por Rangel Fernandes*, do DF
Ser LGBTQIAP+ no Brasil, às luzes da era digital e da informação a pronto acesso, ainda restringe a caracterização do grupo enquanto alvo de diversas violências, seja pelos preconceitos impregnados em uma sociedade de raízes ditas conservadores e defensora de uma “família tradicional” de bases heterocisnormativas; seja pela constante omissão do Estado diante da garantia dos direitos fundamentais às populações vulnerabilizadas. Não por acaso, o Brasil segue historicamente como o país que mais mata a população LGBTQIAP+ no mundo.
Falar sobre as violências e privações de direitos é indispensável, mas não pode cair na retórica e na lamentação, por isso exige a elaboração programática que parte da análise e da formulação equitativa das políticas públicas, com a devida execução. Sob a ótica da saúde pública, a violência ao grupo LGBTQIAP+ se propaga pelas barreiras de acesso aos serviços básicos de saúde, pela precarização da oferta de ações e procedimentos voltados para as necessidades específicas deste público, pela LGBTfobia institucionalizada. Estes fatores são potencializados em relação à população trans e travesti, mais suscetível às vulnerabilidades promovidas pelas iniquidades resultantes das falhas do Estado nas políticas públicas.
Mesmo com os avanços conquistados pelas intensas lutas dos movimentos socias, ainda há muitas lacunas na cuidado em saúde a essa população, que busca acolhimento nas mais variadas necessidades, sobretudo àquelas específicas, relacionadas às mudanças dos seus corpos, assistência em saúde mental e cuidado diante de toda a complexidade da saúde LGBTQIAP+. A atenção integral à saúde deste grupo é primordial como política de combate às violências, tendo em vista a importância da segurança física, moral e social promovida pela interpretação social de sua estética e cultura.
O processo transexualizador nasceu no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2011, com a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT), sendo um marco nas políticas públicas no Brasil. O programa passou a ser operacionalizado no SUS por meio das Portarias nº 457 e nº 1.707 de 2013. Este marco legal foi atualizado pela Portaria nº 2.803, do mesmo ano, quando ficaram preconizados para o processo transexualizador: o acolhimento feito com qualidade, o acesso aos serviços de saúde com respeito ao nome social, o acesso desde a hormonioterapia até a cirurgia de readequação do corpo, a identidade de gênero e o atendimento integral.
Além disso, no Ministério da Saúde (MS) existe a Coordenação de Garantia de Equidade, que trabalha com temáticas afins à PNSILGBT. Contudo, entre a normatização de ações que “busquem promover a saúde integral da população LGBT, de forma a garantir o atendimento não discriminatório do grupo nos serviços públicos de saúde e o enfrentamento das iniquidades para o pleno exercício da democracia e do controle social”, como é proposto no texto de apresentação da política, e a real execução delas existe uma abismo de realidade, que demonstra a falta de compromisso do poder público com a promoção, prevenção, assistência e reabilitação da saúde LGBTQIAP+. Tal privação de direitos, que se constitui em uma verdadeira violência institucional, foi recrudescida nos últimos anos.
O governo Bolsonaro não só abandonou a saúde LGBTQIAP+, mas investiu em intensos ataques à PNSILGBT, sobretudo às políticas e ações programáticas voltadas à população trans. A primeira medida, já no dia 4 de janeiro de 2019, foi a retirada da Cartilha Trans do site e da central de distribuição do MS. Posteriormente, houve a retirada de subsídio aos medicamentos utilizados no processo transexualizador, precarizando e dificultando mais ainda o acesso desta população à saúde integral no SUS. Esta lacuna, além da privação de direitos a uma população já violentada e vulnerabilizada, significa maior oneração ao Estado, que passa a absorver grande demanda de judicialização, solicitações de Tratamento Fora de Domicílio (TFD) e subsídio à rede privada para concessão da medicação às pessoas que necessitam.
Agora, já no início do governo Lula, a população trans enxerga alguma luz no túnel obscuro onde foi lançada por Bolsonaro. As declarações do ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, afirmando “pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, intersexo e não-binárias, vocês existem e são valiosas para nós”, já foram como um abraço em um grupo que morreu sumariamente com o recrudescimento da violência LGBTfóbica, intensificada pelo bolsonarismo, além da expressão de um possível compromisso do novo governo com as populações vulnerabilizadas. O novo Secretário de Atenção Primária à Saúde, Nésio Fernandes, também afirmou que o processo transexualizador não deve ser tabu no SUS.
Objetivamente, na política de saúde, a deputada estadual do Rio Grande do Sul, Luciana Genro (PSOL), e a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL), tiveram seu ofício recebido pela ministra Nísia Trindade, solicitando a inclusão do Deposteron na lista de medicamentos ofertados pelo SUS. Trata-se de medicação utilizada para reposição hormonal de testosterona, essencial na continuidade do cuidado aos homens trans, dentro do processo transexualizador, e para pessoas com produção deficitária do hormônio.
A revisão da Relação Nacional de Medicamentos (RENAME); a garantia de financiamento para a aquisição e distribuição da medicação; a retomada da escuta qualificada dos movimentos sociais através do controle social do SUS; a educação continuada e permanente dos profissionais de todos os níveis de atenção do SUS; a representatividade dos grupos vulnerabilizadas na elaboração das políticas e programas de saúde; e o fomento à execução das políticas setoriais em estados e municípios são necessidade prioritária, devendo ser medidas tomadas como tarefa central da nova gestão do MS.
A inclusão do Deposteron na lista de medicamentos distribuídos pelo SUS é importantíssima para que o processo transexualizador esteja sob os princípios da saúde pública, sendo alvo da universalidade do acesso, da equidade e da integralidade. Em acordo com o direito constitucional da saúde como direito de todos e dever do Estado, assim como com o conceito ampliado de saúde estabelecido pela Organização Mundial da Saúde – “um estado de completo bem estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade”, a retomada da saúde LGBTQIAP+ como alvo da atenção do poder público pode significar o primeiro passo para reconstrução da PNSILGBT e para a proteção da população LGBTQIAP+.
* Rangel Fernandes é enfermeiro e professor de enfermagem no DF; especialista em Oncologia, Docência e Urgência e Emergência; mestrando em Ciências Sociais pela UniSinos; e militante da Coletiva SUS.
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