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BRASIL

Uma guerra de classe pós-segundo turno

Fábio José de Queiroz, de Fortaleza, CE
Tânia Rêgo/Agência Brasil

A eleição foi um momento peculiar da luta de classes. Lula venceu! E agora? Agora o neofascismo desencadeia operações de guerra e a luta de classes assume nesse momento novas configurações. Diria que uma guerra de classe pós-segundo turno está em curso. Cada força levanta a sua política e os meios para torná-la prática. Dos neofascistas aos neoliberais de plumagem democrática, passando pelos agrupamentos de esquerda, todos cantam os seus programas. É preciso analisar esse cenário e tirar as conclusões necessárias que, em grandes linhas, possam nutrir as táticas da esquerda socialista para o próximo período. Este texto aborda isso, essencialmente.

Lula venceu! Esse é o ponto mais importante da conjuntura

Qualquer tentativa de examinar a cena política começa com o fato mais relevante, que foi a vitória de Lula, com mais de 60 milhões de votos. Ele venceu os empresários que fizeram assédio moral para que os trabalhadores votassem no capitão golpista. Ele venceu os patrões que queriam convencer os trabalhadores do Nordeste de que Lula e Bolsonaro eram iguais e, portanto, eles não deveriam ir votar, o que, evidentemente, prejudicaria o primeiro e beneficiaria o segundo. Ele venceu os pastores, protagonistas de uma genuína guerra cultural, que venderam a ideia de um armagedon na hipótese da vitória do ex-líder metalúrgico. Ele venceu a tenebrosa máquina de fabricar mentiras nas redes sociais. Ele venceu o medo que as pessoas sentiam de que poderia ocorrer um golpe militar ou algo do gênero.

Lula venceu, mas não venceu sozinho. Ele foi vitorioso junto com os setores mais pauperizados da classe trabalhadora da cidade e do campo. Não foi, portanto, uma vitória individual, mas coletiva. É verdade que não havia outro nome capaz de unir mais de 60 milhões de vontades, mas insisto: Lula não venceu sozinho. Essa vitória, contudo, é o fato histórico mais importante da presente conjuntura e pode influir decisivamente nos rumos da situação política.

Os neofascistas não estão mortos e estão nas ruas

O neofascismo foi derrotado eleitoralmente, mas diferentemente de outros segmentos políticos burgueses, ele disputa mais a sociedade do que propriamente às instituições do regime. De fato, ele disputa às instituições, do ponto de vista tático, e disputa a sociedade, estrategicamente. Por isso, derrotada nas urnas, a extrema-direita raivosa está nas ruas, nas praças e nas estradas. E faz muito barulho.

Está nítido que um setor da burguesia não se furta a tentar eliminar a democracia burguesa e, para alcançar esse objetivo, financia os bandos fascistas que ocupam as rodovias e as entradas de quarteis e de outros espaços militares, pregando a infernal oração golpista. Esse setor burguês é composto de facetas contraditórias que vão dos agentes capitalistas da mineração, passando pelo agronegócio e alcançando estratos ligados ao grande comércio.

Mas em meio à crise capitalista, de dimensões internacionais, a burguesia está dividida, e, mais do que nunca, os seus órgãos e os seus integrantes não atuam de forma harmônica. Tomando como base o recente processo eleitoral, a situação, de modo geral, pode ser assim entendida: um setor queria a continuidade do Bolsonaro, por meios legais ou extralegais, outro queria o capitão facínora, mas sem ter que recorrer às soluções declaradamente antidemocráticas, um terceiro lado achava que uma solução conciliadora, ainda que organizada em torno de Lula, poderia ser a solução mais apropriada, desde que não mexesse estruturalmente nos princípios fiscais pós-golpe de 2016, e, por fim, uma ala burguesa permaneceu em uma situação de tensa expectativa, sem um pronunciamento nítido.

Certamente, é a primeira ala burguesa que alimenta diretamente as movimentações golpistas que se seguiram aos resultados do segundo turno. Com esse grau de divisão interburguesa, porém, dificilmente esse setor terá êxito em seu projeto reacionário de destruir a democracia política, impedindo, por exemplo, de Lula tomar posse. Por isso, deve essa vertente fascista ser ignorada? Parece-me que não. Muito pelo contrário.

É preciso concentrar forças para fazer frente às ameaças fascistas

Não há uma só tática para fazer frente às iminências do fascismo. Da unidade de ação à frente única, todas as táticas são válidas, dependendo da situação política e da correspondente correlação de forças na sociedade. A esquerda socialista, seguramente, deve imprimir um selo de prioridade à unidade das organizações da classe trabalhadora, mas sabendo que a flexibilidade tática precisa estar presente no horizonte de sua estratégia de combate. Concentrar forças, contudo, é, antes de mais nada, concentrar as forças da classe trabalhadora, afinal o fascismo atua como um exército e, portanto, sem concentração de forças no vértice oposto não há como vencê-lo.

Os momentos de medição de forças seguirão no próximo período e isso exigirá daqueles que pertencem ao mundo do trabalho uma resposta unitária, firme e enérgica. As organizações da classe trabalhadora, incluídos sindicatos, movimentos sociais e agremiações de esquerda, seguem com a tarefa de barrar a ascensão do fascismo, que continua aplicando táticas preferenciais de ocupação das artérias públicas e de ações permanentes, ameaçando as liberdades políticas e a livre organização dos(as) trabalhadores(as).

Nesse cenário, defender o que há de democracia para a classe que vive da venda de sua força de trabalho não é uma questão de menor relevância. É uma questão ou de vida ou de morte.

Como os socialistas revolucionários devem refletir

Defender a concentração de forças para fazer frente à avalanche fascista não é o mesmo que dizer que os socialistas devem ser prisioneiros das estratégias da frente popular. A esquerda socialista – que defendeu lealmente à candidatura de Lula para derrotar Bolsonaro – deve preservar a completa independência de suas organizações, de sua política e de seu programa, ainda que deva adotar táticas unitárias diante de qualquer ameaça contra a posse de Lula e o seu governo. Será preciso estar com Lula diante das invectivas fascistóides. Não fazer isso seria um erro descomunal.

Doutro lado, não se pode lançar poeira nos olhos da massa trabalhadora. É preciso dizer a ela que lutas difíceis serão travadas no próximo período e a vitória de Lula torna o caminho menos áspero e menos sangrento. Com efeito, os patrões vão tentar imobilizar e sequestrar o governo, eleito pelo voto popular.

Do lado de cá, será preciso lutar para que a plataforma política que Lula defendeu no segundo turno – programa social para os pobres, aumento real do salário-mínimo, isenção do imposto geral para quem ganha até 5 salários-mínimos, investimentos massivos em educação e saúde, fim do teto dos gastos, política vigorosa de moradias populares, reforma agrária, defesa da pauta ambiental e dos oprimidos, dentre outros pontos não menos importantes – seja efetivamente cumprida.

Se as mobilizações foram importantes para garantir a vitória de Lula no campo do sufrágio universal, agora, mais do que antes, para derrotar materialmente o fascismo e conquistar as reivindicações que expressam necessidades objetivas da classe trabalhadora e do povo pobre, o papel histórico das mobilizações será inelutavelmente maior.

A primeira fase da luta acabou, a segunda está só começando.