enfrentamento vale a pena. Sua taxa de aprovação caiu de 40% em fevereiro para 35% na metade de abril, segundo o instituto Invanmer. A maioria parlamentar anterior reduziu-se a cerca de 20% nas duas casas legislativas.
Petro literalmente chutou o balde diante de obstáculos semelhantes que ameaçam a nova safra reformista de governantes sulamericanos, eleita a partir de 2019. Os constrangimentos são representados por ameaças da direita e da extrema-direita, por reformas regressivas e privatizantes e pela queda acentuada da qualidade de vida da população, após três anos de pandemia e de efeitos da guerra na Ucrânia.
Se Petro representa o gesto de ousadia, o chileno Gabriel Boric, com pouco mais de um ano de gestão, coleciona derrotas, recuos em áreas importantes e fissuras públicas na frente política que o elegeu.
Apesar de ter obtido em 11 de março uma expressiva vitória parlamentar (127 a 14, na Câmara) para o projeto que reduz de 44 para 40 o número de horas trabalhadas, três dias antes, Boric viu sua proposta de reforma tributária ser derrotada por 73 a 71 votos. Entre as promessas de campanha que ficariam comprometidas com a situação estão a reforma previdenciária e no sistema de saúde e projetos para reduzir o surto de crescente violência no país. Entre 2021 e 2022, houve um aumento de 33,4% no número de homicídios, o que mobilizou diversas facções conservadoras a aprovar no Congresso leis duras contra a criminalidade. O apoio e sanção presidencial ao que setores progressistas denominam lei do gatilho fácil tensiona a aliança oficial. A deriva conservadora do presidente tem provocado críticas públicas por parte de representantes dos partidos comunista e socialista, que integram o governo.
Boric perdeu grande parte da iniciativa política em setembro de 2022, com a derrota em plebiscito do projeto de Constituição (62% a 38%) debatido por mais de um ano em convenção eleita no início do ano anterior. A partir daí o chefe do Executivo realizou diversas modificações em seu gabinete, tornando-o mais conservador, num quadro de desaceleração econômica e tendência altista na inflação.
Mesmo com ligeira elevação em seus índices de aprovação (33,8% em fevereiro), o governo segue com dificuldades de manter a iniciativa, às vésperas das eleições para um novo processo constituinte, em 7 de maio. À principal diferença em relação à dinâmica anterior será a supervisão de duas comissões, uma de especialistas, que apresentará previamente um texto-base, e outra de magistrados, indicados pela direção do Congresso, de maioria conservadora.
A pressão regressista também assola o governo Lula. Eleito pela mais ampla frente política da história da República, o novo presidente conseguiu derrotar e isolar a extrema direita nos atos golpistas de 8 de janeiro, com ações rápidas e incisivas, juntamente com o Judiciário. Em quatro meses, foram promovidas ações de impacto, a exemplo da denúncia do genocídio Yanomami, a volta de programas sociais como Bolsa-Família e Minha Casa Minha Vida, a concessão de reajustes para funcionários públicos represados havia quatro anos, a adoção de medidas contrárias a todo tipo de preconceito, entre muitas outras, além de se colocar com competência nas relações externas. No entanto, perdeu sua batalha mais importante, pela queda da taxa de juros, para o Banco Central independente.
O governo enfrentou, de saída, tensões internas sobre rumos a seguir. De um lado, o ministério da Fazenda apresenta um projeto de ajuste fiscal ao gosto do mercado financeiro, que funcionará como trava ao crescimento, apesar de seus defensores verem nele características contracíclicas. De outro, há promessas de desenvolvimento, industrialização, emprego e renda feitas pelo presidente desde a campanha. Os dois caminhos são excludentes e o fiscalismo econômico acabou se impondo.
O governo apresenta assim uma ambiguidade e perda de iniciativa política que pode se materializar em queda na aprovação popular. Segundo a pesquisa Genial/Quaest, divulgada em 15 de abril, a avaliação positiva recuou 4 pontos percentuais desde fevereiro, de 40% para 36%. A avaliação negativa avançou de 20% para 29%.
Do outro lado da fronteira, faltando cinco meses para as eleições presidenciais argentinas, uma crise inflacionária e a carência de dólares na economia geram um tabuleiro de alta indefinição: nem o governo e nem oposição exibem um candidato que se mostre favorito para a disputa. Tanto o atual presidente Alberto Fernández, quanto o ex Maurício Macri, desistiram de se apresentar nas urnas em outubro. No interior do peronismo, há movimentos para que Cristina Kirchner postule um terceiro mandato.
O mais provável é que a coalizão governista Frente Para Todos seja derrotada pela aliança direitista Juntos por el Cambio, do ex-presidente Maurício Macri. Mas a ausência de um nome que empolgue o eleitorado indica a possibilidade de aventuras antissistema surgirem no horizonte.
É nesse ambiente que o deputado de extrema-direita Javier Milei, da coalizão Libertad Avanza, faz barulho com uma proposta explosiva: a dolarização total da economia. Individualmente, Milei aparece na dianteira das pesquisas, com 26,6%, no final de abril. Apesar disso, a coalizão de Macri apresenta 28,1% das intenções de voto, contra 22,8% da FdT e 16,6% dos libertários. Embora sedutora para uma população cansada de choques recessivos, o programa desses últimos tenderá a agravar os problemas de uma economia com pouco acesso ao crédito internacional e com cerca de 75% de sua dívida nominada em dólar.
Na Bolívia, o governo do socialista Luís Arce enfrenta séria crise de evasão de dólares, o que coloca em xeque as reservas internacionais e a cotação da moeda local, com pressões em seu balanço de pagamentos. O país adotou uma política de câmbio fixo, em 2011, quando Arce era ministro da Economia do governo Evo Morales. Apesar da elevação dos preços do gás no mercado mundial, a redução de investimentos em exploração e extração tornaram a produção interna declinante. Como no caso chileno, o MAS (Movimento ao Socialismo), partido de Arce, encontra-se dividido. O ex-presidente Evo Morales, sua mais importante figura pública, não cessa de acusar publicamente a conduta do sucessor. O governo conta com um trunfo na mão: o fato de 90% da dívida pública ser nominada em moeda nacional.
Ao contrário do panorama global do início do século, quando a entrada da China no mercado, com sua alta demanda por commodities gerou quase uma década de prosperidade na periferia (2004-14), a economia internacional tende a se desacelerar, com fortes sinais de estagnação nos EUA e recessão em partes da Europa.
Fragilidades estruturais nos países menores e pressões fiscalistas e antidesenvolvimentistas por parte de hipertrofiados sistemas financeiros colocam a nova onda reformista em questão. A emergência do neofascismo na região surge como ameaça à democracia, num período em que uma onda neoliberal muito mais agressiva que a vivida nos anos 1990 afronta não apenas o caráter público do Estado, como o próprio funcionamento da democracia. Onde estará a saída, na radicalização de Petro ou na negociação de Lula, para ficarmos nas principais lideranças?
Via Outras Palavras
Publicado originalmente na Carta Capital
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