A resposta do Poder Judiciário e do Executivo aos atos terroristas do dia 08 de janeiro trouxe algum grau de satisfação à sociedade. Por parte do Executivo, ainda na tarde de domingo, foi decretada a intervenção federal na segurança do Distrito Federal. Já o Poder Judiciário, mais especificamente o ministro Alexandre de Moraes, determinou o afastamento do governador do DF Ibaneis Rocha por 90 dias, a prisão do secretário de Justiça e ex-ministro de Bolsonaro Anderson Torres e o desmonte dos acampamentos golpistas em todo o país dentro de um prazo de 24 horas. Além disso, a Polícia Federal já realizou cerca de 1000 prisões de envolvidos nos atos de depredação e parte dessa orda de bárbaros já começa a ser processada.
É claro que todos nós nos alegramos com as imagens dos ônibus lotados de terroristas sendo transferidos para o Complexo Penitenciário da Papuda e para a Penitenciária Feminina do DF, conhecida como Colmeia. No entanto, é cedo para comemorar o triunfo da justiça. Alguns dos principais responsáveis pela barbárie do dia 08 continuam livres e em seus cargos, trabalhando e conspirando normalmente.
Uma verdadeira resolução do problema da tentativa de golpe do último domingo passa, inevitavelmente, pela punição do setor militar envolvido na conspiração. Esse setor, até agora, tem se mantido fora do alcance das punições. E não se trata aqui de uma “caça às bruxas” indiscriminada e sem limites, mas de estabelecer de maneira exata as responsabilidades dos militares que deveriam ter sido a última barreira entre os vândalos e os símbolos dos três poderes. E isso não é difícil.
Comecemos pela Guarda Presidencial. Quem assistiu à cerimônia de posse, pode achar que o papel da Guarda Presidencial é apenas ser passada em revista pelo presidente da república em solenidades militarescas, mas isso não é assim. A Guarda Presidencial é realmente responsável pela segurança do Palácio do Planalto, em especial, pela segurança do próprio presidente. Ela é chefiada pelo coronel Paulo Jorge Fernandes da Hora e se subordina militarmente ao comandante do Exército, general Júlio César de Arruda. Segundo todos os relatos disponíveis, a Guarda Presidencia simplesmente não atuou no dia 08, tendo sua ação restrita a negociar amigavelmente com os terroristas uma retirada pacífica do Palácio do Planalto depois de que tudo já tinha sido urinado e defecado. Por que o coronel Paulo Jorge Fernandes da Hora e o general Júlio César de Arruda até agora não constam em qualquer lista de punições? Não se está falando aqui sequer de prisão. Mas por que não tiveram nem mesmo sua permanência nos cargos questionada? Isso nos leva, inevitavelmente, ao minstro da Defesa.
José Múcio parece ter sido escolhido não para dirigir um ministério com a autoridade e a capacidade que se exige, mas unicamente para contemporizar com os militares bolsonaristas que permaneceram em seus cargos. Isso poderia até parecer uma boa estratégia se os militares concordassem em não conspirar contra o governo eleito. Mas a realidade não é essa. Ao longo das últimas semanas, ficou demonstrada a total complacência dos chefes militares com o movimento golpista, a ponto do próprio Lula tecer críticas abertas nesse sentido. No dia seguinte ao ocorrido, em reunião no Palácio do Planalto com governadores e os presidentes do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, Lula sentenciou: “As pessoas estão livremente reivindicando o golpe na frente dos quartéis, e não foi feito nada por nenhum quartel, nenhum general se moveu para dizer que não pode acontecer isso, é proibido pedir isso”. E continuou: “Dava a impressão de que tinha gente que gostava quando o povo estava clamando pelo golpe”.
Cada vez mais, membros do governo admitem o tamanho do problema envolvendo os chefes militares. O ministro da Casa Civil Rui Costa, referindo-se ao problema da Guarda Presidencial, já admitiu que talvez sejam necessárias mudanças na composição do batalhão: “A mudança está sendo feita desde o dia 1º de janeiro e continuará, aqui e nos demais ministérios”, disse em entrevista.
Segundo o jornalista Valdo Cruz, o próprio Gabinete de Segurança Institucional (GSI), chefiado pelo general Marco Edson Gonçalves Dias e até mesmo a Agência Brasileira de Informações (Abin) ainda estão cheios de militares ligados a Bolsonaro. Mas não se vê o nome do general Marco Edson Gonçalves Dias em nenhuma lista de exonerações.
Em outra ocasião, o chefe da assessoria especial de Lula, o ex-chanceler Celso Amorim, diplomata com enorme autoridade pelos serviços prestados ao país, declarou: “Eles [os terroristas] chegaram no terceiro andar do Planalto. Estiveram perto da sala do presidente Lula. Existe um batalhão de guarda do Planalto. Onde eles estavam?”.
Por fim, o comandante da PM do Distrito Federal, Coronel Fábio Augusto, que permitiu que suas tropas escoltassem os criminosos em segurança até o local do crime, também continua fora do radar das punições.
Como dissemos acima, é ótimo que se punam os políticos e civis envolvidos nos atos de terrorismo. Mas devemos lembrar que o bolsonarismo cresceu e se fortaleceu como movimento golpista, em primeiro lugar, porque os militares responsáveis pelos crimes da ditadura ficaram impunes devido a uma compreensão torpe da Lei de Anistia. Ou já esquecemos que o discurso de Bolsonaro na votação do impeachment de Dilma Rousseff foi justamente em homenagem ao torturador coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra?
É evidente que o Brasil tem um problema não-resolvido com seus militares, que se consideram até hoje uma espécie de “poder moderador”, que se acham no direito de abandonar seus cargos antes da data prevista apenas para provocar o caos e a desorganização nas fileiras de soldados no momento em que mais se necessita de coesão e disciplina e se negam a prestar continência a um presidente civil democraticamente eleito.
Segundo o Datafolha, 93% da população rechaça a tentativa de golpe. Há uma grande unidade em torno da governabilidade de Lula e amplo apoio às medidas de punição aos golpistas. O bolsonarismo está momentaneamente na defensiva. Essa janela de oportunidades não vai se manter aberta para sempre. Infelizmente, ao manter Múcio e todos os militares responsáveis em seus cargos e seguir com a política de contemporização com os conspiradores, Lula está cometendo o erro de não enfrentar essa questão. Isso pode lhe custar caro. É o que o demonstra o exemplo de toda a América Latina desde sempre e sobretudo do próprio Brasil.
Comentários